(…) Showalter presta menos atenção ao mérito artístico, ao que separa a boa da má ficção, do que aos seus significados culturais; está menos preocupada com nuances de arte ou estilo do que com as ramificações políticas do livro ou o comportamento intrépido ou aventureiro de suas protagonistas. Como outras acadêmicas feministas de seu time, não está interessada em saber se as escritoras que discute são boas escritoras, ou na questão de como seus melhores trabalhos funcionam, mas apenas se elas exploram temas feministas. Desse modo, acaba cavucando romances e poemas atrás de mensagens e significados que digam respeito à posição das mulheres na sociedade, tramas que critiquem a vida doméstica ou que exponham a estreiteza da vida das mulheres. (Certa vez cunhou o termo “ginocrítico” para críticos libertos do “dos absolutos lineares da história literária masculina”.) Essa exploração de tramas subversivas e heroínas da pá virada pode ser frutífera de um ponto de vista puramente histórico ou político, mas nem sempre parece ser crítica literária de um tipo sofisticado. Faz pensar numa frase de Joan Didion sobre as feministas: “Que a ficção tem certas ambiguidades irredutíveis parece nunca ter ocorrido a essas mulheres, nem deveria mesmo, porque a ficção é, sob a maioria dos aspectos, hostil à ideologia”.
Não é à toa que a ensaísta americana Katie Roiphe – autora da excelente coletânea In praise of messy lives (“Em louvor das vidas bagunçadas”, ainda inédita no Brasil, tomara que não por muito tempo) – incomoda tanta gente com suas reflexões críticas tão agudas quanto imunes a modismos. No texto do qual tirei o excerto acima, intitulado com ambivalência Writing women (e disponível aqui, em inglês, no arquivo do “New York Times”), ela resenha um grosso volume de história da literatura dedicado apenas a mulheres escritoras americanas, chamado A jury of her peers (“Um júri de iguais”), de Elaine Showalter. Acaba expondo com clareza e simplicidade o reduzido alcance da crítica “literária” que se pauta não só no feminismo, mas nos estudos culturais em geral: não é que seja irrelevante, é apenas limitada por fugir do que a literatura tem de propriamente… literário, pois é.
*
John Coetzee é um homem de movimentos mínimos. Parece possuir o poder de esfriar o próprio sangue e permanecer parado onde o deixam, pelo tempo que for preciso. Não se move sem necessidade, talvez por timidez ou recato. É um observador fixo, calado, de olhar intimidante, mas frágil. Nesse sentido, ele não me surpreendeu. Eram impressões que eu já tinha a seu respeito, antes mesmo de encontrá-lo pessoalmente nos bastidores do Teatro Fernanda Montenegro, em Curitiba, na noite desta segunda-feira. (…)
Quando entrou no camarim, Coetzee trazia consigo uma formalidade cortante, à qual mesmo curitibanos como eu e Cristovão Tezza, que também o esperava, não estamos habituados. De terno e gravata, entre a gentileza e a desconfiança, sorriu para a meia dúzia de pessoas que o recebeu à porta, apertou as mãos que viu estendidas para ele e, convenções cumpridas, plantou-se diante do espelho e das bandejas de frutas e salgadinhos. Aceitou apenas um gole d’água. E dali não mais sairia, não daria nem um passo sem que o rebocassem para outro lugar.
O escritor e jornalista Luís Henrique Pellanda produziu, para o blog do Instituto Moreira Salles, um imperdível relato sobre a aparição de J.M. Coetzee em Curitiba, segunda-feira. Não se contenta em relatar o conteúdo da palestra do autor sul-africano (sobre sua experiência com a censura sob o apartheid), embora este também esteja bem exposto. Sai em busca de traçar em poucas linhas um retrato dessa figuraça das letras.
3 Comentários
Escrevi sobre esse aspecto da crítica literária em minha tese, publicada em livro em 1997, inclusive discutindo algumas questões posta por Showalter, mas não desse livro.
Quanto ao Coetzee, brilhante escritor, e ser uma pessoa estranha é só um detalhe nesse mundo de estranhezas. Não sabia que Tezza tinha uma filha, e queria muito ter estado nesse encontro na casa dele, mesmo que como o jornalista em questão, quietinha atrás da cortina :))
“postas”, sorry
O homem é muito contido mesmo.
Numa rara oportunidade de estar cara-a-cara com nobelizado mais dignatario dos ultimos anos pude notar sua extrema timidez e recato enquanto recebia meus elogios rasgados ao assinar meu exemplar de “Michael K”.
Olhe olhava para mim com uma cara de atencioso como que querendo ser educado mesmo estando com pressa, pois a jovem, e bela, garota que a editora designou para acompanha-lo parecia já ter criado laços de ciumes pelo escritor consagrado.
Foram minutos muito valiosos para um leitor fascinado como eu.