Ninguém tomava ao pé da letra as coisas que Martin Pemberton dizia; ele era melodramático demais, ou atormentado demais, para falar sem floreios. Por isso as mulheres o achavam atraente – viam-no como uma espécie de poeta, embora ele fosse mais crítico do que poeta, um crítico de sua própria vida e época. Assim, quando Martin começou a dizer que seu pai ainda estava vivo, nós que o ouvíamos falar e nos lembrávamos de seu pai tínhamos a impressão de que ele estava se referindo à persistência do mal, em termos gerais. Alguém, creio que Don DeLillo, já disse que o segredo da literatura está no modo como se enfileiram palavras, o resto é secundário. O que sugere um paradoxo: o que há de mais “profundo” na escrita estaria logo ali na superfície, numa combinação de sinais gráficos que leva o leitor a submergir naquilo – ou ir embora. O primeiro parágrafo de “A mecânica das águas”, do escritor americano E.L. Doctorow (Companhia das Letras, 1995, tradução de Paulo Henriques Britto), é um ótimo exemplo de como pode ser poderoso esse negócio de uma-palavra-depois-da-outra. Publicado em 1/5/2007.
Entre todas as histórias possíveis, certamente já terá acontecido alguma como esta. Um rapaz de dezessete anos, viciado em drogas (já chegou a roubar e prostituir-se para comprá-las) e com pretensões rimbaudianas a poeta maldito, tem um ciúme doentio da mãe divorciada, principalmente de um caso que ele desconfia que ela mantém com um homem muito mais jovem. Uma noite, a vê chegar em casa parecendo ligeiramente alegre de bebida, e com ares de quem veio de um encontro amoroso, usando uma blusa decotada e saia justa. Enquanto ela se despe em seu quarto, ele ali entra, abruptamente, vestido apenas com uma bermuda, e observa o sutiã vermelho e a calcinha preta que ela usa. – Isso é roupa de vagabunda. – Não fala assim da sua mãe. Ele puxa o corpo dela para si e o aperta: – Quem sabe você faz comigo também? E já que a seção entrou definitivamente na era do conto, aí vai o início do espantoso Um conto nefando?, um dos mais surpreendentes do excelente “O vôo da madrugada” (Companhia das Letras, 2003), de Sérgio Sant’Anna. Publicado em 7/11/2007.
– Ele está fotografando há três anos, dá só uma olhada no trabalho – disse Maurice. – Aqui, esse cara. Repara na pose, na expressão. Quem ele te lembra? – Parece um pilantra – disse a mulher. – Ele é um pilantra, o cara é um cafetão. Mas não é disso que eu estou falando. Aqui, essa. Dançarina de cabaré nos bastidores. Te lembra alguém? – A garota? – Dá um tempo, Evelyn: a foto. A sensação que o cara captura. A garota tentando parecer adorável, exibindo a mercadoria, que aliás não é nada má. Mas repara no camarim, nas tralhas brilhosas todas, essa pobreza de papel laminado. – Você quer que eu diga Diane Arbus? – Eu quero que você diga Diane Arbus, isso seria bem legal. Eu quero que você diga Duane Michaels, Danny Lyon. Eu quero que você diga Winogrand, Lee Friedlander. Quer voltar alguns anos no tempo? Eu gostaria muito que você dissesse Walker Evans também. – Seu velho chapa. – Muito, muito tempo atrás. Antes até do seu tempo. Não sei por que o diálogo que abre “LaBrava”, de Elmore Leonard, que li há uns vinte anos, nunca me saiu da cabeça – nem todo…
Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. E já que mencionei a sisudez da literatura contemporânea, aí vai o supra-sumo do contrário: o primeiro parágrafo do romance “A lua vem da Ásia”, lançado pelo grande Campos de Carvalho (1916-1998) em 1956 (José Olympio, Obra reunida, 2a. edição, 1995). Publicado em 10/2/2007.
Publicado em 28/8/2007: Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989. “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras, 2006), um dos bons livros brasileiros do [então] ano passado, tem uma frase inicial ainda melhor. Digna de antologia ou manual para escritores, ela consegue condensar em pouquíssimas palavras, com a falsa simplicidade que a ocasião exige, uma apresentação clássica de tom, tema e marcos temporais (de passado e presente) entre os quais se estenderá a corda da narrativa. Não falta ainda uma sutil estranheza – como assim, o futebol está morto? – que fica zumbindo ao fundo enquanto nos damos conta de que o defunto pode ser outro.
