Clique para visitar a página do escritor.
A pré-história é uma tremenda história
Pelo mundo / 14/09/2013

Um curioso artigo de Jennifer Vanderbes na revista The Atlantic (aqui, em inglês), intitulado “O argumento evolutivo em favor da ficção de qualidade”, ganha de saída minha simpatia. Como se sabe, vivemos tempos difíceis para a tal ficção de qualidade, um tempo em que alguns de seus ex-aliados se atarefam em graves demonstrações teóricas de que a ficção está esgotada, fetichizada, transformada em mercadoria, e de qualquer modo a ideia de qualidade nunca passou de miragem ideológica, certo? Num quadro tão hostil, qualquer palavra endereçada no sentido contrário é bem-vinda para quem se recusa, talvez por pura teimosia, a abandonar a ideia de que a literatura expressa algo de vital sobre o mundo e a experiência humana que nenhuma outra linguagem pode expressar. Seja lá o que for esse algo. Convenhamos: parece melhor que a encomenda uma defesa darwinista do poder da contação de histórias que começa ao redor de uma fogueira do Pleistosceno, 45 mil anos atrás, como se vê na ilustração acima, de Viktor M. Vasnetsov, que acompanha o artigo. Na verdade, o que Vanderbes faz, de um ponto de vista da psicologia evolutiva, não é muito diferente de outras defesas do papel estruturante das narrativas na forma…

‘Asco’: receita para adorar a pátria pelo avesso
Resenha / 07/09/2013

Um homem que se mudou há quase duas décadas para o Canadá, mas acaba de voltar ao país natal para o enterro de sua mãe, reencontra um velho amigo dos tempos de estudante no bar de uma grande cidade terceiro-mundista. Bebem uísque e batem papo. Ou melhor, até onde nos é dado ouvir a conversa, apenas o recém-chegado fala, fala sem parar. O outro ouve com atenção (a julgar por sua capacidade de reproduzir depois, com riqueza de detalhes, o discurso do amigo, limitando-se a pontuá-lo aqui e ali com “disse fulano”), mas não emite opinião alguma. Não que se saiba. A questão de quem fala o quê – e quem reproduz o quê – é importante por mais de uma razão, como veremos. A primeira e mais evidente: o que aquele canadense adotivo despeja num bloco inteiriço do tamanho de uma novela curta é uma hiperbólica, obsessiva, ultrajante, engraçadíssima coleção de insultos ao país que deixou para trás. Como num catálogo turístico em negativo, nenhum aspecto da terra escapa de ser apresentado como asqueroso: povo, cultura, políticos de direita e esquerda, militares, grandes vultos históricos, clima, culinária, arquitetura, caráter, educação, inteligência, tudo ali representa, segundo ele, o ponto mais…

O dia em que Pelé desafiou Deus

httpv://www.youtube.com/watch?v=-UzRsvCsC4c Adianto abaixo o primeiro capítulo de meu novo romance, “O drible”, que será lançado no dia 26 de setembro pela Companhia das Letras. Antes, durante ou depois da leitura, recomenda-se assistir (acima) ao mais famoso quase-gol da história do futebol. Outro trecho do livro foi publicado pela “Folha de S.Paulo” no caderno Ilustríssima de domingo passado, aqui. Para os leitores do Rio: estarei hoje às 18h30 no Placar Literário da Bienal do Livro para falar de “O drible” e os dribles que a literatura pode dar. Apareçam. * A TV é uma velha trambolhuda de tubo de imagem. O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro. O que você vê primeiro é uma imagem parada que logo identifica como da Copa de 1970 pelo short da seleção brasileira, que é de um azul mais claro que o habitual, além de escandalosamente curto para os padrões de hoje. Tostão, cabeçudo inconfundível, número 9 às costas, conduz a bola observado a certa distância por um sujeito de camisa azul-clara e calção preto. Murilo solta…

