O fato é que, sob a aparente paz e ordem encontradas em tantos países da América Latina, uma corrente de inconformismo vai atingindo níveis cada vez mais profundos. Exatamente como nos nossos romances e nas nossas peças – e é isso que confere a elas sua atual vitalidade, reconhecida pelo mundo –, também entre as massas a estagnação do subdesenvolvimento está começando a ser desafiada. Os que pensam e os que sofrem estão confluindo para um mesmo caminho. Não há hoje praticamente nenhum romance na América Latina que não pregue a revolta. Em nossos países, romances suaves e etéreos não iriam mesmo convencer nenhum leitor.
É estranho ler “Censura e outros problemas dos escritores latino-americanos” (José Olympio Editora, tradução de Cláudio Figueiredo, 98 páginas, R$ 20), tradução de três conferências de Antonio Callado (1917-1997) escritas em inglês e proferidas em universidades britânicas em fevereiro e março de 1974. Além da coragem do escritor, militante do Partido Comunista, de tocar naqueles temas com a ditadura militar brasileira esbanjando força – ainda estávamos no governo Medici –, o que mais chama a atenção do leitor de hoje é o envelhecimento implacável desses textos.
Não se trata, obviamente, de dizer que os problemas dos países latino-americanos foram resolvidos. Se as ditaduras andam um tanto fora de moda, sabemos que em muitos casos as tragédias se agravaram. O que soa datado em primeiro lugar é o prisma de Callado, “político” num sentido mecanicista. Aquilo que o leva a considerar, por exemplo, um livro menor de Julio Cortázar (“Livro de Manuel”) a obra “mais importante” do escritor argentino apenas por ter guerrilheiros como personagens e um seqüestro político como tema.
Não é só. Envelheceu também tudo o que a lente “revolucionária” de Callado focaliza. Quer dizer que nós, latino-americanos, temos uma vitalidade literária que o mundo reconhece? Era modismo, passou. E em nosso continente os que “pensam” e os que “sofrem” estão confluindo para um mesmo caminho? Era otimismo, feneceu. Todos os nossos romances pregam a revolta porque livros suaves e etéreos não iriam mesmo convencer nenhum leitor? Talvez se possa dizer que ocorre o contrário. E o que seria, aliás, um romance que “prega a revolta”? Será que Callado levaria sua visão da literatura como subproduto da política ao extremo de ser hoje um fã de Ferréz?
Publicadas agora pela primeira vez, pode-se até especular se, permanecendo inéditas, essas três conferências não prestariam melhor serviço a Antonio Callado – um romancista eminentemente político, mas nada ingênuo ou simplista. Não duvido, mas nesse caso perderíamos um curioso documento de época.
16 Comentários
São Nelson Rodrigues, santo padroeiro dos reacionários e amigão de Callado dizia deste: “É um doce radical”.
Bons tempos em que os comunistas podiam ser doces e radicais ao mesmo tempo. Ficou o doce, o escritor talentoso e finou-se o radical, o comuna deslumbrado.
Hoje em dia Antônio Callado seria apenas mais um idiota coletivo.
Ou seja, que pena que o Saramago não morreu há 15 anos atrás!
fã de Ferréz é dose, hein?! Melhor estar morto mesmo… Só o seu amigo de blog Xico Sá que acha que aquilo que o Ferréz produz é bem escrito…
Antônio Callado não é apenas um ensaísta deplorável, completamente ultrapassado, mas também um romancista medíocre, cuja sobrevivência deve-se apenas a seu “esquerdismo” meio estalinista. Daqui a alguns anos será tão lembrado como Tito Battini, um “esquerdista” super-popular sessenta anos atrás… Sic transit gloria sinistrae…
Salve Sérgio, tudo bem? Bom saber deste lançamento que joga luz sobre um momento específico da história do Brasil e da vida de um dos nossos grandes escritores. Rapaz, mas o que me impressiona mesmo é que o Callado, que faleceu há quase dez anos, ainda consegue incomodar esses filhotes do Olavo de Carvalho (a mãe não preciso dizer quem é). O que será que soa mais anacrônico, antigas palestras do Callado ou o discurso atual dessa turma que enxerga comunistas por toda parte? Grande abraço.
Como dizem – falo no presente porque o pensamento continua extremamente válido – André Breton e os surrealistas, duas coisas valem a vida ser vivida: o amor e a revolta.
Bom escritor da nossa literatura, a arte de Callado segue significativa às novas gerações.
Como cidadão foi exemplar, um intelectual honesto e democrata sempre ao lado do povo.
Possíveis aspectos datados das conferências possuem interesse: Callado, como Érico Veríssimo, e outros importantes escritores da época, riscaram seus fósforos no meio da escuridão.
Graças a Deus que esses fósforos se apagaram! Era só o que faltava, o Brasil comunista desde 64…
Fiquem calmos, comuninhas do blog. Vocês perderam em 64 mas estão ganhando agora. Fiquem tranqüilos que a tarefa de destruir o pouco que resta do Brasil será todinha de vocês.
Eu só lamento que vocês não terão a oportunidade de me colocar num paredón. Tô longe daí!
É pessoal! Mesmo após décadas, nada mudou. Tanto da parte dos esquerdistas, que endeusam a arte de Callado, quanto dos direitistas de plantão que, teimam em substima-la.
