Embora avessa aos salamaleques da glória oficial, Clarice Lispector não recusaria a homenagem dos vereadores do Rio de Janeiro (veja nota abaixo). A opinião é da escritora Vilma Arêas, professora de literatura da Unicamp. Vilma é autora do livro de crítica “Clarice Lispector na ponta dos dedos” (Companhia das Letras, 192 páginas, R$ 35), lançado na Flip do ano passado, que teve a autora de “A paixão segundo G.H” como homenageada. Clarice teria ficado feliz com o título de cidadã carioca honorária? – Ela não ficava à vontade nessas ocasiões porque não gostava muito de falar em público, agradecer as homenagens e prêmios que recebia. Mas acho que gostaria do título, porque gostava muito do Rio. Mesmo sendo uma homenagem mais política do que literária, não acredito que recusasse. Como anda a cotação de Clarice entre os novos leitores? E entre os escritores, existe alguém que seja claramente influenciado por ela? – As novas gerações continuam lendo Clarice e, o que chama mais a atenção, estão representando muito os textos dela também. No circuito universitário de teatro, vi recentemente adaptações de “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” e “A hora da estrela”. Esta, principalmente, era muito boa, com a…
O grande filme “Capote”, que tem como uma de suas melhores subtramas a relação complexa dos dois, ajudou a reavivar o interesse por algumas velhas questões. E se Truman Capote for o verdadeiro autor de “O sol é para todos” (To kill a mockingbird), de sua amiga Harper Lee? Ou num caminho inverso – e se a participação de Harper Lee em “A sangue frio” (In cold blood) tiver sido maior do que seu vaidoso autor era capaz de admitir? Aparentemente, nem uma coisa nem outra. Mas não admira que rumores como esses tenham ganhado corpo diante da absurda improbabilidade que Truman Capote e Harper Lee representavam: a de dois amigos interioranos de infância, vizinhos, que na adolescância dividiam a mesma máquina de escrever, se tornarem, cada um na sua praia, clássicos indiscutíveis da literatura americana. E para deixar tudo mais estranho – ele, absurdamente afeminado, sendo o negativo dela. Essas e outras histórias estão na boa resenha (em inglês) de Thomas Mallon na última “The New Yorker”, sobre uma nova biografia de Harper Lee, Mockingbird, de Charles J. Shields.
Convite que circula no Rio: O Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, Vereador Ivan Moreira, tem a honra de convidar para a solenidade de entrega do título de Cidadã Honorária do Município do Rio de Janeiro, post mortem, à escritora Clarice Lispector, por iniciativa do Exmo. Sr. Vereador Eliomar Coelho, a realizar-se no dia 02 de junho de 2006, às 17:00 horas. Demorou, não? Clarice (1920-1977) merece todas as homenagens – mesmo uma de prestígio em frangalhos como essa dos vereadores cariocas –, mas é engraçado imaginar sua provável reação de desprezo a tal tipo de “glória oficial”. Lendo o convite, me lembrei de uma frase do finzinho de “A hora da estrela”, quando Macabéa morre: “Morta, os sinos badalavam mas sem que seus bronzes lhes dessem som”.
Chega esta semana às livrarias um lançamento útil para escritores, especialmente iniciantes, e críticos, além de divertido para os leitores mais cascudos de literatura: “A voz do escritor” (Civilização Brasileira, tradução de Luiz Antonio Aguiar, 160 páginas, R$ 28,90), do poeta, crítico e ensaísta inglês A.Alvarez. O lançamento tem algo de surpreendente. Trata-se de um livro menor de alguém que está longe de ser um nome vendedor no Brasil, embora tenha história. Ex-editor de poesia e antologista, amigo de Sylvia Plath e autor de um clássico sobre o suicídio (“Deus selvagem”, lançado aqui pela Companhia das Letras), A.Alvarez, de 76 anos, é também um ensaísta eclético que dedicou volumes inteiros a assuntos como pôquer e divórcio. Uma figura. “A voz do escritor”, baseado numa série de palestras proferidas pelo autor na Biblioteca Pública de Nova York em 2002, mergulha de cabeça num assunto nebuloso que, embora posto de lado como esoterismo por críticos mais “científicos”, é para muita gente que escreve profissionalmente a questão entre todas do ofício: como cada escritor encontra – ou não encontra – sua voz própria, inconfundível. Bem, para começar, que papo é esse de “voz”? Sinônimo de estilo? Para Alvarez, é mais profundo que isso….