– Você não vem? – Vou já, mamãe. Mas não foi: nem iria nunca. “Coitada de mamãe”, pensou, numa tristeza maior. D. Margarida não sabia, não desconfiava de nada. Se soubesse, se pudesse imaginar! Disse baixinho: “Daqui a pouco estarei morta”. E repetiu, como se custasse a acreditar: “Estarei morta”. Assim, com a morte rondando o seio da família, começam as peripécias rocambolescas de “Núpcias de fogo” (Companhia das Letras), o quarto folhetim escrito por Nelson Rodrigues com o pseudônimo de Suzana Flag. “O Jornal” publicou-o em capítulos em 1948. A primeira edição em livro só saiu em 1997. Publicado em 18/11/2006.
O vidro martelado da porta tem um letreiro em tinta preta trincada: “Philip Marlowe…. Investigações”. É uma porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente, num edificio do tipo que era novo ali pelo ano em que o banheiro com azulejo até o teto se tornou a base da civilização. A porta fica trancada, mas ao lado dela há uma outra, com letreiro igual, que não fica. Pode entrar – não há ninguém aqui além de mim e de uma enorme mosca varejeira. Mas não se você for de Manhattan, Kansas. O início de “A irmãzinha” (The little sister, The Library of America, tradução caseira), de Raymond Chandler, o grande estilista da literatura policial americana hard boiled, já devia ser inesquecível quando foi publicado pela primeira vez, em 1949. Ainda mais inesquecível se tornou, porém, depois que milhares de escritores mundo afora fizeram questão de lembrá-lo, lembrá-lo e lembrá-lo de novo, numa avalanche de imitações, sátiras, pastiches, glosas e homenagens que encheriam bibliotecas. Um processo de lugar-comunização tão avassalador que, a esta altura, estará desculpado quem preferir esquecer o inesquecível. É estranho pensar que nunca mais será possível ler esse parágrafo sem ouvir os ecos de suas palavras…
Foi no verão de 1994, já faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três importantes acontecimentos tinham então acabado de se produzir em minha vida: meu pai havia morrido, minha mulher me abandonara e eu abandonara minha carreira de escritor. Minto. Dessas três ocorrências, as duas primeiras eram exatas, exatíssimas; a terceira não era tanto assim. Na verdade, minha carreira de escritor nunca decolou; portanto, dificilmente poderia tê-la abandonado. Grande parte do apelo do romance “Soldados de Salamina”, sucesso internacional do espanhol Javier Cercas (Francis, 2002, tradução de Wagner Carelli), está no seu jeito – despretensioso só na aparência – de alternar constantemente o foco entre a História (mundial) e uma história (pessoal). O efeito ganha profundidade ao longo de 240 páginas, com outro par de opostos – realidade e ficção – para complicar. As primeiras linhas do livro expõem todo o projeto como miniatura. Publicado em 10/12/2007.
Me chamem de Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível. Há uma única e melancólica razão para que o início de “Moby Dick”, de Herman Melville, o começo mais “inesquecível”, citado e parodiado da literatura americana, tenha demorado quase dois anos para vir parar nesta seção: a insistência com que os tradutores brasileiros que conheço vertem a…
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. A primeira frase de “As cidades invisíveis”, obra-prima lançada em 1972 por Italo Calvino (Companhia das Letras, tradução de Diogo Mainardi, 1990), pode não parecer, em si, inesquecível. É preciso ler esse espantoso conjunto de relatos de viagem por cidades imaginárias para descobrir que é, sim. Publicado em 4/6/2007.
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Muitos anos depois, quando lhe perguntassem por que o começo de “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez (Record, tradução de Eliane Zagury), um dos mais inesquecíveis de quantos possam ser assim chamados, demorou tanto a figurar naquela inesquecível seção, o autor do blog haveria de responder com um sorriso: “Não é óbvio?”. Publicado em 10/9/2007.
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho. Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa. O intrigante começo de “São Bernardo” (1934), de Graciliano Ramos (39.a edição, Record, 1983), apareceu aqui no blog no distante 20/6/2006. Já estava na hora de voltar.
