Reconheço que o alerta pode afugentar leitores deste texto que mal começa, mas paciência: muitas vezes, ler demais sobre um escritor atrapalha a leitura do próprio escritor. Veja-se o caso do irlandês John Banville, que acaba de vir à Flip a bordo de seu último romance, “Luz antiga” (Biblioteca Azul, tradução de Sergio Flaksman, 336 páginas, R$ 39,90).
Quando se sabe que o próprio Banville se considera um raro – talvez até único, embora isso não fique claro – artista verdadeiro das letras num cenário internacional povoado de artesãos no máximo competentes e outros fornecedores de conteúdo para o mercado editorial, um representante implacável da literatura highbrow num mundo definitivamente middlebrow, é tentador transformar a leitura num teste e adotar, após meia dúzia de páginas, uma de duas posturas: ficar a favor de tal juízo presunçoso, encontrando a cada linha a confirmação de seu acerto, ou ficar contra o mesmo juízo e descobrir em cada linha seu desmentido categórico. Em outras palavras: ou Banville é um gênio ou é uma besta.
Não por acaso, encontram-se por aí as duas leituras. Ambas são desculpáveis, pois é o personagem arrogante construído pelo próprio romancista, sobretudo a partir de sua premiação com o prestigioso Booker pelo ótimo “O mar”, em 2005, que as induz como reações demasiado humanas. Por mais que poses sejam elementos indissociáveis da forma como escritores são lidos, o fato pouco surpreendente é que Banville não é nem um gênio, nem uma besta. “Luz antiga” me pareceu um livro com momentos excelentes e algumas limitações sérias.
O narrador Alex Cleave, ator de teatro aposentado, divide sua história entre dois tempos principais: recorda com detalhes o caso amoroso que teve na adolescência com uma mulher casada, a sra Gray, mãe de seu melhor amigo, enquanto administra no presente as ruínas de um casamento destruído há dez anos pelo suicídio de sua única filha, Cass, e acaba se envolvendo no projeto de um longa-metragem sobre o misterioso e meio picareta teórico da literatura Axel Vander. Nessa aventura cinematográfica, inédita em sua carreira, aproxima-se de uma grande estrela das telas, Dawn Devonport, seu par romântico na história, com quem desenvolve uma relação ambígua.
O tema central explícito, martelado com insistência, é a fluidez da fronteira entre memória e invenção. Presos a um passado enigmático mas inapelável, a cujos despojos dão o nome de presente, os personagens são solitários, fraturados por perdas terríveis, praticamente incomunicáveis. Ao sabor das circunstâncias, podem se roçar como pedras, projetar sombras uns sobre os outros, mas a impermeabilidade de cada vida é um dado. Todo mundo é indecifrável para Alex, inclusive ele mesmo. Há nessa visão de mundo – que talvez fosse mais apropriado chamar de atmosfera – alguma beleza trágica, mas uma espécie de conformismo também. Excluída a ação, a possibilidade de transformação, o narrador é pouco mais que um ser contemplativo.
Preenche o vácuo uma trama cada vez mais intrincada de fios simbólicos entre os personagens (alguns deles já abordados em romances anteriores de Banville, ainda inéditos no Brasil, o que talvez sirva de álibi para seu subdesenvolvimento atual). Axel, anagrama de Alex, pode estar envolvido na morte de Cass, que por sua vez revive na figura de Dawn. O autor da biografia em que se baseia o tal filme, J.B., tem as iniciais do autor do romance e um estilo rebuscado que Alex ridiculariza como “retórico ao extremo, totalmente sintético, artificial e atravancado”. A piada com a crítica que o próprio Banville costuma colher por sua prosa barrocamente elaborada é divertida. É também, dos muitos tiques pós-modernos do livro, um dos poucos que não dão a impressão de terem sido encaixados ali para fazer pose (de novo).
