O terremoto veio da Itália. E não apenas no sentido imediato de ter abalado o noticiário da semana, mas no etimológico também. A palavra italiana terremoto, cunhada no século 13, é considerada pela maioria dos estudiosos a matriz do vocábulo português, que fez sua aparição por aqui já no século seguinte, e também do espanhol, todos com grafia idêntica. O inglês earthquake e o alemão Erdbeben são traduções literais de terremoto. O francês prefere uma solução menos sucinta, a locução tremblement de terre. Se o sentido da palavra fica evidente ao se examinar cada um de seus termos – terra + tremor, movimento –, o fato de ter raiz latina não é menos claro. Segundo o Houaiss, o termo terraemotus já aparece registrado antes de Cristo em Cícero, o grande orador e mestre da prosa latina, que após a morte de Júlio César foi apanhado num terremoto político (agora em sentido figurado, claro) e condenado à morte por Marco Antônio em 43 a.C. Sismo, um sinônimo perfeito de terremoto, tem raiz também antiga no vocábulo grego seismós, mas sua introdução em nossa língua foi, por assim dizer, fabricada numa época bem mais recente: chegou por aqui na grande onda dos…
“Acordei, fui ao banheiro…” E eu com isso, meu amigo, você diria, ai na sua moita existencial, nem aí para o que se passa na vida de seu ninguém. “Dei a descarga…” E daí, colega, não fez mais que o recomendável pela boa educação materna. “Bebi um copo d´água…” (…) E por aí segue a narração, tintim por tintim, de tudo que se passa na vida da tal criatura. Só não comunica das suas humaníssimas ventosidades intestinais e traques do gênero. O resto vale na miudeza cotidiana. Eis o espírito da mais nova modinha da Internet, meu jovem, o tal do twitter, que você, novidadeiro por excelência, já deve ter enfadado de ouvir falar. Xico Sá, em seu blog, entre pasmo e irritado com o Twitter, a nova doença infantil da internet. Sei não, estou pensando em seguir esse cara.
Quando decidiu que seria escritora, Maria Cândida descobriu que, sem saber, já vinha se preparando nos últimos anos para aquele momento: estavam a postos o ouvido bisbilhoteiro, o olho clínico, aqueles surtos mórbidos de introspecção a cada café-da-manhã, o cabelo mais curto de um lado que do outro, os óculos de antiquário, as camisetas pretas puídas, o desapego a modismos e coisas materiais. Aí, como já tinha computador, foi só descolar um bom corretor ortográfico em versão pirata e espetar em sua parede de cortiça uma coleção de frases sobre a arte de escrever, com aquela genial da Dorothy Parker encabeçando a lista, e esperar. Quando a espera começou a se prolongar além do razoável, Maria Cândida acrescentou à sua escrivaninha um porta-lápis com o logo da Granta e um exemplar de The art of fiction, de John Gardner, que, mesmo sem saber inglês, passou a abrir em páginas aleatórias e folhear preguiçosamente sempre que ameaçava se impacientar. Depois comprou uma cadeira de escritório com ajuste de altura, um pôster comemorativo dos 50 anos de O encontro marcado, duas dúzias de lápis coloridos, uma coleção de cadernos de capa dura, uma luminária verde-água totally anos 50, uma caneca de chá…
As faculdades do espírito, denominadas analíticas, são, em si mesmas, bem pouco suscetíveis de análise. Apreciamo-las somente em seus efeitos. O que delas sabemos, entre outras coisas, é que são sempre, para quem as possui em grau extraordinário, fonte do mais intenso prazer. Assim, em tom ensaístico e prometendo prazeres que de fato entregaria, o escritor americano Edgar Allan Poe começava a apresentar ao público em 1841 o francês Auguste Dupin, protagonista do conto “Os crimes da Rua Morgue” (Nova Aguilar, “Ficção completa, poesia e ensaios”, tradução de Oscar Mendes). Detetive amador dotado de uma assombrosa capacidade de observação, análise e dedução, Dupin, que depois disso apareceu em mais dois contos apenas, é a matriz escancarada do inglês Sherlock Holmes, que nasceu quatro décadas depois e acabou muito mais famoso do que ele. Eis um começo menos inesquecível em si do que pelo que inaugurou: a literatura policial moderna.
