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Bob Dylan é o mesmo. O Nobel, não

14/10/2016

bob_dylan_recentQue o prêmio Nobel de literatura para Bob Dylan tenha deflagrado uma polêmica quente nas redes sociais não espanta ninguém. Polêmica em redes sociais, de preferência bem polarizada e estridente, é o novo padrão-ouro do sucesso no mundo digital.

É provável que estivesse nos planos da Academia Sueca o quebra-pau entre a facção do “lindo reconhecimento a um gênio” e as hostes da “lamentável rendição ao pop”. Não deixa de ser uma atualização do cansado e pouco midiático refrão “quem já ouviu falar desse poeta uzbeque?” que vinha dominando o Nobel ano sim, ano não.

Como ocorre com a maioria das polêmicas polarizadas e estridentes, os dois lados têm argumentos respeitáveis.

Sim, Robert Allen Zimmerman, que adotou seu nome artístico em homenagem ao poeta galês Dylan Thomas, é um dos grandes nomes da canção do século XX e um letrista prolífico e nada menos que genial. Talvez seja um dos maiores seres humanos vivos em qualquer campo da arte.

Além disso, como lembrou com erudição curiosamente defensiva a secretária da Academia, Sara Danius, os poetas Homero e Safo “escreveram textos que deviam ser ouvidos, executados, muitas vezes com instrumentos…”. O que é verdade, mas soa forçado. Desde então houve alguma especialização no campo artístico, não? Ou os suecos acreditam que, 2.800 anos depois de Homero, um ciclo se fechou e o Ocidente está retornando à oralidade? Neste caso seria preciso desenvolver o argumento.

Aí vem o outro lado. Não dá para negar que, ao escolher Bob Dylan como “escritor”, o Nobel alcança uma nota em falsete que trai certo desespero. Um prêmio que troca o balneário decadente e cada vez menos frequentado da literatura – que por isso mesmo nunca precisou tanto dele – pelos estádios lotados da música pop parece talhado mais para agraciar quem o dá do que quem o recebe: “Viram como somos moderninhos, abertos, interdisciplinares, sintonizados com a cultura popular?”.

O fato é que, com ou sem Nobel, Bob Dylan é o mesmo. Já o Nobel com Bob Dylan fica muito diferente.

Cabe um excelente debate sobre isso ser bom ou ruim. Havia sinais de que o prêmio precisava mesmo de uma repaginada. A ridícula guerra às letras americanas declarada em 2008 pelo então cabeça da Academia, Horace Engdahl, era um sintoma de senilidade: a exclusão prévia de Philip Roth de um prêmio destinado a distinguir mérito literário atentava contra a literatura.

Os remedinhos necessários parecem estar sendo tomados pelo pessoal de Estocolmo. Como sempre ocorre nesses casos, acertar a dose não é fácil. A disposição de expandir os domínios do prêmio já se fez sentir ano passado, ainda que de forma menos espetacular, com a consagração de uma jornalista juramentada como Svetlana Aleksiévitch.

O problema é reconhecer a fronteira pouco nítida entre se manter culturalmente relevante para a literatura do século XXI e pegar carona no carrossel de chamarizes de cliques e gratificação imediata do século XXI, que em muitos aspectos é a antítese perfeita da literatura. A sintonia é fina e a corda, bamba. Boa sorte ao Nobel.

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Artigo publicado no “Estadão”.

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