O que funciona mesmo em “Luz antiga”, em seus melhores momentos, é a principal arma de Banville em todos os seus livros: o tal estilo “retórico ao extremo, totalmente sintético, artificial e atravancado”, de tradução tão difícil quanto a poesia – tarefa inglória da qual Flaksman se desincumbe, em geral, de modo satisfatório. Com suas descrições minuciosas e musicais de sensações, paisagens, objetos, peças de roupa, partes do corpo, cheiros, cores, sons, é um estilo menos parecido com o de Vladimir Nabokov do que fazem crer alguns críticos, mas que compartilha com ele a obsessão por “acariciar os detalhes”, como pregava o mestre russo:
A sra Gray no espelho, no reflexo do espelho, estava nua. Seria mais elegante, talvez, dizer que estava despida, eu sei; mas nua é a palavra. Depois de um primeiro instante de confusão e espanto, fiquei impressionado com a textura granulada da sua pele – imagino que devesse estar arrepiada, de pé ali – e pelo fulgor opaco que emitia, como o brilho de uma lâmina de faca embaçada. Em vez das nuances de cor-de-rosa e pêssego que eu poderia esperar – Rubens tem muitas satisfações a nos dar – seu corpo exibia, de maneira desconcertante, toda uma gama de tons muito atenuados, do branco de magnésio ao prateado e ao zinco, um amarelo esbatido, o ocre pálido, e até mesmo, em certos pontos, um ligeiro esverdeado além da presença, nas concavidades, da sombra de um musgo malva.
Máquina de produzir epifanias, a prosa de Banville dobra a aposta no poder de fogo da tradição propriamente “literária” num momento em que o ar de nosso tempo a identifica cada vez mais com o beletrismo. É uma voz que se presta tão bem ao tom evocativo de uma paixão adolescente que isso acaba por provocar um desequilíbrio entre os dois tempos principais do romance, levando o leitor (ou pelo menos este leitor) a lamentar cada retorno ao presente – até aquele retorno, no fim, que vai provocar uma completa reavaliação da estranha história de amor.
5 Comentários
Sérgio,
Por acaso você conhece algum estudo crítico sobre o efeito devastador da digressão pretensiosa sobre os hábitos de consumo dos leitores?
De repente, dei-me conta que um infeliz aparte (e.g., “Rubens tem muitas satisfações a nos dar”) é tão devastadoramente broxante, que mata qualquer tesão por comprar um livro ou mesmo por ler qualquer página que provenha do códex de um dado autor.
Eis aí interessante campo de investigação!
Vale
Vou fazer um juízo sem juízo: a prosa de Banville não se traduz bem para o português. O problema não é do tradutor. É da prosa mesmo. As literaturas inglesas dispõem de um léxico enorme, e a prosa em “brasileiro” contemporâneo não. Daí que aquilo que soa naturalmente majestoso no original acaba soando meio afetado, ou artificial, em tradução. A eloqüência à brasileira tem outra cara e outro ritmo, não?
Discordo, Benjamin. Ressalvada certa margem natural de intraduzível, um bom tradutor encontrará em português todos os recursos necessários para transpor o estilo de Banville – ou, a propósito, de Shakespeare. O cara soa meio afetado em inglês também (leia a resenha da New Yorker sobre este romance). Um abraço.
Não estava a dizer que o problema é de tradução. A prosa brasileira de agora é muito mais econômica (“lexicalmente” falando) do que a inglesa, e lendo esse trecho traduzido aí o Banville (um escritor que eu admiro bastante) parece vindo de outro tempo. Lendo-o no original eu não tenho essa impressão. Daí que mesmo o juízo de afetação me parece ser aferido por razões diferentes dependendo da língua mãe do crítico. Faz sentido?
Acho que entendi desde o início seu argumento, Benjamin, mas não concordo com ele. A prosa brasileira econômica que você menciona é uma vertente dela, talvez dominante, mas não me parece correto partir daí para se falar num “estreitamento lexical” em nossa literatura. Seria como dizer que Hemingway e Hammett provocaram um estreitamento lexical na literatura americana, por exemplo. Há um grande número de autores contemporâneos que não cabem nesse figurino. O trecho traduzido que publiquei, como de resto o livro inteiro, me soa bastante atual. “Literário”, sem dúvida – mas isso ocorre também no original, certo?