A maior desonestidade literária do nosso tempo não é o plágio, essa velha praga que pode estar ganhando fôlego renovado na era digital e que a jovem copiadora de Harvard trouxe recentemente para o centro das conversas (veja nota abaixo). Pior do que isso, a meu ver, é o escritor-franquia, o escritor-marca, que nos últimos anos já não escreve sequer uma linha de seus livros. Como, entre outros, o best seller Robert Ludlum. Pelo menos em tese (pois há indícios de que alguns já não fazem nem isso), o escritor que não escreve se limita a conceber suas obras. Imagina um personagem como – digamos, num rasgo de imaginação – um agente da CIA. Em seguida, se sobrar tempo, talvez bole um fiapo de enredo de três linhas. O resto, ou seja, a tarefa lenta e penosa de escrever o livro, é trabalho para a “equipe” da dita celebridade. Esse sistema de franquia já operou pelo menos um prodígio quase sobrenatural. Ludlum morreu em 2001 e continua despejando nas prateleiras mais títulos do que a maioria dos escritores no auge da saúde. Edições póstumas? Não. Os livros são inteiramente póstumos, foram escritos depois que seu “autor” morreu. O último deles,…
O novo romance do premiado escritor moçambicano Mia Couto, “O outro pé da sereia” (Companhia das Letras, 336 páginas, R$ 43), que acaba de sair em Portugal e chega às livrarias daqui no fim desta semana, une dois momentos históricos – 1560 e 2002 – por meio de uma relíquia que atravessa os séculos: uma velha imagem de Nossa Senhora com o pé quebrado. O sincretismo tecido em torno da santa serve de emblema da história de Moçambique. O trecho a seguir foi retirado do terceiro capítulo e joga o leitor em 1560, a bordo da nau portuguesa Nossa Senhora da Ajuda, que zarpou de Goa com destino à África levando a imagem benzida pelo papa e uma missão: converter infiéis: A vela pincelou de luz a estátua da Santa. Naquele bruxulear, a Virgem parecia animada de vida interior. O padre Antunes certificou-se de que a imagem estava bem apoiada, a salvo dos balanços do mar. Depois, fechou os olhos, deixando-se possuir pelo duplo embalo: da obscuridade e do mar. Acreditava estar dormindo quando um rosto pálido de mulher lhe inundou os sentidos. Era uma jovem despedindo-se na berma do rio Mandovi. Antunes seguia na canoa a caminho da nau…
Hoje é o dia que, não se sabe bem por quê, a imprensa de boa parte do mundo reservou para tratar de literatura. Algumas notícias garimpadas por aí: * Toni Morrison, que teve seu romance Beloved (“Amada”) eleito o melhor da ficção americana nos últimos 25 anos (nota abaixo), virá à Flip. A informação está na coluna No Prelo, de Mànya Millen e Rachel Bertol, no caderno Prosa & Verso do “Globo”. Ganhadora do Nobel, Morrison passa a ser assim o primeiro nome estelar garantido em Parati este ano. O caderno traz também uma resenha elogiosa sobre “Mãos de cavalo”, de Daniel Galera – o saldo está melhorando (veja abaixo). * O consagrado escritor angolano Luandino Vieira, que no Brasil é mais citado e estudado na universidade do que propriamente lido, ganhou o prêmio português Camões, informa a Folha de S. Paulo (só para assinantes do jornal ou do Uol). * O caderno Babelia (em espanhol), do “El Pais”, faz um carnaval com o novo romance do peruano Mario Vargas Llosa, que está comemorando 70 anos – a mesma idade de Luandino, embora isso não venha absolutamente ao caso. Tem uma boa entrevista e duas críticas, uma do novo livro,…
Leitores com gostos bizarros podem começar a torcer por uma tradução: aquele que é considerado o quarto e último romance escrito pelo ex-ditador iraquiano Saddam Hussein acaba de ser publicado no Japão. Chama-se “A dança do diabo” e é mais ou menos inédito: uma edição de dez mil exemplares freqüentou as prateleiras da Jordânia por um breve período no ano passado, antes de ser recolhida pelas autoridades do país. “A dança do diabo” conta a história de um líder árabe que organiza a resistência de seu povo a uma tentativa de invasão de suas terras por hordas judaico-cristãs – e vence. Consta que Saddam teria pingado o ponto final no livro pouco antes da invasão americana. Saddamistas (epa!) fiéis sentiram falta das cenas de sexo que apimentavam seu romance de estréia, publicado sob pseudônimo no Iraque em 2001. Notícia completa, em inglês, aqui.