Para ler os conselhos literários de Elmore Leonard
Vida literária / 24/08/2013

Listas de conselhos de escritores são um gênero jornalístico de qualidade duvidosa, apesar de sempre atraírem leitores aos magotes – o número de aprendizes das letras que há no mundo, muitos deles inseguros dos caminhos que começam a trilhar, garante seu sucesso. A morte do americano Elmore Leonard, na última terça-feira, aos 87 anos, rendeu grande exposição ao seguinte decálogo elaborado para o “New York Times” em 2001 pelo maior mestre dos romances policiais (e de faroeste, gênero no qual começou a carreira) da segunda metade do século XX: Nunca inicie um livro falando do tempo. Evite prólogos. Nunca use um verbo que não seja “disse” para os diálogos. Nunca use um advérbio para modificar o verbo “disse”. Mantenha seus pontos de exclamação sob controle. Nunca use as palavras “subitamente” ou “começou uma confusão dos diabos”. Use com parcimônia dialetos regionais e gírias. Evite descrições detalhadas dos personagens. Não entre em detalhes demais ao descrever lugares e coisas. Tente deixar de fora as partes que os leitores pulam. No fim, um décimo primeiro conselho aparece como o resumo de tudo: Se parece que foi escrito, eu reescrevo. A lista de Leonard – escritor que muito admiro e no qual fui…

Elmore Leonard (1925-2013) e a glória
Pelo mundo / 20/08/2013

A morte do escritor americano Elmore Leonard, hoje, aos 87 anos, me levou a buscar um post de pouco menos de um ano atrás (que vai reproduzido abaixo na íntegra) em que saudei sua chegada a uma certa glória literária oficial, na forma de uma condecoração da National Book Foundation e do lançamento de seus livros pela Library of America. A conclusão era a de que o reconhecimento, merecido, era melhor para o establishment do que para Leonard – embora fosse bom para os dois. Essa impressão é ainda mais forte hoje. * Fiquei muito feliz com a notícia (em inglês) de que o escritor americano Elmore Leonard, 86 anos, autor de um punhado dos melhores romances policiais e de faroeste de todos os tempos, vai receber a medalha da National Book Foundation pelo conjunto da obra, uma honraria que costuma ser abiscoitada por escritores mais “sérios” como John Updike, Gore Vidal e Toni Morrison. Além disso, a Library of America reunirá seus policiais em três volumes de capa dura. Pode ser que esses passos no sentido da canonização não signifiquem muita coisa para o ex-publicitário recluso que vive há décadas de seus livros, produzidos ao ritmo de um por…

Tóibín concebe Maria com pecado
Resenha / 17/08/2013

Em termos literários, Maria, a mãe de Jesus, aparece no Novo Testamento como uma personagem pouco desenvolvida: sem pecado, amorosa, silenciosa, discreta, está lá para criar um filho destinado à glória e ao martírio sem uma única queixa. Não demora a escorregar para a periferia da ação, mas volta no fim para acolher o cadáver destroçado do homem que gerou e representar a mater dolorosa. É o que se poderia chamar de um tipo, um estereótipo da mãe perfeita, não exatamente um personagem humano – o que, se é insatisfatório de um ponto de vista secular, literário ou mesmo histórico, funcionou divinamente na narrativa mitológica que fundou o cristianismo, como comprova o duradouro poder simbólico e imagético de sua figura. Na curta, concentrada novela “O testamento de Maria” (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster, 88 páginas, R$ 29), o escritor irlandês Colm Tóibín encara um desafio que, pensando bem, acho curioso que só seja encarado agora, após tantas décadas de feminismo: reivindicar Maria para a literatura e transformá-la numa mulher de três dimensões, narradora de sua triste história. O resultado é um livro belo e estranho, ao mesmo tempo previsivelmente herético e surpreendentemente respeitoso. A princípio concebida como um…

Estamos de olho: Flaubert, Machado e as ‘janelas da alma’
Vida literária / 10/08/2013

No fascinante romance-ensaio “O papagaio de Flaubert”, lançado em 1984, o francófilo escritor inglês Julian Barnes dedica um capítulo aos olhos de Emma Bovary. Nele faz, em miniatura, uma grande e já célebre crítica à crítica acadêmica na pessoa de Enid Starkie, renomada biógrafa de Gustave Flaubert e professora de Oxford. “Flaubert não constrói seus personagens, como fazia Balzac, por meio da descrição objetiva de traços exteriores”, afirma Starkie, que já tinha morrido quando Barnes escreveu seu livro, lembrada pelo narrador Geoffrey Braithwaite. “Na verdade, ele é tão descuidado com a aparência deles que a certa altura atribui a Emma olhos castanhos; em outra, olhos profundamente negros; e numa terceira, olhos azuis.” Alter ego do autor, Braithwaite fica muito incomodado com isso. Como é possível que, obcecado pelo romance de Flaubert, nunca tivesse reparado em tão grosseira inconsistência? Voltando ao texto, sua irritação muda de endereço. No fim das contas fica evidente que o escritor francês queria que os olhos de Bovary fossem cambiantes: naturalmente castanhos, pareciam negros sob a sombra dos cílios e podiam adquirir um surpreendente tom de azul escuro quando a luz incidia neles de certa forma. Conclui Braithwaite/Barnes: “Seria interessante comparar o tempo gasto por Flaubert…

