No dia em que for contada a história da crise econômica que, com maior ou menor força, aflige hoje o mundo inteiro, é provável que o primeiro capítulo seja dedicado a um calote, ou melhor, um megacalote: o das hipotecas subprime no mercado imobiliário dos EUA. Caída a primeira peça do dominó, os efeitos seguintes foram – estão sendo – complexos demais para resumir numa palavra, mas uma coisa é certa: o calote sempre volta a aparecer. Quando a disparada da inflação faz muita gente descobrir que calculou mal sua capacidade de endividamento, por exemplo.
A peça de dominó do parágrafo acima não está ali por acaso. É controversa a origem de calote – palavra antiga, registrada em português desde 1771, segundo o Houaiss –, mas a tese mais provável sustenta que ela veio do francês culotte. Não o calção, mas um velho termo do jogo de dominó que, como afirma o etimologista Antônio Geraldo da Cunha, designava “as pedras com que cada parceiro fica na mão, por não poder colocá-las”.
A relação do culotte lúdico com a dívida não paga parece forçada à primeira vista, mas não é tanto assim. O calote pode ser entendido como o entulho que sobra na mão do credor, títulos que ele não conseguirá receber. Seja como for, culotte também tem em francês um sentido ainda atual que talvez bastasse para comprovar sua relação com o calote, embora Cunha não o cite: o de “dívida vultosa contraída no jogo ou nos negócios”.
Sem sair da mesa de jogo, basta trocar o dominó pelas cartas para que surja um similar nacional para o culotte: mico-preto ou apenas mico. Mico Preto começou sua carreira como marca registrada de um velho – mas ainda em circulação – jogo de cartas infantil no qual perde o jogador que, no fim, tem na mão a carta do mico. Fez tanto sucesso que virou substantivo comum e acabou dando num verbo de ampla circulação: micar.
Publicado na “Revista da Semana”.
6 Comentários
Sergio,
gostei de sua cobertura da Flip.
Mas, surgiu uma duvida. Nao existe (existia) uma feira semelhante em Passo Fundo??
Por que sera que ela nao decolou…
Ganhou fama e marketing??
É porque Parati tem aquele apelo bucolico de brasil colonia e mar ali a um pulinho?
Brasil colonia que se encontra ainda dentro dessa alma—dual– brasileira que baila entre os sonhos de futuro e a saudade do passado. melancolia de macambuzio num fim de tarde a beira-mar vendo mulatas passar lambuzadas, lambendo sorvetes…
Obrigada, caro Sérgio, por mais uma aula de língua portuguesa! Só assim entendi o uso (desagradável e tão em gosto para o pessoal da TV GLOBO) da expressão “pagar um mico”.
No mercado de ações, se diz que uma ação “micou” quando não se consegue vender o papel seja por falta de liquidez ou do interesse de outros compradores.
Lembro desse jogo! Meu irmão era vítima certeira do Mico Preto. Ele ficava tão nervoso quando tinha o mico na mão que não conseguia disfarçar. Contorcia-se, fazia caretas! E os outros tiravam partido da situação. Lembrança deliciosa…
Este jogo infantil do “mico preto” é o mesmo que os meninos americanos jogam como “old spinster?”
Muito boa crônica e excelente explicação sobre a origem do “calote”. Parabéns.