Como não tenho a memória perfeita de Irineu Funes, sei apenas que estava no México a trabalho, cobrindo a Copa do Mundo que seria vencida de forma acachapante pela Argentina de Maradona, quando recebi a notícia da morte de Jorge Luis Borges. Lembro-me de ter ficado triste, o que é uma memória óbvia. Se tivesse uma fração do dom de Funes – personagem de “Funes, o memorioso”, um dos melhores contos de “Ficções” (1944), provavelmente o melhor livro de Borges –, estaria escrevendo agora sobre tudo o que tornou aquele 14 de junho um dia sem igual, como todos são: temperatura, forma das nuvens, quanto tempo se passou – certamente uma vida, mas isso também é óbvio para quem conhece o México – entre a encomenda da ensalada de guacamole e sua chegada à mesa, a cor do cardápio, o comprimento da saia da morena sorridente na mesa ao lado e as letras de todas as canções com que os mariachis torturaram o jantar.
Tudo isso está perdido para sempre. Só sei que estava no México, me esforçando para falar espanhol dia e noite, quando o argentino que era meu herói literário naquele tempo morreu. Entenderam? Eu falava espanhol, e – melhor esquecer. Não quer dizer nada. Se ao menos eu fosse um Funes…
Mas será que não quer mesmo dizer nada? Tratando-se de Borges, para quem os sinais de um plano mirabolante de sábios da antiguidade podiam se manifestar em qualquer parte, atravessando séculos e continentes, nunca se sabe. Por exemplo: há cerca de dois meses o cientista americano James McGaugh, da Universidade da Califórnia, uma das maiores autoridades mundiais em estudos sobre a memória, publicou no jornal especializado Neurocase um relato impressionante (notícia aqui, em inglês) sobre uma mulher – mantida no anonimato – capaz de se lembrar com riqueza de detalhes de absolutamente tudo o que viveu, leu ou viu na TV, recitando com precisão datas e dias da semana, mesmo quando os assuntos não dizem respeito à sua vida. Um fenômeno jamais registrado pela ciência, segundo McGaugh.
A se acreditar no testemunho do pesquisador, a memoriosa nada fica a dever a Funes, que “sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança aos veios de um livro encadernado em couro que vira somente uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho” (“Obras completas”, Editora Globo, tradução de Carlos Nejar).
Será apenas uma coincidência que a versão feminina de Irineu Funes tenha entrado na literatura científica justamente no ano em que Borges completa duas décadas de posteridade?
Pode ser. Mesmo assim, não consegui evitar o espanto quando, poucos dias depois de ler sobre a descoberta de James McGaugh, Funes cruzou meu caminho mais uma vez – ele que passara tantos anos desaparecido. Eu estava lendo uma coletânea de ensaios do escritor sul-africano J.M. Coetzee (Stranger shores, Vintage Books) e descobri que o ganhador do Nobel de Literatura de 2003, um dos meus heróis literários de hoje, compartilha minha admiração pelo caipira argentino que era pura memória e pelo livro em que ele aparece. “Das ‘Ficções’ de 1944, ‘Funes, o memorioso’ é a mais assombrosa”, escreve Coetzee. Acrescenta que, por ser incapaz de esquecer, o personagem “não consegue formar idéias gerais, e portanto – paradoxalmente, para alguém que é quase mente pura – não consegue pensar”.
É verdade. Humorista genial, uma de suas facetas mais subestimadas, Borges deixa clara essa inabilidade de Funes quando, pela voz do narrador do conto, explica que ele era “incapaz de idéias gerais, platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abrangesse tantos indivíduos de diversos tamanhos e diversa forma; aborrecia-o que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente)”.
O conto termina de forma brutal: “Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar”. Jorge Luis Borges morreu em 1986, de um câncer no fígado.
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Borges, com toda a certeza, não se aborrecia com o fato de o cão das três e catorze (visto de perfil ou pelo lado da sombra) ter o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente, 30 graus para o lado esquerdo). Não se aborrecia porque é disto que a boa literatura se alimenta.
Funes, ano passado, teve um outro triste fim: virou personagem de uma horrenda peça de teatro encenada aqui em São Paulo no Sesc Anchieta. A trama misturava o próprio Borges a sir Richard Burton, Sheerazade e ao coitado do Funes, que se fosse personagem de carne e osso teria se revirado no túmulo, como Borges certamente fez.
“Porque o homem não é mais do que uma máquina de recordar e de esquecer que caminha para a morte. E não digo isso com tristeza, porque também é certo que a memória, disfarçando-se de vida, converte a morte em algo sutil e tênue. ”
Enrique Vila-Matas, O mal de Montano.
Eu não tenho uma memória muito boa.
http://duduoliva.blog-se.com.br/blog/conteudo/home.asp?idblog=13757
Lembrando do ‘memorioso’, pensei em outras figuras inesquecíveis de seus contos,como “o Zahir” e os “Imortais”… fantástico Borges! Fica a dica: a revista “Entre Livros” traz, na edição deste mês, um belo dossiê comemorativo sobre o escritor argentino.
Sérgio, como alguem que tambem tenta falar espanhol quando viaja, com resultados que podem ser classificados entre o bizarro e o ridículo, pergunto: a tradução da edição da Globo vale ou devo tentar brigar com o original?
Como são tradutores diversos, a qualidade é irregular, mas no geral se lê sem o menor susto, Peter. É claro que o original é sempre preferível se você lê bem a língua, mas nas ‘Obras completas’ foi feita uma boa revisão das traduções mais duvidosas. Algumas melhoraram muito.
Guardo, com muito carinho, uma edição de “Ficções” pela “Livros do Brasil – Lisboa”, de 1969, traduzida por Carlos Nejar e com “venda interdita no E. U. do Brasil”.
Imagino Irineu Funes tentando ler o Livro de Areia…