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Callado: um curioso documento de época

24/07/2006

O fato é que, sob a aparente paz e ordem encontradas em tantos países da América Latina, uma corrente de inconformismo vai atingindo níveis cada vez mais profundos. Exatamente como nos nossos romances e nas nossas peças – e é isso que confere a elas sua atual vitalidade, reconhecida pelo mundo –, também entre as massas a estagnação do subdesenvolvimento está começando a ser desafiada. Os que pensam e os que sofrem estão confluindo para um mesmo caminho. Não há hoje praticamente nenhum romance na América Latina que não pregue a revolta. Em nossos países, romances suaves e etéreos não iriam mesmo convencer nenhum leitor.

É estranho ler “Censura e outros problemas dos escritores latino-americanos” (José Olympio Editora, tradução de Cláudio Figueiredo, 98 páginas, R$ 20), tradução de três conferências de Antonio Callado (1917-1997) escritas em inglês e proferidas em universidades britânicas em fevereiro e março de 1974. Além da coragem do escritor, militante do Partido Comunista, de tocar naqueles temas com a ditadura militar brasileira esbanjando força – ainda estávamos no governo Medici –, o que mais chama a atenção do leitor de hoje é o envelhecimento implacável desses textos.

Não se trata, obviamente, de dizer que os problemas dos países latino-americanos foram resolvidos. Se as ditaduras andam um tanto fora de moda, sabemos que em muitos casos as tragédias se agravaram. O que soa datado em primeiro lugar é o prisma de Callado, “político” num sentido mecanicista. Aquilo que o leva a considerar, por exemplo, um livro menor de Julio Cortázar (“Livro de Manuel”) a obra “mais importante” do escritor argentino apenas por ter guerrilheiros como personagens e um seqüestro político como tema.

Não é só. Envelheceu também tudo o que a lente “revolucionária” de Callado focaliza. Quer dizer que nós, latino-americanos, temos uma vitalidade literária que o mundo reconhece? Era modismo, passou. E em nosso continente os que “pensam” e os que “sofrem” estão confluindo para um mesmo caminho? Era otimismo, feneceu. Todos os nossos romances pregam a revolta porque livros suaves e etéreos não iriam mesmo convencer nenhum leitor? Talvez se possa dizer que ocorre o contrário. E o que seria, aliás, um romance que “prega a revolta”? Será que Callado levaria sua visão da literatura como subproduto da política ao extremo de ser hoje um fã de Ferréz?

Publicadas agora pela primeira vez, pode-se até especular se, permanecendo inéditas, essas três conferências não prestariam melhor serviço a Antonio Callado – um romancista eminentemente político, mas nada ingênuo ou simplista. Não duvido, mas nesse caso perderíamos um curioso documento de época.

16 Comentários

  • O Espezinhador 24/07/2006em17:24

    São Nelson Rodrigues, santo padroeiro dos reacionários e amigão de Callado dizia deste: “É um doce radical”.
    Bons tempos em que os comunistas podiam ser doces e radicais ao mesmo tempo. Ficou o doce, o escritor talentoso e finou-se o radical, o comuna deslumbrado.
    Hoje em dia Antônio Callado seria apenas mais um idiota coletivo.
    Ou seja, que pena que o Saramago não morreu há 15 anos atrás!

  • Ferréz é dose... 24/07/2006em17:31

    fã de Ferréz é dose, hein?! Melhor estar morto mesmo… Só o seu amigo de blog Xico Sá que acha que aquilo que o Ferréz produz é bem escrito…

  • Pedro Curiango 24/07/2006em17:33

    Antônio Callado não é apenas um ensaísta deplorável, completamente ultrapassado, mas também um romancista medíocre, cuja sobrevivência deve-se apenas a seu “esquerdismo” meio estalinista. Daqui a alguns anos será tão lembrado como Tito Battini, um “esquerdista” super-popular sessenta anos atrás… Sic transit gloria sinistrae…

  • Pedro Tinoco 24/07/2006em18:48

    Salve Sérgio, tudo bem? Bom saber deste lançamento que joga luz sobre um momento específico da história do Brasil e da vida de um dos nossos grandes escritores. Rapaz, mas o que me impressiona mesmo é que o Callado, que faleceu há quase dez anos, ainda consegue incomodar esses filhotes do Olavo de Carvalho (a mãe não preciso dizer quem é). O que será que soa mais anacrônico, antigas palestras do Callado ou o discurso atual dessa turma que enxerga comunistas por toda parte? Grande abraço.