Nasce um campo de pesquisa: o dos estudos nasoliterários
Vida literária / 03/08/2013

A notícia do jornal inglês “The Guardian” foi publicada na editoria de livros, mas também poderia estar na de economia e negócios ou mesmo na de ciências – para não mencionar, em nota mais cínica, a de fait divers, onde se agrupam histórias soltas e bizarrices em geral. Trata-se da conclusão a que chegou uma pesquisa de consumo realizada na Bélgica com frequentadores de livrarias de rua: a de que o cheiro de chocolate deixa as pessoas significativamente mais propensas a comprar romances românticos – romance novels, um gênero que não tem identidade literária tão clara no Brasil, mas que é facilmente reconhecível pelas capas com heroínas suspirosas e pelas vendas expressivas. Manja Barbara Cartland? O aroma em questão, bem entendido, é espargido na livraria e não nos volumes em si (será esse o próximo passo das editoras em sua luta para injetar ânimo nos combalidos livros físicos?). Como se sabe, o estudo das relações entre o olfato e certas inclinações de comportamento, sobretudo quando se trata de abrir a carteira, não é exatamente novo. Lojas com variados perfumes estratégicos – de abaunilhados a frutados e florais, aromas supostamente acolhedores para estimular a permanência do cliente ou excitantes para fazê-lo…

Contra o romance
Vida literária / 27/07/2013

No apêndice de seu ensaio “O romance sob acusação”, o crítico e escritor italiano Walter Siti traz uma interessante coleção de provas documentais – algumas delas famosas – do escândalo moral ou político que trabalhos de ficção provocaram em seu tempo. Gosto especialmente da argumentação de Ernest Pinard em sua sustentação oral no processo de 1857 contra “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert. O advogado nega a certa altura que o fim trágico da protagonista possa servir de atenuante ao crime de “ofensa à moral pública e à religião”: Digo, senhores, que os detalhes lascivos não podem ser acobertados por uma conclusão moral, caso contrário poder-se-iam contar todas as orgias imagináveis, descrever todas as torpezas de uma mulher pública, fazendo-a morrer sobre uma miserável cama de hospital. Seria permitido estudar e mostrar todas as poses lascivas! Seria ir contra todas as regras do bom senso. Seria colocar o veneno ao alcance de todos e o remédio ao alcance de poucos, caso houvesse um remédio. Quem lê o romance do sr. Flaubert? Serão homens que se ocupam de economia política ou social? Não! As páginas levianas de ‘Madame Bovary’ caem em mãos mais levianas, nas mãos de moças, algumas vezes de mulheres…

Escrever, cortar, escrever: a concisão e a clareza
Vida literária / 20/07/2013

“Escrever é cortar palavras”, disse Carlos Drummond de Andrade, mas talvez não tenha sido ele: parece que, na ânsia de enxugar, alguém acabou cortando o crédito. Importa pouco a autoria do conselho. Com essas ou outras palavras, o elogio da concisão é a lição mais ouvida por aprendizes das letras há mais de cem anos. Quer dizer que antes disso o poder de síntese não valia nada? Claro que valia. Os poetas da antiga Grécia cultivaram a brevidade do epigrama. No início do século XVIII, o poeta inglês Alexander Pope, tradutor de Homero, dizia que palavras são como folhas de árvore: quando são muito abundantes, diminui a chance de vislumbrarmos ali embaixo “o fruto do sentido”. No entanto, parece ter sido nas primeiras décadas do século XX que o relógio do mundo acelerou de vez e deixou com cara de obesa uma silhueta textual – a palavrosa – que até então ainda podia ser vista como atraente e saudável. Mais ou menos o que tinha ocorrido um pouco antes com as mulheres de Rubens. Pode-se relacionar esse aguçamento da intolerância ao desperdício vocabular a uma série de fenômenos, como a industrialização e a vida urbana. Parece claro que um papel…

