Como não tenho a memória perfeita de Irineu Funes, sei apenas que estava no México a trabalho, cobrindo para um jornal brasileiro a Copa do Mundo que seria vencida de forma acachapante pela Argentina de Maradona, quando recebi a notícia da morte de Jorge Luis Borges. Lembro-me de ter ficado triste, o que é uma memória óbvia. Se tivesse uma fração do dom de Funes – personagem de Funes, o memorioso, um dos melhores contos de “Ficções” (1944), provavelmente o melhor livro de Borges –, estaria escrevendo agora sobre tudo o que tornou aquele 14 de junho de 1986 um dia sem igual, como todos são: temperatura, forma das nuvens, quanto tempo se passou – certamente uma vida, mas isso também é óbvio para quem conhece o México – entre a encomenda da ensalada de guacamole e sua chegada à mesa; a cor do cardápio, o comprimento da saia da morena sorridente na mesa ao lado, as letras de todas as canções com que os mariachis torturaram o jantar.
Tudo isso está perdido para sempre. Só sei que estava no México, me esforçando para falar espanhol dia e noite, quando o argentino que era meu herói literário naquele tempo morreu. Entenderam? Eu falava espanhol, e – melhor esquecer. Não quer dizer nada. Se ao menos eu fosse um Funes…
Mas será que não quer mesmo dizer nada? Tratando-se de Borges, para quem os sinais de um plano mirabolante de sábios da antiguidade podiam se manifestar em qualquer parte, atravessando séculos e continentes, nunca se sabe. Por exemplo: há pouco menos de seis anos, o cientista americano James McGaugh, da Universidade da Califórnia, uma das maiores autoridades mundiais em estudos sobre a memória, publicou no jornal especializado Neurocase um relato impressionante sobre uma mulher – mantida no anonimato – capaz de se lembrar com riqueza de detalhes de absolutamente tudo o que viveu, leu ou viu na TV, recitando com precisão datas e dias da semana, mesmo quando os assuntos não diziam respeito à sua vida. Um fenômeno jamais registrado pela ciência, segundo McGaugh.
A se acreditar no testemunho do pesquisador, a memoriosa nada ficava a dever a Funes, que “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho” (“Obras completas”, Editora Globo, tradução de Carlos Nejar).
Será apenas uma coincidência que a versão feminina de Irineu Funes tenha entrado na literatura científica em 2006, justamente o ano em que Borges completava duas décadas de posteridade?
Pode ser. Mesmo assim, não consegui evitar o espanto quando, poucos dias depois de ler sobre a descoberta de James McGaugh, Funes cruzou meu caminho mais uma vez – ele que passara tantos anos desaparecido. Eu estava lendo uma coletânea de ensaios do escritor sul-africano J.M. Coetzee (Stranger shores, Vintage Books) e descobri que o ganhador do Nobel de Literatura de 2003, um dos meus heróis literários de então, compartilha minha admiração pelo caipira argentino que era pura memória e pelo livro em que ele aparece. “Das ‘Ficções’ de 1944, ‘Funes, o memorioso’ é a mais assombrosa”, escreve Coetzee. Acrescenta que, por ser incapaz de esquecer, o personagem “não consegue formar idéias gerais, e portanto – paradoxalmente, para alguém que é quase mente pura – não consegue pensar”.
É verdade. Humorista genial, uma de suas facetas mais subestimadas, Borges deixa clara essa inabilidade de Funes quando, pela voz do narrador do conto, explica que ele era “incapaz de idéias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente)”.
O conto termina de forma brutal: “Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar”. Jorge Luis Borges morreu em 1986, de um câncer no fígado.
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De forma, se não brutal, intencionalmente abrupta terminava o post acima, que publiquei em 5 de junho de 2006, quando este blog tinha poucos dias de vida. Se o republico hoje, igualzinho, apenas com as marcações temporais adaptadas a dezembro de 2011, é porque demorou todo esse tempo para que surgisse uma nova pista, cinco anos e meio para que mais um dente andasse na engrenagem que sábios zoadores da antiguidade puseram para rodar. Ao pegar ontem um livro que encontrei no fundo de uma caixa de papelão na despensa, esquecido desde alguma mudança – um livro sem relação alguma com Borges, chamado “Propriedades condutoras das cerâmicas de baixa densidade”, que obviamente nunca deveria ter sido encaixotado –, ao pegar o volume magro com impaciência para expeli-lo de casa, caiu de dentro dele um cartão. Me abaixei, era de um bar mexicano. No verso, uma data, 12/6/1986, Borges ainda estava vivo, e uma única palavra, em esferográfica vermelha: Tlön.
7 Comentários
Caraio.
7:24. Arrepio. Que história mais fantástica.
Sérgio, quando o Borges morreu eu tinha alguns poucos meses de vida mas é extremamente interessante a forma em que ele foi aparecendo – conto por conto do Ficções – para mim. Peças de um quebra cabeça que eu ainda vou desvendar. Espero ter um pouco de Funes para juntá-las. Nada em Borges é coincidência, só há o inevitável ali.
Senhas dos pequenos mistérios que nos cercam, certamente – e a presença (insistente) de alguns livros/autores/personagens em nossa vida…
Como sempre, excelente. Borges é um dos meus favoritos e a meu ver, inimitável. E “Furnes, O Memorioso” é meu conto borgiano favorito.
Bom texto. Tenho lido Graham Greene ultimamente. Que ficcionista fabuloso, com inovações estéticas da narrativa, inclusive (apesar de não ser muito badalado por isso). O Cônsul Honrário, o Americano Tranqüilo e muito mais coisa, acho esse inglês um gênio. O que vc pensa dele? abs M
Ahh, cara, que maravilhoso deparar com uma reminiscência tão doce, tão fantástica, logo pela manhã!
De longe, mas de muito longe, o melhor texto que li no blog, o que não é absolutamente pouca coisa!
Engraçado, semana passada eu estava pesquisando sobre a Jill Price e a hyperthymestic syndrome pra um trabalho, e fiquei em dúvida sobre uma questão que as fontes não esclareciam: os “Funes” da vida real também se lembram detalhadamente de seus sonhos, essas experiências naturalmente fugidias? Não recordo se com o personagem do conto isso acontecia, mas poderia render no mínimo outro parágrafo excepcional abordando a retenção de memórias oníricas, nesse texto que também está entre os meus preferidos do Ficções, só perdendo para O Sul, O Jardim de Veredas que se Bifurcam, A loteria da Babilônia, Tlön, Pierre Menard, A biblioteca de Babel e O Milagre Secreto (li a versão que une O Jardim e Artifícios sob o mesmo título). =)
Nasci três anos após a morte de Borges, e às vezes me entristeço por não ter podido ser seu contemporâneo. Ainda que eu contasse parcos meses de vida, como a Emanuela, teria gostado de saber que coexisti no tempo com o cara que no futuro se tornaria meu herói supremo da literatura. Mas é como ele próprio diz no prólogo a El Hacedor: “amanhã também estarei morto e nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos e, de algum modo, será justo afirmar” que nossa separação se deu apenas no espaço, e não no tempo.
Mil vezes parabéns, Sérgio. O dia está ganho, depois desse post. =)
PS: essa reflexão das engrenagens pretéritas que têm resultado no futuro (de “pessoas que obram o mal no presente para que nos séculos vindouros resulte o bem”)é uma das que mais me fascinam na obra do hermano.