Tentei de novo falar com você esta madrugada, mas o quintal estava povoado de lobos ganindo contra minha sombra. As feras da tua família são estúpidas o tempo todo, numa insistência que me impressiona. Vou matar todos aqueles bichos, aquelas cadelas negras, apesar da admiração que nutro pelas bestas puras. É um cerco medieval, minha musa de castelo. E como de tudo faço literatura, graças à fidelidade com que desprezo a vida e conforme minha incapacidade aberrativa de viver, acabei achando bonito aquele espetáculo de urros e pulos, de dentes e unhas na escuridão da casa, tudo para preservar a imaculada jovialidade dos teus dezesseis anos. Reconheço: o teu pai, esse monstro de asas de morcego e orelhas de burro, é mesmo um homem sutil, joga com as minhas armas, e mal sabe. E como, para completar, havia lua cheia – das derramadas – sentei no meio-fio e puxei dois charutos de maconha, com os cães latindo atrás de mim num furor melancólico. Às vezes, os livros já soam seus primeiros acordes no volume máximo. Como “Trapo” (Record, 2007, 7.a edição), romance lançado em 1988 por Cristovão Tezza.
Logo estarei bem morto por fim, apesar de tudo. Talvez no mês que vem. Será então abril ou maio. Porque o ano ainda é jovem, mil pequenos sinais me dizem isso. Pode ser que eu esteja errado e sobreviva ao dia de São João Batista ou mesmo ao 14 de Julho, festa da liberdade. Eis o começo de “Malone morre” (Malone dies, Grove Press, tradução caseira a partir da tradução feita pelo próprio autor do francês para o inglês), romance lançado em 1956 por Samuel Beckett.
Qualquer pesquisador sabe que, para obter financiamentos, é preciso que seu trabalho conduza a “avanços tecnológicos de vanguarda” ou “resultados relevantes para a realidade nacional na área em apreço”. Como se verá, o nosso trabalho, diante desses critérios, era de fulgurante inutilidade. Bem diferente, portanto, do trabalho que essas linhas abrem: o romance – de inegável utilidade para quem aprecia uma boa diversão inteligente – “Aqueles cães malditos de Arquelau” (editora 34, 1995, 3ª. edição), de Isaias Pessotti.
Certos autores garantem-nos que, pouco antes da vitória do cristianismo, se ouvia, ao longo das margens do mar Egeu, uma voz que dizia: “O grande Pã morreu”. Finara-se o antigo Deus universal da Natureza. Imaginava-se que, morta a Natureza, estaria morta a tentação. Durante tanto tempo perturbada pela tempestade, a alma humana ia enfim descansar. Tratar-se-ia simplesmente do fim do antigo culto, da sua derrota, do eclipse das velhas fórmulas religiosas? De maneira alguma. Consultando os primeiros túmulos cristãos, vê-se a cada passo a esperança de que a natureza vá desaparecer, de que a vida se extinga, que, enfim, se chegue ao fim do mundo. Acabaram-se os deuses da vida, que durante tanto tempo prolongaram essa ilusão. Tudo cai, tudo se desmorona, se deteriora. O Tudo transforma-se em nada: “O grande Pã morreu!” Assim começa “Sobre as feiticeiras” (Edições Afrodite, Lisboa, 1974, tradução de Manuel João Gomes), relato brilhante do historiador francês Jules Michelet (1798-1874) sobre a longa história cultural que foi dar na Inquisição. Não, não se trata de ficção. É História escrita com a verve narrativa e a parcialidade apaixonada que fizeram de Michelet, mais que um grande historiador, um baita escritor. Ele costumava dizer que sua disciplina,…
Esta é uma história para ser lida na cama de uma casa velha em noite chuvosa. Os cachorros dormem e os cavalos de montaria – Dombey e Trey – podem ser ouvidos em suas baias do outro lado da estrada de terra, para lá do pomar. A chuva é suave e necessária, mas não desesperadamente necessária. O nível dos lençóis freáticos se mantém equilibrado, o rio próximo é abundante, os jardins e pomares – é uma virada de estação – estão irrigados no ponto ideal. Quase todas as luzes estão apagadas na pequena vila junto à queda d’água onde o moinho, tantos anos atrás, movia um tear de algodão. Assim, em clima idílico, começa a novela Oh what a paradise it seems, do grande estilista americano John Cheever, lançada às vésperas de sua morte, em 1982 (Vintage International, 1991, tradução caseira – mas o livro tem uma edição recente no Brasil pela Arx, com o título “Ah, até parece o paraíso”). A história do velho executivo Lemuel Sears, apresentado como um sujeito do tempo em que as banheiras tinham pés em forma de garras de leão, merece como poucas o clichê “pequeno grande livro”. Com sua mistura quase porra-louca de…