A palavra “furacão” descende do espanhol huracán, que por sua vez veio do taino, língua indígena antilhana. De huracán saíram também o inglês hurricane, o francês ouragan e o italiano uragano. No entanto, como traçar a origem de uma palavra nunca dá conta de toda a sua riqueza, o Houaiss anota sabiamente que “a forma portuguesa acusa desde o início um alto grau de motivação expressiva”. Motivação expressiva? Isso. Furacão. Fúria do Cão. Publicado no “NoMínimo” em 31/8/2005.
Antes de designar a venda ilegal de favores por representantes do poder público, corrupção é deterioração, decomposição física, apodrecimento. “Corrupto” vem do latim corruptus, particípio de “corromper”: é o corrompido, o podre, o que se deixou estragar. Como se vê, nossa linguagem condena a corrupção com uma veemência muito maior do que seria de esperar numa sociedade inclinada a pagar a cerveja do guarda sem pensar duas vezes. Pior: a palavra pode nos induzir ao erro quando dá a entender que a prática é uma espécie de acidente ou queda, desvio lamentável num caminho feito para ser reto e solar. E se ela estiver mais próxima de ser um sistema? Publicado no “NoMínimo” em 27/5/2005.
O leitor José Luiz Fonseca escreve para falar de sua curiosidade sobre a palavra “escroque”, que, como ele diz, “no meio dessa crise, vejo toda hora aparecer nos textos”. De fato, escroque – “indivíduo que se apodera de bens alheios por manobras fraudulentas”, segundo o Aurélio – não é artigo que ande em falta. O Houaiss informa que a palavra, vinda do francês, chegou por aqui oficialmente em 1914. Foi naquele ano que a revista “Fon-Fon” empregou o termo pela primeira vez – ainda com a grafia “escroc”, que só seria adaptada para a atual duas décadas mais tarde. O francês, por sua vez, tinha ido buscar a palavra no italiano scrocco, “golpe, calote”. Como se percebe, “escroque” nada tem a ver, etimologicamente, com “escroto”, que numa acepção bem brasileira serve para qualificar aquele ou aquilo que é ruim, feio, mau-caráter, de mau gosto etc. Acontece que a etimologia não explica tudo. É provável que as semelhanças sonoras e semânticas entre as duas palavras tenham contribuído para que prosperasse entre nós o velho galicismo da “Fon-Fon”. Publicado no “NoMínimo” em 26/8/2005.
Quem se divertiu com a embrulhada do forró, que teria vindo mas não veio de for all, como muita gente – inclusive gente professora – acredita e repete por aí, vai gostar dessa: chulé viria de shoeless (descalço). Um achado digno de rivalizar com o for all but dogs (para todos, menos cachorros) que um leitor pôs na roda para dar conta de forrobodó – palavra bem anterior à Segunda Guerra, do repertório de Chiquinha Gonzaga, o que liquida a tese da influência americana de for all: pode-se afirmar com segurança que forró é a forma reduzida de forrobodó, baile, furdunço. A teoria shoeless já foi desmentida em três golpes firmes pelo bom professor Cláudio Moreno em sua coluna (vai nas minhas palavras): o termo “chulé” nomeia um fato universal e ancestral; existe em português desde quando a influência do inglês sobre nosso idioma era muito pequena; não tem a menor correspondência de sentido com shoeless, que em sua língua significa apenas descalço – nada a ver com o olfato. O trabalho de demolição foi bem feito por Moreno, mas talvez tenha faltado dizer que, diante de for all, shoeless leva pelo menos uma vantagem: não há etimologia sólida a…
Todo mundo pode falar “puxa!”. Tem ótimo trânsito na família brasileira essa interjeição, faz tempo que vem se perdendo nela a memória da puta. Puxa vida! Vida cadela! Está no Houaiss: puxa, “forma eufemística do substantivo puta, tomada de empréstimo ao espanhol pucha (c1500) ‘eufemismo por puta; interjeição de surpresa, desgosto etc.’” Puxa é como cacilda, caramba, caraca, tabuísmos atenuados. De todos eles, é provavelmente o que disfarça melhor a sua origem. Não para Glauco Mattoso, que não tem dúvida sobre ela em seu bilíngüe “Dicionarinho do palavrão & correlatos” (Record): manda direto de Puxa!, Puxa vida! para Puta merda!, e traduz para o inglês: “Hell’s bells! Hot damn! Holy shit! Holy fuck! Holy cow! Fuck a duck!”, e por aí vai. Mas puxa é diferente, todo mundo fala. Confunde-se com o verbo puxar, parece uma interjeição inocente. O Houaiss informa que Antenor Nascentes e Cândido Jucá brigaram pela grafia pucha, “mais consentânea com o étimo”, mas perderam. Ainda bem. Curioso: de poxa, que o dicionarinho do poeta Glauco não registra, os dicionarões dizem apenas isto: o mesmo que “puxa”. Nem uma palavra sobre a óbvia mudança de palavrão que a troca de vogal provoca. Publicado no “NoMínimo” em 16/5/2005.
