Ditabranda, o polêmico neologismo com que a “Folha de S.Paulo” se referiu ao regime de exceção instaurado com o golpe militar de 1964, é um trocadilho baseado na sonoridade da palavra e não em seu sentido histórico. O adjetivo “dura”, por mais que soe apropriado neste caso, nada tem a ver com ditadura além da sugestão que acidentalmente evoca. O termo existe no português desde o século 16 e veio do latim dictatura, isto é, cargo ocupado pelo ditador – autoridade da Roma Antiga que, em situações de emergência que exigiam medidas extremas, era investida pelo senado de poderes absolutos por um período de até seis meses. Levando-se em conta a curta duração e o fato de não representar uma ruptura institucional, aquilo sim poderia ser chamado de ditabranda. Pelo menos até Júlio César, o último dos ditadores, manobrar como um Hugo Chávez da Antiguidade e se perpetuar no posto até morrer. Isso significa que, do ponto de vista da formação da palavra, ditadura tem mais a ver com termos como cavalgadura, amargura e tortura, nos quais o sufixo -ura atua como formador de substantivos, do que com linha-dura ou cabeça-dura. Mas seu parentesco etimológico é mesmo com o verbo…
A origem do nome da estatueta careca que a Academia de Artes e Ciências de Hollywood distribuirá mais uma vez neste domingo 22 é controversa. A tese mais aceita sustenta que, em 1931, uma funcionária comentou que o prêmio – até então sem nome – lhe lembrava seu tio Oscar. A observação teria sido presenciada por uma jornalista de fofocas hollywoodianas e, por meio de sua coluna, ganhado o mundo. Há até quem acrescente que o sujeito imortalizado por acaso pela sobrinha era um fazendeiro chamado Oscar Pierce. Mas convém guardar algum ceticismo. A atriz Bette Davis também já foi citada como autora do nome, suposta gozação com seu primeiro marido, o músico Harmon Oscar Nelson. Seja como for, não é a origem de Oscar que provoca controvérsia no português, mas seu uso. As dúvidas costumam se concentrar em dois pontos. O plural de Oscar é Oscars ou simplesmente Oscar? E naqueles casos, bastante freqüentes, em que a palavra tem o papel de substantivo comum – como no clichê jornalístico “Grammy, o Oscar da música” –, faz sentido, como querem nossos principais dicionários, escrever “óscar”? Bem, o plural de Oscar é uma das questões sem resposta definitiva de que a…
A palavra antropofagia, que andou no noticiário esta semana, chegou ao português no século 19, por influência do francês, mas o membro mais antigo da família, antropófago, estreou em nossa língua em 1537. Foi o ano em que, com a grafia antropophago, ele apareceu na tradução que o matemático português Pedro Nunes publicou do clássico medieval “Tratado da Esfera” (Tractatus de Sphaera), do astrônomo Johannes de Sacrobosco. É curioso pensar que, apenas onze anos depois do nascimento oficial da palavra em nosso idioma, desembarcou no país para uma estada infernal o mercenário alemão Hans Staden. Capturado pelos tupinambás, povo antropófago, Staden viveu meses como prisioneiro deles. Escapou milagrosamente de virar refeição e, de volta à Europa, publicou na Alemanha em 1557 “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América”. Sucesso imediato de público, o livro é um dos mais saborosos relatos de viajantes europeus da época. O costume bárbaro de comer gente, claro, não era novo – o latim tinha ido buscar a palavra no grego anthropo (homem) + phágos (que come) – mas as grandes navegações que estavam em curso davam uma atualidade sinistra ao termo. Poucas décadas antes, tinha…