Harry Potter e outros heróis juvenis, livros escritos por líderes religiosos e títulos didáticos lideraram o crescimento do mercado editorial americano no ano passado. Com um salto de 5,9% em relação a 2004, o faturamento total foi de 34,6 bilhões de dólares. O sexto título da série do mago, aqui traduzido como “Harry Potter e o enigma do príncipe” (Rocco), vendeu espantosos 11 milhões de exemplares só nas nove primeiras semanas após o lançamento nos EUA. Leia mais aqui, em inglês, mediante cadastro gratuito.
Entre “críticas” que raramente são mais que resenhas apressadas, notinhas em blogs e entrevistas oba-oba, tudo emparedado por sólidos muros de silêncio comodista da universidade, volta e meia eu me vejo intrigado e perplexo com a recepção dada a nossos livros pela elite cultural brasileira – aquela fatia fina da população que se interessa por literatura a ponto de perder seu tempo escrevendo ou lendo sobre um assunto tão, hmmm, inútil. Não me refiro apenas ao modo como as relações de amizade e compadrio se sobrepõem freqüentemente aos critérios estéticos – isso é assunto velho, e talvez não possa ser diferente num mundinho tão pequeno e de ar tão viciado. Quando falo em perplexidade, penso mais na forma como certos juízos se espalham rapidamente, sem contraditório, numa inércia em que a baixa média geral de leitura parece se mesclar ao medo de contrariar o bando. Isso gera maluquices, distorções e injustiças que, até certo ponto, sempre fizeram parte do jogo. Verdade – literatura não é para quem tem pele sensível e desiste fácil. Meu temor é que, a partir de um determinado ponto, as maluquices geradas por nossos mecanismos falhos de avaliação e difusão de novidades literárias tenham o poder…
Tenha um filho, escreva um livro e plante uma árvore, diz a velha receita da realização pessoal. Fórmula segura para que seu filho acabe lendo num deserto. A editora Random House (do supergrupo de comunicação alemão Bertelsmann) anunciou a meta de usar em seus livros 30% de papel reciclado até 2010 – hoje a proporção é de 3%. Segundo os cálculos da empresa, o novo patamar corresponderá à salvação de 550 mil árvores por ano. A notícia está aqui, em inglês, mediante cadastro gratuito. Enquanto isso, no Brasil, a discussão engatinha, a ponto de ter sido notícia, ano passado, a edição “ecologicamente correta” de “As intermitências da morte”, de José Saramago, pela Companhia das Letras. Por exigência do autor português, alinhado com uma campanha do Greenpeace, o livro foi o primeiro no Brasil a ganhar o selo internacional FSC, que atesta o cumprimento de boas normas ambientais – não necessariamente o uso de papel reciclado. A questão da reciclagem é complicada. Por um lado, o custo de produção sobe. Por outro, abre-se para a promoção do livro um terreno de marketing que tende a ter cada vez mais ressonância, até num país ambientalmente atrasado como o Brasil. Nem é preciso…
Uma inutilidade engraçadinha? Uma genial preparação para o aquecimento global? Uma das últimas novidades tecnológicas no mercado editorial é o livro à prova d’água, com páginas plastificadas e encadernação resistente à umidade. Assim é apresentada uma coletânea de “contos praieiros” chamada The beach book (“O livro da praia”), da editora americana Melcher Media. Embora se trate de literatura séria – Gabriel García Márquez, Isaac Bashevis Singer e Jeffrey Eugenides são alguns dos autores –, é inegável que o principal atrativo do livro é mesmo seu suporte físico. Mas um cliente da Amazon que o comprou alerta: “O tamanho é o de uma brochura normal, mas ele é muito mais pesado. Não é do tipo que se consegue segurar com uma mão só”.