Que goleada, não? O vexame magnífico que a Bolívia impôs à Argentina no 6 x 1 de quarta-feira merece, claro, a eloqüência desse brasileirismo que ganhou seu primeiro registro em 1958 no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, de Antônio Soares Amora. Mas nem sempre a justeza da palavra é tão evidente. No mesmo dia o Brasil derrotou o Peru por 3 x 0. Goleada? A julgar pelo que disse a certa altura da transmissão da partida o repórter Mauro Naves, da TV Globo, sim. De acordo com a sabedoria não escrita dos torcedores, não. Derivada de gol – que importamos do inglês goal, “meta” –, a goleada nunca teve definição numericamente precisa nos dicionários. É apresentada como “vitória por ampla diferença de gols” (Houaiss), “grande quantidade de gols marcados por uma equipe numa só partida, contra nenhum ou poucos gols da equipe adversária” (Michaelis) ou “vitória por larga margem de gois (sic) ou tentos; enfiada” (Aurélio). Historicamente, como sabe qualquer freqüentador de arquibancada, o piso da goleada sempre foi o 4 x 1 – três gols de diferença, mas quatro marcados. Ou seja: 3 x 0 e 4 x 2 não servem. No entanto, a freqüência com que o placar…
Lobo Antunes, Carlos Fuentes, Atiq Rahimi, Simon Schama, Sophie Calle e, caramba, Gay Talese… Na expectativa de uma das boas edições da curta história da Flip, já reservei a pousada. O preço dá saltos em torno de 20% a cada ano, mas o que se pode fazer?
Em reportagem publicada hoje no Último Segundo do iG, Mauricio Stycer me faz uma pergunta tão boa quanto difícil – e até agora inédita – sobre o papel do pensamento relativista em “Elza, a garota”, um romance feito de meios-tons em que heróis e vilões se confundem. E me faz explicar por que, apesar disso, eu considero o livro anti-relativista. Pena que minha conversa com Carlos Herculano Lopes, publicada ontem em página inteira no jornal “Estado de Minas”, só esteja disponível online para assinantes. Em compensação, está a um clique de distância a resenha generosa que Paulo Polzonoff Jr. publicou em seu blog. E a entrevista para o “Espaço Aberto” de Edney Silvestre e o papo com Maria Beltrão no “Estúdio i” – este com participação de João Paulo Cuenca – já podem ser vistos no portal Globo.com.
Quando olho para trás, fixo-me no século 18, no Iluminismo, em sua fé no poder do conhecimento e no mundo de idéias em que ele operou – aquilo a que o iluminista se referia como República das Letras. O século 18 imaginava a República das Letras como um reino sem polícia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto as determinadas pelo talento. Qualquer um podia juntar-se a ela exercendo os dois atributos principais da cidadania: escrever e ler. Escritores formulavam idéias e leitores as julgavam. Graças ao poder da palavra impressa, os julgamentos se estendiam por círculos cada vez mais amplos, e os argumentos mais fortes venciam. Este trecho do ótimo artigo do historiador Robert Darnton, chamado O Google e o futuro dos livros – que consegue fazer um alerta progressista e não tecnofóbico sobre a avalanche do Google Book Search – estabelece um diálogo sutil com a revista-livro em que é uma das atrações: a inteligentíssima “Serrote” (224 páginas, R$ 29,90). Publicação quadrimestral do Instituto Moreira Salles, ela mal foi lançada e já é uma das melhores provas disponíveis no mercado brasileiro de que os ideais (utópicos?) do Iluminismo não se apagaram por completo. Um produto para a elite? Sem…
Sou um homem doente… Sou mau. Nada tenho de simpático. Julgo estar doente do fígado, embora não o perceba nem saiba ao certo onde reside meu mal. Não me trato, e nunca me tratei, por muito que considere a medicina e os médicos, pois sou altamente supersticioso, pelo menos o bastante para ter fé na medicina. (Possuo instrução suficiente para não ser supersticioso e, no entanto, sou…) Não, se não me trato é por pura maldade: é assim mesmo. O senhor não compreenderá isto, por acaso? Pois compreendo-o e basta. Não há dúvida de que eu não conseguiria explicar a quem prejudico neste caso, com a minha maldade. Compreendo perfeitamente que, não me tratando, não prejudico a ninguém, nem sequer os médicos; sei melhor do que ninguém que só a mim próprio prejudico. Não importa; se não me trato é por maldade. Tenho o fígado doente? Pois que rebente! Eis o início de um impressionante caso de existencialismo antes do tempo: o de “Memórias do subterrâneo” (Nova Aguilar, volume II da Obra Completa, tradução de Natália Nunes), novela lançada em 1864 por Fiódor Dostoiévski.
