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‘Bruno Schulz – Ficção completa’: gênio de beber

13/06/2012

Meu pai ficava deitado no assoalho, todo nu, sarapintado de manchas negras de totem, riscado pelas linhas das costelas, pelo desenho fantástico da anatomia que transparecia, ficava de quatro, possuído pelo fascínio da aversão que o puxava para dentro de seus emaranhados caminhos. Meu pai se mexia com movimentos complicados de numerosos membros, num estranho ritual no qual reconheci, apavorado, uma imitação do cerimonial da barata.

Desde então renunciamos a nosso pai. Sua semelhança com uma barata ficava cada dia mais nítida – meu pai se transformava em barata.

Esse trecho de “As baratas”, texto (conto ou capítulo de romance?) de “Lojas de canela”, seu principal livro, foi determinante para que o escritor polonês Bruno Schulz (1892-1942) ficasse marcado pela sombra de Franz Kafka. A ligação entre os dois nomes foi estimulada pelo próprio Schulz, que chegou a assinar uma tradução de “O processo” que não fez, mas tem valor dúbio: se fornece algumas balizas para o leitor situar a vida e a obra do polonês, pode obscurecer o fato de que sua literatura não deve nada a ninguém, tem uma originalidade estonteante e sabor inteiramente distinto daquela do escritor tcheco.

O melhor é tomar Schulz em seus próprios termos, como os leitores brasileiros têm agora a melhor oportunidade que jamais tiveram de fazer, com o lançamento de “Bruno Schulz – Ficção completa” (Cosac Naify, tradução caprichadíssima feita do polonês por Henryk Siewierski). O volume em capa dura inclui, além dos dois únicos livros publicados por Schulz, quatro contos inéditos no Brasil e uma desconcertante participação especial de Witold Gombrowicz, seu amigo e cúmplice na vanguarda das letras polonesas dos anos 1930. O lançamento tem como único defeito o preço de R$ 89,00, que, embora possa ser economicamente justificável, é digno de lamento como empecilho à circulação da obra de um gênio. Schulz é bom demais para se restringir às estantes da elite.

Como observa Philip Roth no livro “Entre nós”, em conversa com Isaac Bashevis Singer – judeu polonês como Schulz, embora escrevesse em iídiche –, as tais semelhanças com Kafka são mais de circunstância: ambos eram judeus meio assimilados, mas basicamente desenraizados em países da Europa Central; pessoas de saúde fraca e vida sexual complicada; escritores expressionistas para quem o realismo, como provavelmente a própria realidade, era uma tediosa prisão. Roth observa que “o indício mais forte de que os objetivos deles são diferentes é talvez o fato de que no livro de Schulz o personagem que se transforma em barata não é o filho, e sim o pai. Imagine Kafka imaginando uma coisas dessas! Fora de questão”.

A observação é perspicaz, mas não basta para dar conta da potência da literatura de Schulz, aquilo que leva Singer a declarar na mesma conversa: “Quanto mais lia Schulz – talvez eu não devesse dizer isto – eu dizia: ele é melhor do que Kafka”. Não é. Kafka foi mais fundo e de forma mais sistemática em seu mergulho no pesadelo que se oculta sob a casca da realidade, enquanto Schulz, como observa J.M. Coetzee em ensaio coletado no livro “Mecanismos internos”, parece ter perdido o fôlego ao esgotar o material fornecido por suas memórias de infância. Seu segundo livro, “Sanatório sob o signo da clepsidra”, não tem a mesma força do primeiro e ele sabia disso. Coetzee é discretamente cético quanto à qualidade do mitológico romance perdido de Schulz, “Messias”, que ele estaria escrevendo quando foi assassinado pelos nazistas.

Seja como for, o principal indício da diferença entre os dois escritores está no modo como tratam a linguagem. Em Kafka esta mantém uma superfície lisa, homogênea, sem sustos, próxima do tédio dos relatórios, enquanto a narrativa enlouquece por baixo. Em Schulz o enlouquecimento poético da prosa é o próprio espetáculo. Os dois são alucinógenos, mas Kafka é uma substância injetável e Schulz, uma bebida de estalar a língua e lamber os beiços.

6 Comentários

  • Vinícius 15/06/2012em14:39

    Sérgio, quando traduzirão Hasek no Brasil? É outra lacuna inexplicável no nosso acervo.

    Quanto à comparação proposta pelo post e por praticamente toda menção a Bruno Schulz, gosto mais do polonês. Assim como Nábokov repelia Dostoiévski, Kafka sempre me pareceu tedioso até nas correspondências. E, em se tratando de demonstrar a alienação do homem diante da burocratização da sociedade, Gogol era melhor que os dois – com o que, acidentalmente, repito outro ponto de vista do autor de Lolita.

    Abraço

  • Silvio 15/06/2012em17:23

    Chamou minha atenção o comentário do Vinícius sobre o Gogol. Por uma dessas coincidências, estou relendo o extraordinário ‘Almas Mortas’, certamente um dos maiores romances produzidos na Rússia. E concordo com a parte sobre Kafka (que passa longe da minha lista de autores favoritos). Os temas, as “obsessões” de ambos são bastante parecidos: os protagonistas desorientados, o esvaziamento das relações, os labirintos da burocracia. E, no caso de Gogol: um domínio impressionante do idioma e os enredos estapafúrdios/engraçadíssimos, uma verdadeira afronta ao que o Sérgio corretamente chamou de “tediosa prisão do realismo”.

  • Pedro 19/06/2012em11:12

    Tendo a concordar com Coetzee. Quando andei lendo “Sanatório” não conseguia perceber o que justificava tanto enaltecimento a Bruno Schulz. Ainda vou ler “Lojas de Canela”.
    Vinicius, se o Hasek a quem você se refere é o Jaroslav, do Soldado Schweik, informo que ele já foi traduzido no Brasil há bastante tempo. O Soldado Scweik foi publicano aqui nos anos 60 pela Civilizãção Brasileira. Pode procurar em sites de sebos. Uma curiosidade: como foi popularizado no mundo pelos comunistas alemães, esse símbolo do nacionalismo chauvinista checo ficou conhecimento pela versão alemã do nome, Schweik, e não pelo nome eslavo, Svejka, que é o consta no título original. Pessoalmente, não gostei muito desse livro, que tinha a pretensão de massacrar o extinto império austro-hungáro, mas acaba inadertidamente o acaba demonstrando a sua magnanimidade. Duvido muito que um Schweik, com sua falsa estupidez, pudesse durar muito num regime stalinista, ou sob a ocupação nazista (neste, com certeza iria ser objeto de uma eutanásia).

  • Sonia Regina Rocha Rodrigues 27/10/2014em13:30

    Excelente! Eu adorei este autor. No texto que li – em inglês – o pai passeava pela casa como uma lagosta (lobster). Inquietante. Achei maravilhoso, me encanto com coisas bizarras. Lembra Kafka, sim, mas não tem o desespero, tem mais um encantamento mesmo, até uma aceitação do outro. Afinal, eles não matam o pai, nem o segregam, é o pai que se tranca depois no sótao com todos aqueles pássaros.
    Excelente resenha.

    http://escritoraporvocacao.blogspot.com.br/