Recuando na história da palavra, vamos encontrar um parentesco entre o hipócrita (falso, dissimulado) e o adivinho grego, o hupokrites. De início, a palavra que hoje parece feita sob medida para letras de bolero designava um intérprete de sonhos, profeta ou vidente; em seguida, passou a nomear um ator, um comediante; por fim, o mentiroso genérico. De todos esses sentidos, o que transbordou para diversas línguas modernas, por meio do latim, foi o último. Mero acaso? Ou será que a denúncia da falsidade que acabou prevalecendo em “hipócrita” se deve a uma progressiva desilusão – ou tomada de consciência, chamem como quiserem – da espécie humana ao longo da História, desde a crença cega em oráculos até o ceticismo que hoje exercitamos diante da TV Senado? Publicado no “NoMínimo” em 19/8/2005.
A história da palavra “bonito” prova que tem raízes mais fundas do que se imagina a identificação entre as idéias de beleza e bondade, que num exame superficial talvez tenhamos a tentação de atribuir a uma “ditadura estética” inaugurada pela cultura de massa e cujos arquétipos poderiam ser dois personagens de velhos filmes de faroeste: o mocinho de traços finos e o bandido abrutalhado com uma cicatriz na cara. No entanto, depois de descontados os contrabandos raciais com que o cinema americano temperou a seu modo o paralelo entre beleza e bondade (olhos azuis para cá, negros para lá), as idéias continuam de mãos dadas. A palavra “bonito” chegou ao português no século 16. Descende do latim bonus (bom), provavelmente depois de uma tabelinha com o espanhol bueno, do qual tomou emprestado o diminutivo. Em resumo: bonito, na origem, é bonzinho. E para não deixar dúvida alguma no ar, “belo” vem do latim bellus, também diminutivo de bonus. Publicado no “NoMínimo” em 30/8/2005.
O nome desse galináceo pequeno e invocado, reizinho dos quintais de todo o país, de agitação inversamente proporcional à estatura, é um tributo ao cruzamento de culturas como forma de enriquecimento da língua. Pega bem lembrar a história do garnisé nesses tempos bicudos, quando anglicismos de todos os formatos vêm cantar de galo em nosso terreiro e dão a tanta gente a sensação apocalíptica de que o inglês, apesar das esporadas do Itamaraty, vai matar a galinha dos ovos de ouro da língua. Calma, pessoal. O nome do garnisé, de sonoridade brasileiríssima, vem da ilha britânica de Guernsey, de onde foram importados os primeiros exemplares desses galinhos, no século 19. Quer dizer: no fim dá certo, é só não desesperar. Publicado no “NoMínimo” em 25/1/2005.
“Esculachar”, um dos verbos centrais da linguagem bandida de hoje, significa, como se sabe, baixar o cacete. Seu charme marginal lhe garante presença no vocabulário de um grande número de falantes urbanos, especialmente jovens. A maioria nem deve imaginar que se esculacha no Brasil faz tempo. Tudo indica que a palavra nos chegou com os imigrantes italianos no início do século 20. Sculacciare vem de culo e quer dizer dar palmadas na bunda, especialmente de crianças. Entre nós, teve seu sentido ampliado para se tornar, ao longo de quase todo o século passado, o verbo mais expressivo para a ação de repreender de forma violenta ou grosseira. Fazia tempo que o esculacho andava fora de moda: nas últimas décadas foi perdendo a preferência dos falantes para o esporro. O mais interessante é que volta à cena assumindo um significado mais próximo do original, ligado à violência física, do que daquele que por muito tempo foi o mais corrente. Algumas palavras hibernam. Publicado no “NoMínimo” em 11/8/2005.