“Governo maquia PAC com inclusão de obras antigas”, anunciava a manchete principal do jornal “O Globo” de quinta-feira, 5 de fevereiro. Ilustrando a notícia, uma foto gigante de Dilma Rousseff com maquiagem pesada, penteado de cabeleireiro e colar de pérolas – uma imagem de glamour até então inédito da ministra da Casa Civil, talvez o ponto culminante do processo de “suavização” de sua estampa que, com mira na eleição presidencial de 2010, teve início no fim do ano passado. A graça dessa primeira página está na forma como texto e fotografia dialogam em torno do verbo maquiar, um francesismo que tem tanto a acepção positiva de cobrir de maquiagem com propósitos de embelezamento (sentido ilustrado pelo retrato de Dilma) quanto a negativa de mascarar, falsear (como o jornal afirma que o governo fez com o PAC). Os dois sentidos estão ligados: embelezar e fraudar são ações fronteiriças, separadas pela linha nem sempre muito nítida entre a boa e a má-fé. O curioso é observar que, no idioma em que a palavra nasceu, o primeiro registro do verbo maquiller com o significado de falsificar é de 1815, cerca de um quarto de século antes de surgir, no jargão do teatro, a…
A palavra holocausto entrou no vocabulário de nossa língua no século 14. Vinha em última análise, depois de uma tabela com o latim, do grego holókaustos, “sacrifício ritual pelo fogo”. Mas isso se tornou uma espécie de pré-história do vocábulo depois que seu sentido dominante – já como nome próprio – passou a ser o genocídio dos judeus empreendido pelo regime nazista de Adolf Hitler. Não era a primeira vez que a palavra era usada em referência a massacres. Consta que, antes da Segunda Guerra, o brilhante orador Winston Churchill a tinha empregado para descrever o assassinato de um milhão de armênios pelo governo turco. Mas a escala inédita do extermínio de judeus europeus pelos nazistas exigia um nome próprio para marcar seu caráter único – um crime que, em relação a todos os outros pogroms que vitimaram judeus ao longa da história, era diferente “não só em grau de seriedade, mas em essência”, nas palavras da filósofa Hannah Arendt. Holocausto começou a ganhar esses contornos específicos como tradução do termo hebraico Shoah, “catástrofe”, que já em 1940 era usado para designar o massacre de judeus poloneses pelos alemães. Segundo dicionários etimológicos americanos, a palavra apareceu registrada com inicial maiúscula…
Não vai ser fácil. O lobby que o presidente americano Barack Obama atacou em uma de suas primeiras medidas depois de ser empossado, numa tentativa de estabelecer um novo pacto de transparência na administração pública, é uma tradição política americana – e provavelmente universal, embora a palavra que a designa tenha surgido em Washington – que, se acreditarmos que as coisas só passam a ter existência plena quando são nomeadas, tem exatamente dois séculos de idade. Para quem acha que a realidade precede a linguagem, a tradição do lobby é ainda mais antiga. No inglês americano, foi registrada pela primeira vez no distante 1808 – data do desembarque da família real no Brasil – a acepção de lobby como grupo de pressão ou atividade exercida por esse grupo, como forma de influenciar os políticos e obter vantagens para causas privadas, empresariais etc. O mais curioso dessa acepção é que sua origem é, por assim dizer, arquitetônica. A palavra inglesa lobby já tinha naquela época o sentido – que conserva até hoje – de vestíbulo, salão que fica na entrada de um prédio público. Sua origem era o latim medieval laubia ou lobia, de raiz germânica, com o significado primitivo de…
Os sapatos que o jornalista iraquiano Muntazer Al Zaidi atirou em George W. Bush com excelente pontaria – mas não tão boa quanto o reflexo do presidente americano ao se desviar dos petardos – têm tudo para ficar na história como a imagem mais marcante de um melancólico fim de mandato. O peso simbólico da cena já era evidente antes mesmo de sermos informados de que, na cultura árabe, é um insulto humilhante atirar calçados contra alguém. Pouco importa que, na Europa da Idade Média, um costume de origem obscura considerasse o mesmo ato um gesto simpático, equivalente a um voto de boa sorte. Para os propósitos desta coluna, a elevação de um objeto tão corriqueiro ao estrelato do noticiário político internacional é uma oportunidade única para abordar um aspecto bem diferente da questão: a posição singular ocupada pelo sapato, que é um artefato dos mais – digamos assim – pedestres e rasteiros, mas ao mesmo tempo um dos grandes mistérios etimológicos ocultos em nosso vocabulário cotidiano. Os etimologistas nunca conseguiram sequer chegar perto de um acordo sobre a origem do termo português sapato, do espanhol zapato, do francês savate, que significa sapato (ou chinelo) velho, e do italiano ciabatta,…