Banville e a máquina de produzir epifanias
Resenha / 13/07/2013

Reconheço que o alerta pode afugentar leitores deste texto que mal começa, mas paciência: muitas vezes, ler demais sobre um escritor atrapalha a leitura do próprio escritor. Veja-se o caso do irlandês John Banville, que acaba de vir à Flip a bordo de seu último romance, “Luz antiga” (Biblioteca Azul, tradução de Sergio Flaksman, 336 páginas, R$ 39,90). Quando se sabe que o próprio Banville se considera um raro – talvez até único, embora isso não fique claro – artista verdadeiro das letras num cenário internacional povoado de artesãos no máximo competentes e outros fornecedores de conteúdo para o mercado editorial, um representante implacável da literatura highbrow num mundo definitivamente middlebrow, é tentador transformar a leitura num teste e adotar, após meia dúzia de páginas, uma de duas posturas: ficar a favor de tal juízo presunçoso, encontrando a cada linha a confirmação de seu acerto, ou ficar contra o mesmo juízo e descobrir em cada linha seu desmentido categórico. Em outras palavras: ou Banville é um gênio ou é uma besta. Não por acaso, encontram-se por aí as duas leituras. Ambas são desculpáveis, pois é o personagem arrogante construído pelo próprio romancista, sobretudo a partir de sua premiação com o…

Como o português pode salvar sua vida
Resenha / 06/07/2013

A reedição de “Como aprendi o português e outras aventuras” (Casa da Palavra e Fundação Biblioteca Nacional, 264 páginas, R$ 34,00), coletânea de artigos, crônicas e breves ensaios escritos nos anos 1940-50 por Paulo Rónai (1907-1992), é uma excelente notícia. A edição em formato de bolso traz de volta à circulação um livro tão espirituoso quanto comovente. Vamos direto ao ponto: a paixão pelo português salvou a vida de Rónai. Literalmente. Judeu húngaro, o erudito naturalizou-se brasileiro em 1945 e, em décadas de atividade incessante como professor de línguas, tradutor e crítico literário, retribuiu o favor tornando nosso país mais inteligente e sintonizado com a melhor tradição humanista europeia que ele representava tão bem. Dito assim, o resumo da ópera pode sugerir um livro de tom épico, mas parte de sua graça é ser o oposto disso – bem-humorado, despretensioso e autoirônico como o próprio autor. Grandiloquente é apenas o pano de fundo histórico em que se deu a aventura linguística que mudou a vida de Rónai: quando, aos 32 anos, já poliglota, ele começou a estudar português em Budapeste como um dos desdobramentos naturais de seu interesse por latim, corria o ano de 1939 e a Segunda Guerra Mundial…

‘O retrato de Dorian Gray’: mais jovem do que nunca
Resenha / 29/06/2013

O primeiro aspecto desconcertante de “O retrato de Dorian Gray – edição anotada e sem censura” é o que se poderia chamar de paradoxo do tamanho. Costumamos pensar no verbo censurar como sinônimo de suprimir, cortar – não à toa, é uma tesoura seu símbolo universal. No entanto, a edição da obra-prima de Oscar Wilde organizada pelo pesquisador acadêmico Nicholas Frankel (Biblioteca Azul, tradução de Jorio Dauster, 352 páginas, R$ 64,90), alegadamente fiel até a última vírgula à primeira versão datilografada e emendada à mão pelo escritor irlandês em 1890, é consideravelmente menor do que aquela que seria publicada no ano seguinte em livro e admirada por gerações de leitores: tem apenas treze capítulos, sete a menos do que o texto canônico. Que censura foi aquela? Na resposta a essa pergunta, que não é simples, vamos encontrar o pecado (menor) e a virtude (imensa) do trabalho de Frankel. Primeiro, o pecado: sim, há um leve toque de sensacionalismo na simplificação que o subtítulo abraça ao falar em “sem censura” (no original, uncensored). A realidade é mais complicada. O que houve foi um processo tortuoso em que, em primeiro lugar, o texto passou pelo crivo dos editores da revista americana “Lippincott’s”,…

Todoprosa, ano 8: blog, eu?
Vida literária / 21/06/2013

No dia 8 de maio de 2006, um texto chamado “Futebol, literatura e caneladas” – comentário sobre a suposta dívida que, segundo muitos críticos, a literatura brasileira tem com o futebol – inaugurava este blog. Não que eu tivesse inteira consciência, àquela altura, do que significava começar um blog. Essa palavra, blog, ainda era mais empregada para nomear páginas marcadamente pessoais, de umbigo à mostra, e a ideia do Todoprosa era diferente: ser uma coluna jornalística que suprisse a lacuna da cobertura de livros na (finada) revista eletrônica NoMínimo, da qual eu era editor executivo. Sim, a coluna teria atualização diária, não se furtaria a trazer links nacionais e estrangeiros quando estes fossem pertinentes, seria aberta a comentários dos leitores – incorporaria tudo o que o meio digital pudesse acrescentar, em termos de calor e vibração, a uma coluna jornalística. Mas coluna jornalística seria, e foi mesmo. Nunca deixou de ser. Isso não quer dizer que não tenha sido também um blog. Formado na velha imprensa de papel (não peguei os lampiões a gás, mas ainda havia máquinas de escrever na redação do “Jornal do Brasil” quando lá cheguei como foca em 1984), acabei aprendendo aos trancos, mas depressa, que…