O leitor Aian Cotrim tem uma dúvida de grafia que qualquer dicionário poderia ter sanado. Mas vale a pena falar um pouco sobre a história da palavra “luau”. Caro Sérgio, nessa semana travei uma discussão com colegas da faculdade sobre a grafia correta de uma palavra: é ‘luau’ ou ‘lual’? Defendi com todas as minhas forças a opção ‘luau’ por achar as vogais mais características da nossa lingua, porém não tenho qualquer fundamento mais organizado para embasar minha resposta. Espero que você possa responder a minha pergunta. Aian acertou, mas pelas razões erradas: “nossa língua” não tem nada a ver com isso. Provavelmente devido ao fato de “luau” ser uma festa praiana de estilo havaiano que ocorre à noite, muita gente acha que a palavra tem alguma relação com “lua”, “luar”. A pista não poderia ser mais falsa. “Luau” vem do havaiano lu’au, que, antes de nomear por extensão também a festa, era apenas o nome de um prato típico servido nessas celebrações – folhas de taro, um tipo de inhame, cozidas com leite de coco. Publicado no “NoMínimo” em 16/4/2007.
Subornar vem de sub + ornar. Ornar deriva do latim ornare – “fornecer, equipar, armar, aparelhar, preparar, embelezar, ornar, distinguir, honrar”, segundo o Houaiss. Trata-se de um verbo um tanto culto, mas ainda vivo como sinônimo menos freqüente de enfeitar, adornar, ornamentar, ataviar, emperiquitar, empetecar. Subornar é, na origem, pôr uma pulseira de ouro no subornado, um brinco de brilhante em sua orelha, uma gravata italiana em seu pescoço. Até aí faz sentido, mas… por que o “sub”? Justamente pelo caráter sorrateiro, dissimulado da operação. O prefixo “sub”, aqui, tem o mesmo sentido que exibe no adjetivo “sub-reptício”: denuncia ação furtiva, aquela que só é praticada quando se imagina que ninguém – ou, em termos mais modernos, nenhuma microcâmera – está de olho. Publicado no “NoMínimo” em 1/7/2005.
Se passarmos a fita da história ao contrário vamos presenciar, numa daquelas eras que antigamente se chamavam de priscas, o encontro da palavra “gravata”, acessório polido do vestuário masculino, com a palavra “croata”. Veremos então que os dois vocábulos, um tanto surpresos, se apalpam, se cheiram – e se fundem. A cena se passa bem longe dos salões urbanos em que a gravata brilharia: o que vemos ao fundo, contra o céu roxo, são colunas de fumaça numa paisagem sangrenta de trincheiras. Pois é. A “gravata”, que, já perfumada, nos chegou do francês cravate na virada entre os séculos 17 e 18, antes disso (passando a palavra ao filólogo Silveira Bueno) “veio para o centro da Europa trazida pelos cavaleiros croatas, durante as guerras com a Alemanha desde 1636, depois pelos mercenários croatas dos reinados de Luis XIII e XIV, que compunham o regimento Royal Cravate. A forma primitiva foi o eslavo hrvat passada a um dialeto alemão Krawat”. Simplificando a prosopopéia: os soldados croatas tinham o costume de amarrar no pescoço uma tira de tecido que, vejam só, caiu no gosto dos europeus urbanos. Entre os alemães, o acessório se tornou conhecido também como “croata”, em versão dialetal. Que…
A leitora Vivian Pontes gostaria de saber qual é a relação entre a picareta e o picareta, ou, nas palavras dela, “entre a ferramenta e o sentido figurado da palavra, que serve como uma luva para os membros do nosso governo”. Boa pergunta. Sabe-se que picareta – substantivo e adjetivo de dois gêneros que designa uma pessoa embusteira, aproveitadora, que recorre a expedientes acanalhados para se dar bem – é um brasileirismo velho de muitas décadas, mas parece ter se perdido o elo entre a acepção original da palavra e seu uso figurado. O palpite arriscado pelo etimologista Silveira Bueno é o seguinte: “Picareta – Instrumento de ferro e ponta, próprio para cavar a terra, revolver pedras, abrir buracos. Fig. pessoa descarada e audaciosa que em tudo mete a cara para cavar dinheiro, emprego”. E quem quiser que conte outra, certo? Então eu conto: não parece mais razoável supor que picareta adquiriu seu sentido figurado por influência da palavra “pícaro”, que quer dizer, justamente, ardiloso, astuto, velhaco? Publicado no “NoMínimo” em 18/8/2005.