Bem que a língua portuguesa tentou forjar um similar nacional: mercadologia e até mercadização são palavras dicionarizadas, mas de aplicação cada vez mais rara na vida real. O vocábulo importado diretamente do inglês, marketing, sem outra adaptação que não a do sotaque local, acabou prevalecendo de tal forma que suspirar hoje por seus sucedâneos fracassados seria tão cômico quanto lamentar que o futebol não se chame balípodo ou ludopédio. Pois é mesmo no marketing e não no balípodo que, pelo menos até prova em contrário, Ronaldo Fenômeno continua sendo craque. Segundo o Houaiss, a língua de Henry Ford viu nascer por volta de 1920 a moderna acepção de marketing, palavra que até então era apenas a forma nominal do verbo to market, “negociar”. Surgia a acepção de conjunto mais ou menos organizado de técnicas comerciais com foco fechado no consumidor, que desse modo deveria ser sondado por meio de pesquisas, bajulado por campanhas publicitárias e acompanhado no chamado “pós-venda”. O mesmo dicionário registra a chegada do termo por aqui em torno de 1960. Hoje, quando não existe uma única área da atividade humana em que o marketing não se aplique, já há descendentes locais, como o termo (pejorativo) marqueteiro. A…
O velho verbo copiar, do latim medieval copiare (“reproduzir em grande número”, como os copistas faziam com seus manuscritos), tem uma nova aplicação. Estamos falando da acepção ainda não dicionarizada – embora isso pareça ser questão de tempo – que se usa num contexto de troca de mensagens eletrônicas e que tem como objeto direto uma pessoa (“estou copiando você”). O sentido aqui não é, claro, o de imitar, plagiar, muito menos o de fazer em laboratório uma clonagem do indivíduo em questão. O novo copiar quer dizer incluir (alguém) no circuito de uma troca de informações. Trata-se de um subproduto lingüístico da internet, família de palavras que não pára de crescer. “Como o assunto diz respeito ao departamento como um todo, estou copiando todos os usuários”, diz o chefe ao encaminhar o memorando a uma lista de destinatários maior que a original. Ou em registro mais informal: “Tô copiando o Orelha e a Vê, bjusss”. Talvez haja um impulso de condensação na origem dessa mudança. Como copiar uma pessoa significa simplesmente fazer uma cópia para ela, a alteração básica seria o fato de a preposição não ser usada. Se a frase fosse “estou copiando (a mensagem) para você”, não…
A calamidade que desabou sobre Santa Catarina faz parte do rico vocabulário associado às grandes tragédias, sobretudo as naturais. Além de calamidade e tragédia, o dicionário tem em estoque desastre, catástrofe, hecatombe, cataclismo, flagelo. Todos são vocábulos antigos que o uso figurado e a conseqüente extensão de sentido transformaram em sinônimos. Hoje exprimem em doses mais ou menos iguais nosso luto e estupor, mas nasceram com significados restritos. Com o cuidado de não ver nisso uma pregação de fundamentalismo etimológico, tolice das mais calamitosas, vale a pena fazer um breve passeio por esses sentidos originais. Mais que uma curiosidade, eles iluminam as palavras e a própria história humana de resistência às hecatombes. Calamidade, do latim calamitas, tem a ver com cálamo, do grego kálamos, “haste de planta”, e seu provável significado primitivo é descrito por Antenor Nascentes como “prejuízo causado por um temporal, por uma saraivada que quebrasse as hastes verdes do trigo”. Um parente próximo é o cataclismo, do grego kataklysmós, derivado de um verbo que quer dizer “encher de água, inundar”. O medo das tempestades inspira os dois. Desastre e flagelo têm origem mais poética e apontam para as causas do infortúnio: o primeiro veio do italiano dis…
