A cara-de-pau não é apenas um regionalismo brasileiro, usado com o mesmo sentido – de descaramento, desfaçatez, cinismo, desembaraço diante dos maiores apertos – que, em algumas regiões de Portugal, tem a expressão “cara estanhada”. Mais que um jeito de falar, trata-se de uma instituição, como provam mais uma vez casos como a farra dos cartões corporativos e o escândalo que envolve o reitor da UnB.
É difícil dizer quando surgiu a cara-de-pau – e aqui estamos falando do termo, naturalmente, visto que o comportamento nomeado por ele é tão velho quanto a humanidade. Ausente de dicionários antigos, a palavra composta, que tanto pode exercer o papel de substantivo quanto o de adjetivo, aparece nos léxicos modernos como uma forma subsidiária de “caradura”, vocábulo hoje menos usado, do qual é provavelmente uma variação cômica.
Se caradura foi registrada pela primeira vez por um lexicógrafo em 1913, as abonações literárias de cara-de-pau que aparecem no bom “Dicionário de Usos do Português do Brasil”, de Francisco S. Borba, datam dos anos 1960 e 1970 e foram extraídas de obras célebres por fixar a linguagem falada no submundo de grandes cidades brasileiras, como “Navalha na carne”, de Plínio Marcos, e “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de João Antônio. Isso não vale como prova de nada, é claro, mas dá boas pistas.
O sentido de cara-de-pau, como o de caradura, é até certo ponto auto-explicativo: a capacidade de contar mentiras, adotar práticas condenáveis ou justificar comportamentos sórdidos, mantendo sempre no rosto uma expressão neutra, impassível. Até sua ambivalência moral – a cara-de-pau do político corrupto, que provoca indignação, é a mesma exibida por heróis picarescos tidos como emblemas da nacionalidade, como Macunaíma e João Grilo, que nos divertem – contribui para fazer dela uma instituição nacional.
Publicado na “Revista da Semana”.
15 Comentários
Tá cheio assim, ó, de caras-de-pau lá no Oficina de ficção. Incluindo eu.
Sérgio: lembro-me que “cara-de-pau” era de uso corrente desde pelo menos o início da década de 1950. Em Portugal, encontro a expressão “cara de pau”, na acepção de “impass’ivel, sem expressão”, no vol. III da “”Encyclopedia Portugueza Illustrada – Diccionário Universal publicado sob a direcção de Maximiano Lemos”, editado por Lemos e Cia., na cidade do Porto, sem data. Inocêncio
(vol. 17), em 1894, informa que a enciclopédia estava sendo publicada naquela época, em fascículos. Com isto, creio que podemos afirmar que a expressão já existia em Portugal no século XIX.
Diante de prova bibliográfica tão eloqüente, Curiango, parece difícil afirmar algo diferente. Registro apenas que todos os nossos dicionaristas – quem sabe erroneamente – chamam a palavra de “brasileirismo”, o que é um dado respeitável, sobretudo no caso do cuidadoso Houaiss. E que a primeira acepção de cara de pau no monumental dicionário (contemporâneo) da Academia das Ciências de Lisboa é “pessoa carrancuda”. O que me leva a duas hipóteses: 1. trata-se, sim, de um brasileirismo, que o “Diccionario Universal”, fazendo jus ao nome, já naquele tempo captou; e 2. a palavra nasceu em Portugal, mas acabou caindo em desuso por lá, pelo menos em sua acepção original, e foi incorporada ao nosso vocabulário de tal forma que dela tomamos posse. Seja como for, muito boa e instigante a informação que você levantou. Um abraço.
Curiango: e veja só o que acabo de encontrar num velho Constâncio de 1868, que até agora eu nem tinha consultado por julgar os portugas um tanto alheios ao caso. Não, ele não registra cara-de-pau. Mas tem, com o mesmo sentido de “descarado, sem vergonha”, um delicioso “cara d’aço”!
Sérgio,
ainda está em planos aquele livro “A palavra é?”
Abraços.
Caro Sergio,
Aqui vai uma sugestão p/ a próxima palavra: Antártida. Uma parcela considerável da imprensa, inclusive o Jornal Nacional, chamam o Continente Antártico de Antártica.
Só falta completar dizendo que se trata do Continente número 1 (rs).
Saudações e cumprimentos pelo blog.
Luiz
Luiz, obrigado pela sugestão. Mr Writer, ainda está nos planos, mas essa fila andou sendo furada. Vamos ver no que dá. Abraços aos dois.
Olá, grande e querido Sergio Rodrigues.
Por acaso o termo também pode ser associado ao “pau-oco”?
Beijo imenso, da sua sempre fã.
Ah! Amei o texto.
Deise
Acho que a frase “isto é uma vergonha!”, jamais foi tão usada no Brasil.
Vergonha não existe mesmo naqueles caretas de Brasília; é escândalo atrás de escândalo.
As palavras “nosso governo é honesto”, nunca mais foram pronunciadas.
O que mais se ouve ou se lê é: “nunca soube”, “vamos apurar”, e pasme-se: “a(o) querida(o) companheira(o) que tão dignamente se houve à frente de suas funções durante esse tempo de convivência, a quem agradeço pela inestimável colaboração” .
Dá pra entender?
É muita cara-de-pau, hipocrisia, charlatanice, cachorrice, safadeza, covardia, mentira, sacanagem, ladroagem, corporativismo, cartel, petice, etc., etc.
Que mais falta ao brasileiro assistir? Nem estupefato mais conseguimos ficar!
Uma conclusão, no entanto, é obvia: dinheiro é que não falta!
correção: estupefatos
Carlos Magno,
quando essa turma ascendeu, eu dizia a amigos que veríamos coisas do arco da velho em alguns meses. Não que eu fosse adivinho ou coisa assim, mas era tão só e apenas memória que um jornalista de meia idade razoavelmente bem informado tinha das coisas que ocorriam nas prefeituras comandadas pelos caras (e muitos que participavam dessas administrações estavam lá na equipe companheira, lembra?, e muitos deles já ficaram pelo caminho).
Pois bem, até eu, veja só, até eu estou surpreso com o nível a que os caras chegaram. Se o Sérgio precisa de exemplos de “caras de pau” ele tem às centenas nessa turma.
correção: caras-de-pau
Cezar:
A clarividência sobre o PT, veio-nos em casa por um amigo astrólogo, que nos disse, já na primeira posse do PT, que esse seria o governo dos maiores escândalos.
Ambos, você, jornalista, e ele, acertaram.
Eu, particularmente, há muito tempo não acreditava em salvadores da pátria. Acho que em parte também acertei.
Abs.
Ok Sérgio, quando as novidades forem concretas favor nos avisar…
Mesmo que fazer autopromoção no seu próprio blog incomodo muito as pessoas por aí.
Abraços.
P.S.: Sabe como é, perde-se os amigos (ou inimigos, sei lá), mas não perde-se a piada.
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