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Campos de Carvalho: ‘Sou um crápula’

19/06/2006

Atendendo a pedidos, seguem os dois parágrafos iniciais de uma das crônicas sem título de Campos de Carvalho em “Cartas de viagem e outras crônicas” (veja a resenha na nota abaixo). Qualidade à parte, não é um trecho típico do estilo do autor. Este, para quem não conhece, está bem resumido na frase inicial de “A dama no paquete”, do mesmo livro: “A bicicleta é um boi volátil cujo epicentro se situa sob o esfíncter anal do pedalante”. Resolvi destacar o texto abaixo porque o olhar que se poderia chamar de “social”, no sentido mais atual e penetrante que se dê à palavra, chama atenção em quem foi estigmatizado como alienado pela esquerda. Em outro ponto do livro, diz Campos de Carvalho: “Não sou um animal político, para espanto e escândalo de muita gente. Em compensação eu me escandalizo justamente com a sua politização, que é como eles chamam a sua mania de catequizar e sobretudo de se deixar catequizar”.

Sou um crápula. A mulher grávida de muitos meses carregando a enorme trouxa de roupa na cabeça, pobre a mais não poder e com um menino ao lado também equilibrando o seu volume. Chove e no chão escorregadio o menino deixa cair o seu embrulho, a mãe grita desesperada e desfere violenta bofetada no rosto do menino, que cai e começa a chorar. É dia de Natal, a mãe paupérrima e vesga está no último mês de gravidez, a roupa ali na lama põe a perder todo o trabalho de uma semana: eu tomo o partido do menino, grito como um possesso contra a espantada mulher, a senhora não pode bater assim no menino, isso é uma covardia, a mulher depois do espanto responde com a barriga enorme que todo o seu trabalho ficou ali perdido na lama, a grande trouxa ainda equilibrada na cabeça, o menino caído e chorando, eu então minto que vou chamar a polícia, pode chamar a polícia que o senhor quiser, o senhor e a sua polícia eu queria era ver no meu lugar com essa roupa no chão, vida mais desgraçada.

Sou um crápula. O que não disse à mulher digo-o agora de público, bem alto e de maneira que não haja dúvida nem de minha parte nem de ninguém: sou um crápula e de crápula devo ser chamado, que me apontem na rua como um crápula vesgo e obeso, a barriga deste tamanho: lá vai aquele crápula, chuva nenhuma limpará esse tipo imundo, a ele e aos seus sapatos, e aos seus óculos dourados metidos a besta, que não enxergam nem um palmo diante do nariz. Um crápula perfeito.

12 Comentários

  • Nicolas 19/06/2006em16:48

    Não é um texto de conotação social. É uma reflexão íntima, brilhantemente exposta. Aliás, é incerta a fronteira entre o íntimo e o social.

    Esse cara era um gênio. A coletânea que a José Olympio publicou é uma jóia.

    Campos de Carvalho dá um banho nos escritores politicamente engajados, tão afeitos às bajulações sociais e às patotas (isto é que é engajamento político). Existe uma geração de ilustres que dividia as celas da ditadura. Será um bom motivo para a minha próxima leitura?

    Escrever dá trabalho demais. Não dá tempo para patrulhar ou se incomodar como patrulhamento alheio.

    Cito outro excluído, Gustavo Corção, que escreveu trechos antológicos em Lições de Abismo, recentemente republicado pela Agir.

    Sugestão: uma coletânea dos excluídos, politicamente desengajados (ou engajados na seara alheia), mas que primaram pela boa escrita. Os sem-patota.

  • Pedro Curiango 19/06/2006em18:43

    Numa época que venera “romancistas” como Chico Buarque de Holanda e “pensadores” como Paulo Coelho, e em que “excelência” se mede pelo sucesso comercial ou pelo engajamento em “políticas corretas” (isto é, esquerdistas ou pseudamente vanguardistas ), ler Campos de Carvalho é um prazer que poucos já experimentaram. Parabéns, Sérgio, por trazê-lo à baila. Uma curiosidade: “A Lua Vem da Ásia”, provavelmnte seu melhor livro, teve um grande sucesso de leitores quando de sua publicação. Era eu adolescente e lembro-me bem de como o livro correu de mão em mão entre meus amigos daquela época.

  • Simone 19/06/2006em22:57

    Autores que não entendo como não são (re)publicados: o Victor Giudice, o Philip K. Dick, e outros expoentes da scifi como Harlan Ellison, Norman Spinrad, Cordwainer Smith.

  • eduardo 20/06/2006em00:11

    Uma boa dica de leitura.

  • Malu 20/06/2006em01:21

    Adorei. Amanhã tem mais?

  • sonho bom 20/06/2006em06:26

    Ai, Sérgio, não pude deixar de me comover com este fragmento da leitura. Imagino o que acontecerá se pegar para ler toda a obra. Agradeço a dica e lhe desejo um ótimo dia.

  • Luiz André 20/06/2006em11:11

    Valeu, Sérgio! O cara merece ser lido.

  • Castro Nunes 20/06/2006em20:59

    Pois é, Sérgio:
    Para ser um bom crápula, no estilo de Campos de Carvalho, basta enxergar a realidade e chamá-la pelo nome. Os grandes escritores só precisam fazer – e fazem – isso: chamar as coisas pelo nome. Mas chamá-las pelo nome que eles próprios criam para elas – e não por aqueles que os modismos literários obrigam que tenham. E os quais os escritores menores usam, e por duas razões: porque não têm talento para falar por si mesmos e porque sabem que falando o que todo mundo fala vão vender muito e ficar famosos. Em vez de dizer “eu sou um crápula” , esse autor dirá , no máximo: “O fato de eu conseguir enxergar como a realidade é abjeta me isenta da obrigação de perceber que eu faço parte dela. E me imuniza contra a consciência de que que ela é o que é exatamente porque eu sou um crápula”.

  • cristina 20/06/2006em20:59

    Oi, Sérgio
    Ando sempre por aqui, farejando dicas e observando sua prosa afiada com humor e lucidez.
    Touché! Campos de Carvalho é um talento primoroso. Qdo a Maria Amélia, da José Olimpyio, reeditou as obras , eu já ruminava na lua com meus livrinhos garimpados em sebos. Agora, nem pestanejo , vou enfiar o nariz na leitura destas cartas e crônicas.
    beijos
    Cristina Zarur

  • Sérgio Rodrigues 21/06/2006em19:30

    Muito legal ver você por aqui, Cristina. Apareça sempre, beijo grande.

  • Writing Ghosts 22/06/2006em00:42

    oba! fez a alegria dos internautas. valeu! – são tantas as obras a se descobrir, tantas que mal consigo tempo para ler e outras tantas que estão começadas, perdidas entre o que escrevo, anoto, ou pesquiso apenas – que acabam sendo preciosos estes trechos, esses lampejos de literatura sã e veraz – e tão pouco iluminadas pelos dias correntes… não sei se já anotei aqui (ou terei lido aqui?) que de tudo que já se imprimiu como literatura, apenas uns 15% estão, atualmente, nos catálogos das editoras.
    novamente, então, não é pouco dizer: obrigado pelo excerto, pela memória, pela pertinência. valeu!

  • Sergio O 28/06/2006em00:45

    Acho que EU TAMBÉM sou um cráaaapula.