  • Antônio Augusto 24/07/2006em19:28

    Como dizem – falo no presente porque o pensamento continua extremamente válido – André Breton e os surrealistas, duas coisas valem a vida ser vivida: o amor e a revolta.
    Bom escritor da nossa literatura, a arte de Callado segue significativa às novas gerações.
    Como cidadão foi exemplar, um intelectual honesto e democrata sempre ao lado do povo.
    Possíveis aspectos datados das conferências possuem interesse: Callado, como Érico Veríssimo, e outros importantes escritores da época, riscaram seus fósforos no meio da escuridão.

  • O Espezinhador 24/07/2006em20:19

    Graças a Deus que esses fósforos se apagaram! Era só o que faltava, o Brasil comunista desde 64…
    Fiquem calmos, comuninhas do blog. Vocês perderam em 64 mas estão ganhando agora. Fiquem tranqüilos que a tarefa de destruir o pouco que resta do Brasil será todinha de vocês.
    Eu só lamento que vocês não terão a oportunidade de me colocar num paredón. Tô longe daí!

  • Remanescente 24/07/2006em20:34

    É pessoal! Mesmo após décadas, nada mudou. Tanto da parte dos esquerdistas, que endeusam a arte de Callado, quanto dos direitistas de plantão que, teimam em substima-la.

  • Pedro Curiango 24/07/2006em20:36

    Fico, às vezes, meio cansado de tanto ouvir a palavra POVO, como se no Brasil existisse um POVO e os OUTROS. Na realidade, POVO deve incluir TODOS nós. Segundo a ed. original do Caldas Aulete, POVO quer dizer: “nome coletivo de todos os indivíduos do mesmo país e que vivem sujeitos às mesmas leis; os habitantes de uma mesma região, cidade, vila ou aldeia”. Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (o Aurélio original): “Conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, possuem hábitos e costumes idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns”. Note-se, na definição de Caldas Aulete, a presença de duas palavras: TODOS e MESMAS. E na do Aurélio: MESMA, IDÊNTICOS, AFINIDADE (e não igualdade!), comuns. Povo sou eu, é o torneiro mecânico, é o Lula, o Jair Bolsonaro, a Heloísa Helena, o padeiro da esquina, o Olavo de Carvalho, o flanelinha do semáforo, a Giselle Bündchen, e todos nós que temos a cidadania brasileira (e que às vezes precisamos de outra, como D. Marisa). Se o Antônio Callado estivesse ao lado do povo – e não de uma ideologia que exclui do POVO todos os que não comungam com ela – ele estaria também do lado do Olavo de Carvalho…

  • Fernando Molica 24/07/2006em21:30

    Fico um pouco espantado com tanto ódio anônimo. Claro que cada um pode achar o que bem entender do Callado ou de quem quer que seja. Mas, enfim, preservemos as mães – inclusive e principalmente a minha. Não li o livro comentado pelo Sérgio, nem pretendo fazê-lo. Pelo resumo, acho que discordaria daquelas opiniões todas do Callado, mas, enfim, prefiro louvar sua coragem de falar o que falou durante a ditadura. Ditaduras são péssimas até por isso: embaçam a visão, favorecem a radicalização, transformam tudo num Fla x Flu. Nessa, o Callado dançou. O engraçado é que o autor Callado – ainda bem! – não seguiu tanto assim o que defendeu. “Bar Don Juan” é um belíssimo livro, que trata da tentativa guerrilheira com muito cuidado, sem ôba-ôba, expõe dramas e dúvidas. Gosto muito também do “Memórias de Aldenham House”, livro que acabou sendo pouco falado. Mas, enfim, acho que quem se expôs tanto merece algum respeito e, no limite, pedradas assinadas.