O humor negro que caracteriza o novo filme dos irmãos Coen, “Queime depois de ler”, é uma locução comum a várias línguas, do inglês black humor ao francês humour noir. Definido pelo Houaiss como a graça feita “a propósito de uma manifestação grave, desesperada ou macabra”, tem tudo para se tornar, como se vê, um dos registros mais visitados pela arte nesse período sombrio de recessão mundial que vem chegando. Como a época do derretimento financeiro também é, por acaso, a de Barack Obama, não custa frisar que o humor é chamado de negro sem o menor traço de racismo. Embora um certo pensamento politicamente correto tenha tentado criminalizar todas as expressões que contenham a cor do piche – como lista negra, língua negra e a velha frase “a coisa está preta” –, o bom senso não recomenda ver insulto onde há apenas coincidência cromática. Do contrário, o elefante branco e a expressão “dar um branco”, com seus sentidos negativos, também ficariam sob suspeita. Para não mencionar a febre amarela e as contas no vermelho. Se recuarmos na história da palavra humor, a viagem será longa. Ela veio do latim humor com sentido médico. Na Antiguidade o humor era apenas…
Na semana passada falamos sobre o hábito que têm os americanos de chamar de América um país que, em nossa língua, é conhecido como Estados Unidos. Sem pretender lhes negar o direito de se referir desse modo a seu país, o argumento usado aqui foi o de que o português tem sua história, seu próprio jeito sedimentado ao longo de séculos, e ao não respeitá-lo corremos o risco de resvalar no servilismo cultural. Curiosamente, o raciocínio que recomenda evitar em nosso idioma a palavra América como nome do país de Barack Obama é o mesmo que nos incentiva a chamar seus nativos de americanos. Contradição? Num certo sentido, sim. Mas não se for levada em conta a tradição. Faz tempo que chamamos os americanos de americanos, um gentílico consagrado por, entre outros, o mais-que-canônico Machado de Assis. Um exemplo: em seu famoso ensaio Instinto de nacionalidade, Machado, ao citar o poema épico Song of Hiawatha, chama seu autor, Henry Wadsworth Longfellow, de “cantor admirável” da “terra americana”, assim como Shakespeare o é da inglesa. Não se trata de dizer que está certo porque Machado escreveu, mas de provar que esse uso está enraizado em nossa cultura. A crítica mais comum…
“Bem-vinda de volta, América.” A mensagem de um leitor do “New York Times” ganhou destaque no site do jornal no dia seguinte à vitória histórica de Barack Obama. É evidente que, mais do que o nome que os americanos dão a seu país, a palavrinha mágica América representa nessa frase um mito, um ideal de liberdade e oportunidade para todos – a corporificação daquele “sonho americano” que, de tão universalmente difundido, parece tão velho quanto o próprio país, embora o primeiro registro da expressão American dream leve a data de 1931. Mais do que seqüestrar o nome de um continente, portanto, os EUA – a última das grandes potências, o país mais poderoso do planeta – tomaram posse do próprio conceito de Novo Mundo. Que o sucesso desse seqüestro conta uma longa história de imperialismo cultural não se discute. A questão é: do ponto de vista de uma língua soberana como a nossa, qual é a melhor maneira de tratar o esperto branding feito pelos antepassados dos eleitores de Obama? No caso do nome do país, nossa tradição nunca teve dúvida: aquilo que os nativos dos EUA chamam de América (palavra derivada no início do século 16 do nome do…
Barack Obama está perto de se tornar o primeiro presidente negro da história dos EUA. Ou o primeiro presidente afro-americano, dependendo do gosto do freguês – e o número de fregueses desse eufemismo, inclusive no Brasil, não parou de crescer sob a influência da onda politicamente correta emanada das universidades americanas nos anos 70 e 80 do século passado. A mesma onda que, em seus extremos de pedantismo, transformou mendigos em “moradores em situação de rua” no discurso de muita gente séria. Não se trata de erro. Aqui e ali se esbarra no argumento de que o termo afro-americano padece de imprecisão por sugerir que todo africano é negro. O literalismo dessa crítica, porém, lembra o de quem considera “errado” chamar os nascidos nos EUA de americanos, uma vez que brasileiros e canadenses, por exemplo, também o são. Como se as palavras não pudessem ter mais de um sentido. A questão é política antes de ser lingüística. Afro-americano é um termo surgido nos EUA em meados do século 19 e resgatado há poucas décadas pelos primeiros ideólogos do PC (o politicamente correto, não o Partido Comunista) como sinônimo de black – o que no país de Martin Luther King, com…
