Países soberanos têm o direito de trocar de nome e exigir que o mundo reforme seus idiomas para adaptá-los ao novo batismo? Antes de responder que sim, vale a pena examinar mais de perto esse rolo, tornado atual pela agitação política na Birmânia – ou seria melhor escrever, como tem feito a imprensa brasileira em peso, ex-Birmânia, atual Mianmar, Myanmar ou Mianmá?
Se é justo que a autodeterminação dos povos inclua algum poder sobre o modo como o mundo os chama, também é verdade que o processo de renomear países, regiões e cidades, por envolver razões políticas variadas e mexer com fatores lingüísticos seculares, não deve ser automático, como muita gente o encara.
O pensamento politicamente correto explica a boa vontade com que, sem refletir muito, boa parte de nós tende a encarar tais mudanças – mesmo quando elas não envolvem um rebatismo propriamente dito, mas apenas uma nova transliteração, um novo jeito de transportar palavras de um alfabeto a outro, como nas recentes tentativas de “transformar” Bombaim em Mumbai e Pequim em Beijing. Quando o nome muda de verdade, a luta contra a herança colonial explica a maioria dos casos: foi assim que a Rodésia do Norte virou Zâmbia e a do Sul agora é Zimbábue, para ficar em apenas dois exemplos, ambos africanos.
O caso Birmânia-Mianmar é semelhante, mas tem uma peculiaridade: contrariando a regra, não é politicamente correto endossar o novo nome. A resistência lingüística é uma arma da oposição à ditadura militar truculenta que, logo depois de tomar o poder no país, em 1988, tratou de ensinar ao mundo que o nome da ex-colônia britânica mudara de Burma (inglês) e Birmanie (francês) para Mianmar. No entanto, em vez de ser mais “inclusivo” para as etnias que compõem a população birmanesa, como alega o governo, o novo nome representa, segundo seus críticos, a cristalização de uma política elitista.
EUA, Grã-Bretanha e França não reconhecem a nova denominação. A ONU, o Brasil e, em grande parte, a imprensa internacional a adotaram.
Texto publicado em minha coluna na “Revista da Semana”.
7 Comentários
Pior, bem pior, é a de um País que mudou de “z” para “s”.
Brazil virou Brasil .
Sinceramente, esperava um post sobre o nobel, tema quente.
Mas a transliteração de Pequim mudou? Eu pensava que os anglófonos já chamassem a cidade de Beijing, e apenas nós, os falantes do português, ainda nos guiássemos pelo aportuguesamente antigo.
Sei que você já deve ter dito isso em algum post do blog antigo, mas se for possível esclarecer de novo, eu agradeceria.
É a própria nação dona da língua de alfabeto diferente que define qual a transliteração correta?
Não Marcus. O que ocorreu foi que a China, diante da enorme variedade de transliterações de seus nomes mundo afora (provocadas, em parte, pelas enormes variações de prosódia dentro da própria China), reuniu há algum tempo uma comissão supranacional de super-filólogos para elaborar uma tabela de transliteração universal, a ser adotada por todos os países. Até que não soa como má idéia? Bom, Cantão vira Guangzhou…
A menção à Birmânia faz-me lembrar a mudança do nome de Constantinopla.
No início dos anos vinte, na onda da vitória que o levou a ser reconhecido pelos turcos como homem-forte do país, Mustafá Kemal, o «Atatürk» (Pai dos turcos), deu-se conta de que não caía bem que a maior cidade do país guardasse um nome com consonâncias gregas. Logo da Grécia, o inimigo secular! Decidiu turcizar o nome de Constantinopla, determinando que se a chamasse, doravante, Istanbul.
Naturalmente, os Europeus, sentindo nessa decisão uma provocação, um atentado contra a «cristandade» representada pela pólis de Constantino, resolveram ignorar a mudança. E seguiram chamando a metrópole pelo antigo nome. Na prática, isso se traduzia principalmente pelos sobrescritos da correspondência, abundante naqueles tempos sem internet.
Exasperado, Mustafá Kemal foi às últimas conseqüências: ordenou que toda correspondência endereçada à defunta Constantinopla recebesse um carimbo «localidade desconhecida» e fosse em seguida devolvida ao remetente.
Não deu outra. A mudança «pegou» rapidinho. Em pouco tempo, já mais ninguém mencionava o antigo nome…
Recomendo O afinador de piano, de Daniel Mason, Companhia das letras, belamente traduzido por Beth Vieira.
É “O coração das trevas” na Birmânia, descendente literário do próprio Joseph Conrad, é claro, e filhote imediato de V. S. Naipaul.
Excelente.
O autor lançou há pouco um segundo romance (A far country), alimentado por pesquisa sobre o cangaço – atenção ao n! – brasileiro.
É, Djalma, meu bisavô pensava a mesma coisa. E não mudou o nome da família só porque o nome do país teve a grafia alterada.
A Bahia também manteve heroicamente o seu nome de batismo, por falar nisso.