Que cena! O encontro com a morte, segundo Crane
Antologia / 19/06/2013

O clássico “O emblema vermelho da coragem”, de Stephen Crane (Penguin-Companhia, 2010, tradução deste que vos digita, 216 páginas), romance definitivo sobre a Guerra Civil Americana que o precoce autor (1871-1900) lançou quando tinha apenas 24 anos e nenhuma experiência de batalha, tira pelo menos parte de sua estranha força do contraste entre o vastíssimo cenário épico da guerra e o olhar impressionista por meio do qual o narrador em terceira pessoa filtra tudo para o leitor: o de um jovem, ensimesmado e torturado soldado de primeira viagem que, já em seu batismo de fogo, se descobre um covarde. (Com típico excesso explicativo, chamou-se no mercado brasileiro “A glória de um covarde” a adaptação cinematográfica de 1951 dirigida por John Huston.) Depois de fugir do fogo e passar a vagar sozinho pelos campos em luta feroz com sua consciência, cruzando com grupos de soldados vivos e mortos em situações variadas, o “soldado jovem” que conduz a história, chamado Henry Fleming, encontra numa longa coluna de feridos que caminha em direção à retaguarda seu amigo e companheiro de pelotão Jim Conklin, o “praça alto”, que está evidentemente nas últimas. Ao lado de outro personagem, o “soldado maltrapilho”, o jovem passa a…

Em defesa de Alice Munro
Pelo mundo , Vida literária / 17/06/2013

Trata-se de uma espécie de “Sobre a arte de jogar pedra nos clássicos – parte 2”: na revista eletrônica Salon.com, o escritor Kyle Minor sai em defesa da contista canadense Alice Munro (foto), que foi esculachada dos pés à cabeça por uma resenha de Christian Lonrentzen na prestigiosa London Review of Books (os dois textos em inglês, acesso gratuito). Alice Munro atingiu um lugar de proeminência literária, e quando um escritor atinge um lugar de proeminência literária, pode acontecer que um crítico encarregado de resenhar seu novo livro se sinta tentado a transformar a encomenda numa oportunidade de fazer uma declaração bombástica sobre o tal escritor proeminente – e dessa forma fazer uma declaração bombástica sobre a literatura contemporânea, a cultura literária contemporânea ou a crítica literária contemporânea. Há dois caminhos comuns pelos quais esse tipo de declaração bombástica pode dar errado – o da santificação e o da iconoclastia. O crítico do tipo santificador despeja sobre o escritor uma ducha de elogios incondicionais, declara-o um gênio e ignora seus defeitos – ou diz que eles são virtudes. O outro tipo de crítico talvez decida que o modo mais seguro de esvaziar o balão de uma reputação hiperbólica não é…

Essa vida dura de escritor, segundo o Monty Python
Pop de sexta / 14/06/2013

httpv://www.youtube.com/watch?v=jOEZr3fR2uA “O que você sabe sobre acordar às cinco da manhã para voar para Paris?”, pergunta o pai (Graham Chapman), um velho e rude dramaturgo de sucesso, ao filho (Eric Idle), um jovem e polido mineiro de carvão, no calor do bate-boca que deixa a mãe (Terry Jones) aflita. Sim, alguma coisa está – muito – fora da ordem nessa versão nonsense do imemorial conflito de gerações. Casos de empate são admissíveis em tese, mas dificilmente o truque cômico dos papéis trocados terá sido empregado algum dia com mais eficácia do que em Working-class playwright, esquete (legendas em espanhol) que foi ao ar na temporada de 1969 do Monty Python’s Flying Circus, a primeira do programa de TV que o grupo britânico manteve na BBC até 1974. “Vou dizer o que está errado com o senhor!”, retruca o filho a certa altura. “Sua cabeça está turvada de romances e poemas. O senhor volta para casa toda noite recendendo a Château Latour. E veja o que fez com a mamãe! Ela está acabada de tanto encontrar estrelas do cinema, frequentar premières e oferecer almoços de gala!” “Não tem nada errado com almoços de gala, rapaz!” (…) “Um dia o senhor vai…