The Bogus Writer inspeciona as fotos sobre sua mesa de trabalho, imagens de um preto-e-branco granulado e vagamente difuso, como se tivesse baixado uma neblina diante da lente do fotógrafo no momento em que ele, The Bogus Writer, posava contra o muro pichado do centro da cidade com seu ar de tédio, sua gola rulê, seu Gauloise camusiano. As imagens são bonitas, claro. Mas não seriam, o horror, o horror – bonitinhas? No relevo de sua testa alta, billboard semifamoso de uma inteligência superior, franzida neste momento em ondinhas ligeiramente trêmulas, percebe-se que Bog (para os íntimos) não está feliz. Uma dúvida o tortura: e se aquele visual pós-existencialista estiver ficando out-of-date? Solta um suspiro impaciente, atira as fotos sobre a mesa com violência e acende um Marlboro. Na megatela de sua imaginação prodigiosa se vê, imagem difusa, suspirando impaciente e atirando as fotos sobre a mesa com violência, para em seguida acender um – bom, um Gauloise, claro. Pequenas correções desse tipo são a alma do negócio. O cérebro de Bog trabalha atarefado e stacatto, como uma fábrica art déco num poema futurista. Uma nova sessão de fotos com Mika encareceria demais os custos de produção do livro? Atrasaria o lançamento? Irritaria a editora? E se, em vez de Mika, ele se contentasse com um fotógrafo menos cultuado? Ah, mas isso no, non & nein. Atraso, sim; barateamento estético, jamais. Seria la mort annoncée, como disse, às vésperas daquela batalha napoleônica – quem mesmo? Precisava checar no Google. Uma vez aberto o site de busca, porém, The Bogus Writer acaba por se distrair. Encontra na memória do computador a última consulta que fez ontem à noite: “Toshiro Ito”, páginas em português. Decide repetir a busca. O resultado demora dois segundos a aparecer. Logo no alto da tela, como temia, TBW encontra a péssima notícia: Toshiro Ito, o príncipe ultragay do movimento Animal Evisceration e dos minicontos canibalísticos, adolescente genial que há três meses tomou de assalto o submundo de Tóquio, essa peça rara e supostamente intragável acaba de ganhar mais um elogio na imprensa burguesa brasileira, esta manhã. Uma onda de ódio sobe ao rosto de Bog, que apaga com fúria seu Marlboro no cinzeiro em forma de penico. Absurdo, absurdo, repete baixinho, apertando os dentes. Com este, são três os elogios que a dita grande imprensa, hoje uma coisa desgovernada, totalmente perdida em sua decadência inexorável, são três os elogios – e elogios luxuosos, caprichados – que Toshiro Ito amealha neste paisinho de bosta. Ou seja: seguindo o princípio que estabeleceu para si mesmo há anos, Bog, que até este momento foi um empolgado porta-voz extra-oficial de Ito no Brasil, será obrigado a nunca mais tocar no nome do rapaz em público. Ou, se tocar, precisará compor meticulosamente aquela máscara de lábio superior retorcido que todo escritor digno deste nome dedica aos coitados que o público em geral aprendeu a admirar. Eis o primeiro mandamento do Supercool Writer’s Decalogue, a cartilha seminal de Otto Bax, o berlinense suicida. Que, pelo menos este, nunca foi citado na grande imprensa brasileira – nem tudo está perdido. Bog acende outro Marlboro-Gauloise e pega de novo a pilha de fotos em que fumega o Gauloise verdadeiro. Então, pela primeira vez hoje, sorri. Quem disse que seria uma vida fácil?
16 Comentários
de quem é esse texto afinal? seu? é bom, viu…rs.
Não que eu esteja reclamando mas este blog é de literatura ou sobre literatura?
Boa pergunta, Ibrahim. Sempre foi as duas coisas. Vou dar uma dica para quem ficou confuso: textos de outros autores sempre aparecem em itálico aqui no Todoprosa. Se não está em itálico, pode saber que é meu. Para o bem e para o mal. Abs.
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Então Sérgio Rodrigues deve esta ” todo prosa “.
Perpicaz o jogo textual entre Gauloise / Marlboro (cada um o emblema de um campo semântico distinto – Europa versus Trópicos sendo uma das suas possíveis e mais ligeiras interpretações – e revelador a olhos atentos), que prefigura, claro, a dicotomia Fundo-Forma (contrastar com Susan Sontag, para quem tal dicotomia é um falso problema uma vez que o Fundo é a Forma), aqui reificada em elementos do banal cotidiano e… Tá, pára tudo: tava tentando imitar o “estilo” daquele povo pedante da academia, hahahaha. Meu deus, eles são capazes de produzir páginas e páginas assim, sem parar pra respirar! Como é que conseguem?
Gostei do texto, claro (a hora da lambida de saco: gosto dos seus textos ficcionais, Sérgio; gosto muito (como assim “gosto dos seus textos ficcionais“? Não gosta dos outros, é? Ande, vamos, responda!)), me lembrou aquelas fotinhas na orelha dos livros em que os escritores, quase sempre, estão fazendo pose (mão no queixinho, mão na bochechinha, mão na cabecinha, mão nos cabelinhos, mão na orelhinha, mão no ombrinho, mão no pescocinho, mão no joelhinho, mão na coxinha, mão na mãozinha) em frente da estante de alguma biblioteca (é de se supor que a própria). Às vezes, fotos assim aparecem nos cadernos literários dos jornais. Como se o escritor sentisse a imperativa necessidade de justificar o seu status (quaquaqua) perante o Universo provando que leu, sim, tudo o que já foi publicado – ou quase, que só Borges e João Barreiros já leram TUDO o que foi escrito -, e que tem o direito de ser o ser que se é. Escritores: fujam da estante cheia de livros como Jesus foge do Diabo (ou será da cruz? Bom, algum ditado assim)!!! É tão, mas tão… risível.
uma pequena correção: o cigarro se chama gauloises, e não gauloise.
Dona de casa gorda, como ex-fumante da marca eu posso declarar o seguinte: o maço é de Gauloises, como você diz, mas o pessoal fuma um Gauloise de cada vez. Mais do que isso é risco imediato de vida. Um abraço.
Sérgio, recebeste o email que enviei sobre o post abaixo? Abraço!
Sei não! Acho que o Sérgio Rodrigues tá é tirando uma com a besta do Nelson Motta.
Mila,
Acho que o Sérgio está é tirando uma com os escritores “cool” do globo e exercitando também…
Gostei do texto Sérgio, ao meu ver, irônico, sarcástico e de um humor negro bem sutil… gostei… muito bom…
Valeu.
Ahn?
A chaga dos contemporâneos brasileiros: pose, pose, pose. Muita pose. Pouca literatura. Há quem compre.
se um dia eu cometer um livro, meus abraços não apareceram, como amputados, prometo!
grande texto, sérgio.
ooops, desculpe, elogiei….
para o bem ou para o mal, Sérgio, achei muito bom.
O pior é que conheço uma ou duas criaturas do tope do personagem… A forma deles se expressarem é exatamente esta!