Vestibular, aquilo que o Ministério da Educação estuda agora extinguir, é um brasileirismo para algo que em Portugal costuma ser chamado de exame de acesso à universidade. Trata-se de um adjetivo que se substantivou, num processo semelhante ao que ocorreu com celular, qualificativo de telefone que tenta – e na maioria das vezes consegue – expulsar a palavra principal de cena sob uma pertinente alegação de redundância, tomando para si o lugar de substantivo. Pois o exame vestibular, de tão consagrado no vocabulário de gerações e gerações de estudantes brasileiros que perderam o sono por causa dele, acabou conhecido como vestibular só. E qualquer associação remota com a palavra que está em sua origem – vestíbulo – se perdeu nesse processo. Quando ainda era claramente um adjetivo, ficava mais fácil perceber a metáfora que, com certa dose de pernosticismo, levou a palavra vestibular a ser escolhida para qualificar o processo de seleção de candidatos ao ensino superior. Vestíbulo (do latim vestibulum) é, na origem, um termo de arquitetura que significa pórtico, alpendre ou pátio externo, mas que pode ser usado também, em sentido mais amplo, para designar um átrio, uma ante-sala, qualquer cômodo ou ambiente de passagem entre a porta…
Hoje às 21h30 estarei no programa “Espaço Aberto”, da GloboNews, conversando com Edney Silvestre sobre “Elza, a garota”. Horário ingrato, eu sei. Mas rolam reprises amanhã em três horários (1h30, 8h30 e 16h30), domingo às 6h05 e, por fim, segunda-feira às 12h30.
Todos os leitores do Todoprosa estão convidados a comemorar comigo:
Atendendo a pedidos, segue um trecho do capítulo 5 de “Elza, a garota”. Quem conta esta história é Xerxes, um velho comunista de 94 anos que conheceu (biblicamente, será?) a moça do título: Na noite de sábado, peguei o trem para São Paulo com mais três camaradas, dois que eu nem me lembro e o Guarani. Descemos na Estação da Luz na manhã do domingo, o domingo em que seria a passeata, junto com gente que vinha de tudo quanto era lado, de Santos, do Sul, do Rio, de Minas, estivadores do tamanho daquelas estátuas realistas-socialistas ao lado de funcionários públicos com óculos fundo-de-garrafa e musculatura de louva-deus – tinha de tudo. Na estação, já começamos a sentir o clima. Estava um dia bonito, e como tínhamos algumas horas para matar antes da passeata propus um passeio pela cidade, que eu não conhecia, mas o Guarani disse que o combinado era irmos direto para a casa de um camarada nosso, um gráfico chamado Enzo, que morava no Brás. Lá seria a concentração de alguns companheiros, almoçaríamos de graça antes de seguir num grupo maior para a Praça da Sé. Chegamos antes das dez e a casa já estava cheia. Era…
Posso vender meu peixe mais um pouco? É esta semana só: mais uns dias e a gente vira o disco, melhor dizendo, passa para a próxima lista de reprodução. Quem estiver interessado numa entrevista mais lenta e profunda sobre “Elza, a garota”, e transcrita de uma forma fascinantemente literal que expõe a gagueira mental do autor (como diria Silvio Romero), não deve perder a versão integral da conversa que tive com Miguel Conde, do “Prosa & Verso”, publicada no blog homônimo. Sobre a versão condensada de pingue-pongue que, no último sábado, escoltava a densa resenha de Sérgio de Sá no “Globo” de papel, ela leva a vantagem nada desprezível do espaço virtual ilimitado. E quem morar no Rio e não tiver programa melhor para esta quinta-feira, dia 26, será muito bem-vindo para tomar um prosecco e trocar dois dedos de prosa comigo na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, onde estarei autografando o livro a partir das 19h.
A primeira coisa que a parteira notou ao ajudar Michael K a sair de dentro da mãe para dentro do mundo foi que tinha lábio leporino. O lábio enrolado como pé de caramujo, a narina esquerda fendida. Escondeu a criança da mãe por um momento, enfiou o dedo no botãozinho de boca e ficou agradecida de ver que o palato estava inteiro. O começo de “Vida e época de Michael K” (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira), romance de J.M. Coetzee lançado em 1983 e premiado com o Booker, marca também o início da consagração internacional do grande escritor sul-africano.
O bônus da discórdia que a seguradora AIG quer pagar a seus principais executivos é uma palavra que o vocabulário financeiro americano importou no último quarto do século 18 do latim bonus, um adjetivo que significa bom, para nomear uma remuneração suplementar, um ganho extra pago aos investidores. Quando bônus desembarcou no português com esse mesmo sentido, cerca de um século mais tarde, já existiam por aqui tanto o verbo bonificar quanto o substantivo bonificação, do francês bonifier e bonification. O significado é idêntico e a origem, no mínimo, semelhante. (Bonificar também queria dizer inicialmente beneficiar, tornar mais produtivo, mas tal acepção caiu em desuso.) De todo modo, foi na cultura americana que o bônus – como palavra e como prática – se consolidou primeiro com o sentido restrito que agora provoca polêmica. Uma reportagem da revista eletrônica “Slate” situa a origem do bônus como suplemento salarial na moda, surgida em diversas empresas em fins do século 19, de dar presentes de Natal a seus principais funcionários. Poucos anos depois, alguns empresários tinham trocado os presentes por uma remuneração em dinheiro – suplemento que em 1952, por lei, passou a ser considerado parte integrante do salário sempre que fosse pago…
Barack Obama ganhou perto de 2,5 milhões de dólares em direitos autorais ano passado.