O mundo vai ser cada vez mais de Paulo Coelho e cada vez menos de Paulo Mendes Campos. Sempre foi assim, mas o abismo entre o livro como objeto comercial e o livro como objeto cultural está se alargando. Em edição recente do ótimo caderno literário do jornal espanhol “El Pais”, o “Babelia”, um artigo de Esther Tusquets analisa a participação cada vez maior que os títulos de altíssima vendagem, apoiados em esquemas caros de propaganda, têm no bolo do mercado editorial. O que vale para a Espanha, no caso, vale para o mundo inteiro – e mais ainda para países como o Brasil, onde é mais baixo o nível médio de educação. O artigo (acesso livre, em espanhol) não vai muito além de apontar o dedo para problemas que todos conhecemos bem, mas o faz com bom poder de síntese. Abaixo, os argumentos principais: No plano individual e no nível de um país, a moda é inversamente proporcional à cultura: quanto maior é a base cultural, menor é a força da moda, que se torna avassaladora se a referida base for ínfima. O que ocorre no âmbito da leitura? Creio que aí as conseqüências do predomínio desmesurado da moda…
Acho que “O Paraíso é bem bacana” é um livro que tem tudo, todos os ingredientes para despertar interesse na Europa, principalmente na Alemanha. O Brasil ainda está meio na moda por lá, é ano de Copa do Mundo, e se discute o islamismo o tempo todo. Eu estava todo feliz com isso, fazendo planos, imaginando polêmicas internacionais. Mas, depois, percebi que, se o livro acontecer mesmo na Europa, pode ser que minha cabeça fique a prêmio, embora eu tenha uma profunda simpatia pela causa política dos muçulmanos. Do escritor André Sant’Anna em entrevista ao Portal Literal, revelando um misto de medo e desejo de que seu romance “O Paraíso é bem bacana” (Companhia das Letras, 452 páginas, R$ 51), sobre um jogador de futebol brasileiro que vai jogar na Alemanha e acaba virando homem-bomba, o transforme no Salman Rushdie tupiniquim.
O escritor suíço (radicado em Londres) Alain de Botton, autor de “Como Proust pode mudar sua vida” (Rocco), praticamente inventou um novo gênero literário, a auto-ajuda podre de chique (AAPC). A AAPC permite ao cidadão fazer aquela leitura utilitária típica da auto-ajuda mais rasteira – “como este livro pode me melhorar?”, pensa, calculando o custo-benefício de cada volume – e ao mesmo tempo desfrutar de uma sensação de refinamento intelectual que apaga qualquer culpa que tal pedestrianismo pudesse causar. Em termos comerciais, a AAPC é coisa de gênio. Como leitura, há quem goste. Não é o caso da crítica Rachel Aspden, da revista New Statesman (acesso livre, em inglês). O último livro do autor, “A arquitetura da felicidade”, um passeio pela história da arquitetura em busca daquilo que pode – claro – melhorar a nossa vida, é recebido por ela a golpes de marreta: “(O livro) é como um capuccino plastificado da Starbucks: consiste de 65% de banalidades acachapantes apresentadas sob uma espuma de polissílabos alatinados”.
Enquanto os fãs brasileiros do escritor francês Michel Houellebecq aguardam o lançamento por aqui de seu quarto romance, “A possibilidade de uma ilha” – ficção científica sobre uma religião que vende vida literalmente eterna, fazendo cópias clonadas em série de seus fiéis –, talvez ajude a matar o tempo ler o que escreve sobre a edição americana do livro o escritor John Updike. A crítica (acesso livre, em inglês) está na última edição da revista “The New Yorker”. Preparem-se que lá vem paulada – assim caminha a literatura em países pouco inclinados ao morno compadrio em que nos espojamos: Para descrédito de Houellebecq, ou pelo menos em prejuízo de seu romance, todo o seu meticuloso ódio a – e estridente impaciência com – a humanidade em seus tradicionais sentimentos e ocupações o impede de criar personagens dotados de conflitos e aspirações com os quais o leitor se importe. O herói habitual de Houellebecq, cujo monopólio de auto-expressão suga a maior parte do oxigênio da narrativa, se apresenta sob uma de duas formas: um eremita consumido por tédio e apatia ou um inflamado astro pornô. Em nenhum dos dois papéis ele solicita – ou recebe – muita simpatia. Quem quiser ver…
Este blog, fiel a seu nome, não discute poesia. Fabrício Carpinejar, o talentoso e festejado poeta gaúcho de 33 anos que escreveu, entre outros livros pelo menos interessantes, “Um terno de pássaros ao sul” e “Cinco Marias”, pode ou não ter sua importância exagerada pelo momento pouco exuberante da poesia brasileira – isso não vem ao caso. O certo é que nada me preparou para o choque de encontrar nas suas crônicas, reunidas no volume “O amor esquece de começar” (Bertrand Brasil, 288 páginas, R$ 35), o trabalho de um desenvolto seguidor de Artur da Távola. Entre o livro de Carpinejar e um Távola clássico como, digamos, “Do amor – Ensaio de enigma”, as diferenças são adjetivas ou nem isso. Por exemplo, qual dos dois escreveu, com rima involuntária e tudo, que “no momento em que a gente ama, é difícil não sentir timidez ao mostrar a nudez. Quem não tem vergonha não ama”? E quem disse que “a mulher que perdeu o seu amor é alguém com óculos de ver eclipse na alma. Fica com olhar de rinoceronte e olho de cambaxirra”? Um deles escreveu que “o casado não suporta fazer relatórios de onde vai e quando volta. O…