O governo federal não quer que a medida provisória 443 fique conhecida como pacote. Nenhuma surpresa. Pacote é uma palavra de tom crítico que costuma ser mais favorecida pela imprensa do que por governantes. Usado no Brasil desde aproximadamente 1960, segundo o Houaiss, com o sentido de conjunto de medidas adotadas de um só golpe a fim de atacar um problema emergencial na área econômica ou política, não é de hoje que o termo carrega um ar pejorativo que pode até chegar à zombaria nos aumentativos pacotão ou pacotaço. As conotações negativas parecem ter se incorporado à palavra aos poucos. O auge da má fama carrega a data de 1o de abril de 1977, quando o chamado Pacote de Abril baixado pelo presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso Nacional e criou os senadores biônicos. Isso fez colar na palavra para sempre uma mancha de autoritarismo. Mesmo após o fim da ditadura militar, pacote conservou alguma truculência: afinal, a adoção em bloco de medidas de alcance social sempre carrega o risco do erro de cálculo. Pacote não aparece apenas em contextos negativos. Fala-se de forma simpática em pacotes de incentivo a atividades acima de qualquer suspeita. Nem os dicionários destacam o…
Nas últimas semanas brilharam nesta página as palavras juros, crise e pânico. Como a histeria financeira ainda parece longe de passar, é hora de voltar à vaca-fria – expressão que quer dizer retomar algo deixado para trás no atropelo da conversa, mas que não se considera devidamente resolvido. No caso, retomar o saudável ecletismo do papo sobre termos de nosso vocabulário. Como, por exemplo, vaca-fria. “Voltar à vaca-fria” é uma locução misteriosa. Por que vaca? Por que fria? Isso não afeta sua popularidade no Brasil e em Portugal – talvez maior lá do que aqui –, como se pode comprovar numa rápida consulta ao Google. Dicionarizada desde que o lexicógrafo português Cândido de Figueiredo a registrou, em 1899, a vaca-fria é cercada de silêncio quando se trata de investigar sua origem. Um silêncio que não é completo, felizmente. No oitavo volume de seu Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa, de 1968, o filólogo brasileiro Silveira Bueno vai buscar a seguinte história no colega e compatriota Teobaldo, pseudônimo de Francisco Mendes de Paiva, que em 1879 publicou o livro Provérbios Históricos e Locuções Populares: “Com pequena variante de animais, ora o carneiro, ora a cabra, diz Teobaldo (…) que é muito…
A palavra ortografia vem do grego orthós + grápho, isto é, o modo correto de escrever. Quem determina que modo é esse sempre foi uma questão polêmica. Na tradição luso-brasileira, o papel tem sido desempenhado por legisladores, respaldados por comissões de sábios. É o que ocorre mais uma vez na atual reforma ortográfica. Um dos argumentos mais correntes contra o acordo – o de que ele é condenável por mexer apenas no modo de escrever as palavras, deixando de lado as divergências sintáticas e semânticas entre Brasil e Portugal – lembra a desculpa do capitão que negligencia a manutenção de seu navio porque não pode controlar o oceano. A não ser nos delírios de ditadores caricatos, o poder dos governantes sobre sintaxe e semântica é zero: não há o que eles possam fazer. Sobre a ortografia, verniz da língua, há. Se deveriam se meter nessa seara é outro debate. Na definição da ortografia, o poeta português Fernando Pessoa preferia o método da lenta decantação cultural ao das canetadas legislativas, o que o levou a se insurgir contra uma das reformas de espírito “simplificador” pelas quais o português passou. Em suas palavras, “um acto que, à parte ser desnecessário, ou, pelo…