Fico, às vezes, meio cansado de tanto ouvir a palavra POVO, como se no Brasil existisse um POVO e os OUTROS. Na realidade, POVO deve incluir TODOS nós. Segundo a ed. original do Caldas Aulete, POVO quer dizer: “nome coletivo de todos os indivíduos do mesmo país e que vivem sujeitos às mesmas leis; os habitantes de uma mesma região, cidade, vila ou aldeia”. Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (o Aurélio original): “Conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, possuem hábitos e costumes idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns”. Note-se, na definição de Caldas Aulete, a presença de duas palavras: TODOS e MESMAS. E na do Aurélio: MESMA, IDÊNTICOS, AFINIDADE (e não igualdade!), comuns. Povo sou eu, é o torneiro mecânico, é o Lula, o Jair Bolsonaro, a Heloísa Helena, o padeiro da esquina, o Olavo de Carvalho, o flanelinha do semáforo, a Giselle Bündchen, e todos nós que temos a cidadania brasileira (e que às vezes precisamos de outra, como D. Marisa). Se o Antônio Callado estivesse ao lado do povo – e não de uma ideologia que exclui do POVO todos os que não comungam com ela – ele estaria também do lado do Olavo de Carvalho…
Fico um pouco espantado com tanto ódio anônimo. Claro que cada um pode achar o que bem entender do Callado ou de quem quer que seja. Mas, enfim, preservemos as mães – inclusive e principalmente a minha. Não li o livro comentado pelo Sérgio, nem pretendo fazê-lo. Pelo resumo, acho que discordaria daquelas opiniões todas do Callado, mas, enfim, prefiro louvar sua coragem de falar o que falou durante a ditadura. Ditaduras são péssimas até por isso: embaçam a visão, favorecem a radicalização, transformam tudo num Fla x Flu. Nessa, o Callado dançou. O engraçado é que o autor Callado – ainda bem! – não seguiu tanto assim o que defendeu. “Bar Don Juan” é um belíssimo livro, que trata da tentativa guerrilheira com muito cuidado, sem ôba-ôba, expõe dramas e dúvidas. Gosto muito também do “Memórias de Aldenham House”, livro que acabou sendo pouco falado. Mas, enfim, acho que quem se expôs tanto merece algum respeito e, no limite, pedradas assinadas.
Para quem, por razões apenas políticas, é incapaz de reconhecer em Antonio Callado o grande escritor que ele sem dúvida é (miopia equivalente à de Callado ao superestimar aquele livro do Cortázar, só que com o sinal trocado), recomendo um livrinho muito interessante e não de todo impossível de encontrar chamado “Missa do galo – Variações sobre o mesmo tema” (1977, Summus Editorial). A política passou longe dele. É uma brincadeira culta em que seis escritores brasileiros escrevem variações sobre o famoso conto de Machado. Além de Callado, lá estão Autran Dourado, Lygia, Nélida, Osman Lins e Julieta de Godoy Ladeira. Um time forte que produz um resultado meio irregular, mas na média bem bom. A exceção é Callado, com um conto chamado “Lembranças de Dona Inácia” que é simplesmente brilhante. Um espanto. Gosto dessa história porque ela põe algumas coisas no seu lugar: montaram uma seleção e Callado foi, indiscutivelmente, o craque do time. Se a discussão voltar a girar em torno de literatura, como deve ser, é bom que fique claro que o homem merece respeito.
É complicado falar sobre posições ultrapassadas, até porque elas podem voltar em pouco tempo. Não é torcida nem vaticínio. Mas lembro de 1988 e da queda do Muro, logo da URSS: todos diziam que agora sim tudo é democracia e paz, menos Hobsbawn, o velho histpriador comuna, que anunciou que as coisas iam engrossar (na Europa, principalmente). Foi o que se deu. O que acabou logo foi o slogan do fim da história.
Profecias sobre o passado costumam acabar mal…
Entendo o que você quer dizer, Sírio, mas não posso concordar. O que há de ultrapassado nos textos do Callado não se resgata mais, é fruto de um momento obscurantista, de um horizonte estreito. Mecanicismo é mecanicismo em qualquer época, e não me parece que seja tão arriscado apontá-lo – acho até um dever. Quanto à frase de efeito do Fukuyama, você exagera para construir seu argumento. Era grotesca já ao nascer e foi ridicularizada, se bem me lembro, até pelos liberais menos tacanhos.
O problema da qualidade literária nada tem a ver com a ideologia do autor: Céline era fascista e Graciliano Ramos comunista e ambos são escritores da melhor qualidade. Josué Montello era de direita (creio eu) e Antônio Callado de esquerda e ambos são autores medíocres. Talento não tem nada a ver com política. Grandes escritores brasileiros históricos (Machado de Assis, Gonçalves Dias, José de Alencar, Olavo Bilac, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt) eram fundamentalmente conservadores. Mas Castro Alves é absolutamente de “esquerda” (se é que se possa falar nestes termos com relação àquela época). E foram exatamente Machado e Alencar que reconheceram imediatamente seu talento. O problema é a promoção exclusivista que a esquerda faz: nos antigos países comunistas a literatura brasileira ficou reduzida a Jorge Amado. Vem então a pergunta que não quer calar: será que ele é realmente o melhor que temos? Ainda acho que o melhor mesmo é que possamos ler os dois lados e que eu possa dizer: Senhor, afasta de mim os Callados e Montellos…
Esqueci de um nome em minha oração: Senhor, afasta de mim os Callados, os Montellos, os Sarneys…
Deus me livre bagunçar seu blog com uma discussão dessas, caro Sérgio (e Sírio), mas convém ler o Fukuyama antes de malhar.
Não se trata de malhar, caro Peter. Trata-se de contestar uma tese – que não era só dele, diga-se. Aliás, recentemente, ele mesmo mudou de posição.
Sérgio: sobre as posições voltarem ou não: não se trata apenas de serem razoáveis ou tacanhas. Algumas podem voltar exatamente por serem ruins, simplórias, simplistas.