– Você acha que a palavra “babaca” vem do latim baburrus, “tolo, palerma”, ou é uma forma reduzida de babaquara, do tupi mbae’be kwa’a ara, “o que nada sabe, mas manda”? Ou não engole nada disso, acha que babaca vem mesmo é do português basbaque, embasbacado? – Eu sei lá. Larga esse Houaiss. – Diz que a data pra acepção de “vulva” é 1939. A de “bobo”, veja só, trinta anos depois. A babaquinha vem antes do babacão. – Rá, rá. – Chuta aí: latim, tupi ou português? – Babaquice.
O post de hoje é a reunião de dois textos publicados no NoMínimo em 7 e 8/11/2005: O adjetivo “crasso”, do latim crassus (gordo, espesso), ganhou em português o sentido figurado – e hoje dominante – de “grosseiro, tosco”. Pode-se falar, por exemplo, numa pessoa crassa, num acabamento crasso, num discurso crasso, entre infinitas possibilidades mais ou menos crassas. Mas isso é teoria. Curiosamente, “crasso” acabou restrito, no mercado real das palavras, ao emprego de ajudante do substantivo “erro”. Algumas palavras se casam, entre juras de fidelidade eterna, e não é mole separá-las. * Volto à palavra de ontem porque vários leitores – alguns deles, justiça seja feita, com uma dose saudável de ceticismo – me escreveram para dizer que, segundo uma tese de sucesso na internet, inclusive na Wikipedia, os erros grosseiros começaram a ser chamados de “crassos” por alusão a um grave equívoco de estratégia militar cometido por Marco Licínio Crasso, membro do primeiro triunvirato romano, ao lado de Pompeu e Júlio César. Pode ser verdade? Pode, nunca se sabe. Mas que tem cheiro de etimologia romântica, tem. Consultando tomos vetustos e outros nem tanto, não encontrei nenhum etimologista sério que dê crédito a essa tese. De resto,…
Recebo o seguinte texto “inspirador”, que circula como corrente na internet: A palavra SINCERO foi inventada pelos romanos. Eles fabricavam certos vasos de uma cera especial. Essa cera era, às vezes, tão pura e perfeita que os vasos se tornavam transparentes. Em alguns casos, chegava-se a se distinguir um objeto – um colar, uma pulseira ou um dado –, que estivesse colocado no interior do vaso. Para o vaso assim, fino e límpido, dizia o romano vaidoso: – Como é lindo!!! Parece até que não tem cera!!! “Sine cera” queria dizer “sem cera”, uma qualidade de vaso perfeito, finíssimo, delicado, que deixava ver através de suas paredes e da antiga cerâmica romana. O vocábulo passou a ter um significado muito mais elevado. Sincero é aquele que é franco, leal, verdadeiro, que não oculta, que não usa disfarces, malícias ou dissimulações. O sincero, à semelhança do vaso, deixa ver através de suas palavras os verdadeiros sentimentos de seu coração. Estilo açucarado à parte, essa história de vaso fino tem lá sua beleza, não tem? Infelizmente, tudo indica ser uma daquelas lendas muito comuns na etimologia, baseadas em semelhanças fortuitas de som e sentido. Muitas vezes (embora não seja o caso aqui),…
Dando prosseguimento à série que a Flip interrompeu, segue um texto publicado em minha coluna diária sobre palavras no site “NoMínimo” em 2/3/2005: A leitora Luiza Fontes, de São Paulo, envia uma historinha de certo sucesso na Internet sobre a origem das palavras “aguardente” e “pinga” – texto creditado, não se sabe se acertadamente, ao Museu do Homem do Nordeste, no Recife. “Você pode confirmar sua veracidade?”, pergunta Luiza. Não posso, lamento: a história é grotescamente falsa. Obra de algum etimologista bêbado ou apenas exemplo daquele conjunto de crendices divertidas que faz divisa com a etimologia popular, a coisa, no entanto, é instrutiva ao seu modo – embora não sobre aquilo que pretende ensinar. Vamos à lenda: Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse. Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor. No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e…