Um livraço chegou às prateleiras no início deste mês: “68 contos de Raymond Carver” (Companhia das Letras, 712 páginas, R$ 54,00). O aumentativo irregular se justifica por uma combinação de três fatores:
Primeiro: um dos grandes mestres do conto no século 20, o americano Carver (1938-1988) tem pela primeira vez a parte mais substancial de sua obra reunida por aqui num só volume, dos textos pouco “carverianos” da juventude aos que escreveu em seus últimos anos de vida e que só chegaram ao livro postumamente, passando pelos 12 contos de sua obra-prima “Catedral”, de 1983.
Segundo: a tradução caprichada de Rubens Figueiredo, também ele contista e um prosador que cultiva a secura do estilo, é fiel até a última vírgula ao lirismo contido do original.
Terceiro: a excelente introdução de Rodrigo Lacerda condensa em apenas quinze páginas tudo o que o leitor pouco familiarizado com Carver (ou que só conhece seu universo por tabelinha com o filme “Shortcuts – Cenas da vida”, de Robert Altman, baseado em algumas de suas histórias) precisa saber para situar esse egresso dos cursos de creative writing, nascido numa família de trabalhadores braçais, alcoólatra e eterno desajustado, na linha evolutiva de um gênero pouco comercial que ele ajudou a tornar vendável.
Lacerda se detém – nem poderia evitá-lo – no polêmico papel desempenhado pelo editor Gordon Lish na fixação do estilo de Carver, a partir do livro “Você poderia ficar quieta, por favor?”, de 1976, e principalmente no seguinte, “Do que estamos falando quando falamos de amor”, de 1981. Quando a viúva do autor, Tess Gallagher, publicou em 2007 a versão original deste último livro – que a mesma Companhia lançou ano passado com o título “Iniciantes” –, ficou claro que a edição feita por Lish sob o incentivo inicial de Carver (“não hesite em ‘mandar o lápis’ nas histórias”) foi de um radicalismo assombroso, que alguns consideram suficiente para chamá-lo de coautor.
Exageros à parte, a fama de Raymond Carver como escritor “minimalista”, que acompanhou seu sucesso de público e crítica nessa época, tem certamente mais a ver com a tesoura de Lish do que com o fôlego natural de suas narrativas. (Vale a pena conferir a versão original de “Beginners” com os cortes de Lish explicitados, publicada na época pela “New Yorker”.) O mal-estar gerado nos meios literários por essa constatação, porém, soa exagerado. Como argumenta Lacerda, “afora o melhor entendimento de seu percurso literário, que caminhara naturalmente para a contenção, a simples leitura comparativa das duas versões do livro, por imensas que sejam as diferenças textuais, permite ao leitor identificar a marca emocional de Carver na base de tudo”.
Essa marca emocional é a de uma perplexidade conjurada a partir de histórias banais, cotidianas e quase sem enredo, protagonizadas por “caipiras de shopping-center” (expressão, ops, de Lish), mas em cujo subterrâneo dores, revelações e compaixão se acotovelam com intensidade suficiente para fazer de Carver, com ou sem editor, um mestre indiscutível da escola fundada por Tchecov. Para uma comprovação rápida do que acabo de dizer, leitores indecisos podem ler em pé na livraria o conto “Catedral”, um favorito do autor, pertencente a um livro em que ele já havia decidido puxar as rédeas de Lish: “Uma coisa é certa: as histórias desse livro serão mais ‘cheias’ que as dos livros anteriores”, escreveu ao editor. Nada minimalista, mas ainda contido, “Catedral” é uma maravilha de conto.
6 Comentários
O Sérgio, por que só recomendações de autores anglófonos em seu blog?
Semana que vem, quero ver aqui recomendação dalgum obscuro escritor tcheco, estoniano, ou coisa semelhante.
Abraço.
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Ahn, pena, não conheço nada desse autor. Aliás, se conhecer o filme conta, então conheço, e foi um filme que me marcou bastante.
Falando em lançamentos, tem alguma notícia pra mim senhor Sérgio? 😉
Não conheço o Carver, mas esta coleção da Companhia das Letras sempre está excelente. Tenho os do Machado e do Onetti e estou querendo comprar do Sergio Santana.
É bom saber que o Rubens Figueiredo não dá uma do ( para mim ) “Aloprado Lish”. Uns escrevem, outros cortam. Meteu uma “Mel” ali… Eu hein?
Olha, overall, eu diria que o texto editado de Begginers é mais bem-escrito, mas o original sem cortes… céus. Aquele final. Muito, muito melhor – de vez em quando, algo de muito humano brota na melhor literatura, e esse final é um destes momentos.