  • Sérgio Rodrigues 24/07/2006em22:03

    Para quem, por razões apenas políticas, é incapaz de reconhecer em Antonio Callado o grande escritor que ele sem dúvida é (miopia equivalente à de Callado ao superestimar aquele livro do Cortázar, só que com o sinal trocado), recomendo um livrinho muito interessante e não de todo impossível de encontrar chamado “Missa do galo – Variações sobre o mesmo tema” (1977, Summus Editorial). A política passou longe dele. É uma brincadeira culta em que seis escritores brasileiros escrevem variações sobre o famoso conto de Machado. Além de Callado, lá estão Autran Dourado, Lygia, Nélida, Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira. Um time forte que produz um resultado meio irregular, mas na média bem bom. A exceção é Callado, com um conto chamado “Lembranças de Dona Inácia” que é simplesmente brilhante. Um espanto. Gosto dessa história porque ela põe algumas coisas no seu lugar: montaram uma seleção e Callado foi, indiscutivelmente, o craque do time. Se a discussão voltar a girar em torno de literatura, como deve ser, é bom que fique claro que o homem merece respeito.

  • Sirio Possenti 24/07/2006em22:09

    É complicado falar sobre posições ultrapassadas, até porque elas podem voltar em pouco tempo. Não é torcida nem vaticínio. Mas lembro de 1988 e da queda do Muro, logo da URSS: todos diziam que agora sim tudo é democracia e paz, menos Hobsbawn, o velho histpriador comuna, que anunciou que as coisas iam engrossar (na Europa, principalmente). Foi o que se deu. O que acabou logo foi o slogan do fim da história.
    Profecias sobre o passado costumam acabar mal…

  • Sérgio Rodrigues 24/07/2006em22:22

    Entendo o que você quer dizer, Sírio, mas não posso concordar. O que há de ultrapassado nos textos do Callado não se resgata mais, é fruto de um momento obscurantista, de um horizonte estreito. Mecanicismo é mecanicismo em qualquer época, e não me parece que seja tão arriscado apontá-lo – acho até um dever. Quanto à frase de efeito do Fukuyama, você exagera para construir seu argumento. Era grotesca já ao nascer e foi ridicularizada, se bem me lembro, até pelos liberais menos tacanhos.

  • Pedro Curiango 24/07/2006em23:37

    O problema da qualidade literária nada tem a ver com a ideologia do autor: Céline era fascista e Graciliano Ramos comunista e ambos são escritores da melhor qualidade. Josué Montello era de direita (creio eu) e Antônio Callado de esquerda e ambos são autores medíocres. Talento não tem nada a ver com política. Grandes escritores brasileiros históricos (Machado de Assis, Gonçalves Dias, José de Alencar, Olavo Bilac, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt) eram fundamentalmente conservadores. Mas Castro Alves é absolutamente de “esquerda” (se é que se possa falar nestes termos com relação àquela época). E foram exatamente Machado e Alencar que reconheceram imediatamente seu talento. O problema é a promoção exclusivista que a esquerda faz: nos antigos países comunistas a literatura brasileira ficou reduzida a Jorge Amado. Vem então a pergunta que não quer calar: será que ele é realmente o melhor que temos? Ainda acho que o melhor mesmo é que possamos ler os dois lados e que eu possa dizer: Senhor, afasta de mim os Callados e Montellos…

  • Pedro Curiango 24/07/2006em23:39

    Esqueci de um nome em minha oração: Senhor, afasta de mim os Callados, os Montellos, os Sarneys…

  • Peter Blake 25/07/2006em02:19

    Deus me livre bagunçar seu blog com uma discussão dessas, caro Sérgio (e Sírio), mas convém ler o Fukuyama antes de malhar.

  • Sirio Possenti 25/07/2006em08:37

    Não se trata de malhar, caro Peter. Trata-se de contestar uma tese – que não era só dele, diga-se. Aliás, recentemente, ele mesmo mudou de posição.

    Sérgio: sobre as posições voltarem ou não: não se trata apenas de serem razoáveis ou tacanhas. Algumas podem voltar exatamente por serem ruins, simplórias, simplistas.