Esta nota é destinada àquele cético que, ao topar numa livraria com a capa “cinematográfica” de “Dália Negra”, em que se vê Scarlett Johansson ombro a ombro com outras estrelas do elenco, tiver a – compreensível – tentação de classificar o (re)lançamento como um mero caça-níqueis destinado a atrair os pobres fãs do filme de Brian de Palma, que ainda está em cartaz, para uma literatura rasteira e oportunista. O cauteloso incauto deixará então de conhecer o melhor livro de James Ellroy, um dos mais originais e desconcertantes escritores do gênero policial da história. “Dália Negra” (Record, tradução de Cláudia Sant’Anna Martins, 3a edição, 432 páginas, R$ 45,90) é nada menos que uma obra-prima. O filme, infelizmente, não.
O romance “Les bienveillantes” (veja nota de 27/10, abaixo), escrito em francês pelo americano Jonathan Littell, confirmou hoje sua condição de grande fenômeno literário do ano ao ganhar o prêmio Goncourt, o mais importante da França – aqui, em francês, a notícia do “Le Monde”. O livro, um tijolaço narrado por um ex-oficial nazista gay, já havia levado o Grande Prêmio de romance da Académie Française e tido seus direitos para os Estados Unidos vendidos por US$ 1 milhão. No Brasil, o Goncourt de Littell foi intensamente comemorado num casarão do Cosme Velho, no Rio de Janeiro, hoje de manhã. Um leilão disputado por quatro grandes editoras brasileiras terminou com a vitória da Alfaguara, leia-se Objetiva. O valor não foi revelado – é de cinco dígitos – mas consta que Littell, 38 anos, que cuidou pessoalmente da escolha das editoras em todos os 16 países para os quais o livro foi vendido, levou em conta outros fatores além do valor financeiro.
Chegou a hora de fazer a minha confissão. Eu pertenci à juventude salazarista, que se chamava Mocidade Portuguesa. Pertencíamos todos: alunos da instrução primária, do ensino secundário, do ensino superior, todos sem exceção. Era, por assim dizer, automático. Digo no livro como consegui escapar a usar o fardamento e creio que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Mais não podia fazer. E para a revolução ainda era cedo. Em entrevista (acesso livre) a Antonio Gonçalves Filho no “Estadão” de sábado, a propósito de seu novo livro, “As pequenas memórias”, José Saramago se solidariza com o alemão Günter Grass. Seu colega de Nobel confessou ter sido hitlerista aos 17 anos.
A avassaladora moda anglo-americana dos livros infantis escritos por celebridades – Madonna, Paul McCartney, Kylie Minogue, Gloria Stefan, Julie Andrews, Jamie Lee Curtis e Whoopi Goldberg são algumas delas – inspira um
Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia. Este é o começo “natural”, o do percurso de leitura que vai do capítulo 1 ao 56, do romance “O jogo da amarelinha” (Rayuela), lançado em 1963 pelo argentino Julio Cortázar (Civilização Brasileira, 4a edição, 1982, tradução de Fernando de Castro Ferro). Há ainda, no mínimo, um segundo e ziguezagueante livro…
O bigodudo da foto é Gustave Flaubert? Os especialistas se dividem – leia aqui, em francês, a reportagem do jornal “Le Monde”. O daguerreótipo de 1846 seria a imagem fotográfica mais antiga do autor de “Madame Bovary”, na época com apenas 25 anos. A imagem está indo a leilão na França no próximo dia 18, com lance mínimo de 40 mil euros – preço de coisa autêntica. O escritor inglês Julian Barnes, flaubertiano fanático, é o maior dos céticos: “Flaubert aos 25 anos? Com esse grau de calvície? E com essa silhueta delgada?”.
Sem querer ser chato, acho que vale a pena levantar a questão do acesso. Para quem teve a oportunidade de aprender várias línguas, e tem acesso a boas edições, de grandes tradutores, vale reclamar de nuances nos textos traduzidos. Mas quando se trata de leitura, sou daqueles que costumam dizer sempre: “É melhor do que nada”. Cheguei a estudar Filosofia um ano, e lembro que muitas pessoas falavam mal da coleção “Os pensadores”. De fato, ela não traz as melhores traduções, mas não creio que atrapalhem estudantes do primeiro período. Concordo que é muito melhor ler Kant em alemão, mas devo esperar aprender a língua para fazê-lo? Comentário de Pedro — 31/10/2006 @ 1:58 pm Pedro, traduções, boas ou más, são fundamentais. Querer que uma obra só faça sentido no original é defensável para a poesia, mas para qualquer prosa, de filosofia a literatura, denuncia um elitismo alarmante. Além de um separatismo cultural no grau mais insano: “Jamais saberás o que disse Dostoiévski, até aprenderes russo”, a sentença pairaria sobre todas as cabeças não-russas da humanidade do primeiro ao último dia de suas vidas. É nesse mundo que vivem os inimigos da tradução. A tradução é uma necessidade humana básica,…
Minha escala em matéria de relações tradutor-autor oscila entre o zero absoluto, cujo protótipo foi Thomas Bernhard (o tradutor é um ser incompetente que faz um trabalho merecidamente mal pago), e Günter Grass, para quem seus tradutores são, como ele disse algumas vezes, a verdadeira razão para continuar escrevendo. Entre esses extremos eu situaria Salman Rushdie, que jamais interfere nas traduções de seus livros, mas responde em 24 horas qualquer consulta… Rushdie escreveu sobre Hitoshi Iragashi, seu tradutor japonês assassinado: “A tradução é uma espécie de intimidade, uma espécie de amizade, e por isso choro sua morte como choraria a de um amigo”. O resto dos escritores se situa em variadas alturas. Um DeLillo, por exemplo, está perto de Grass; um Kundera, mais próximo de Bernhard, ainda que com pretensões de entender de tradução. O bom artigo do espanhol Miguel Sáenz – tradutor de Grass e Rushdie, sorte dele – é um dos que debatem as agruras da tradução na última edição do suplemento Babelia, do “El País”. O assunto ganhou a capa do caderno, sob o título “O ofício invisível”. Invisível, claro, quando a tradução é boa. A visibilidade do tradutor é inversamente proporcional à qualidade de seu trabalho….
O relançamento de “O nariz do morto” (Civilização Brasileira, 384 páginas, R$ 44,90), livro publicado em 1970 por Antonio Carlos Villaça (1928-2005), dá à cultura brasileira a oportunidade valiosa de repor em lugar menos folclórico o nome do escritor carioca. Embora esse título, que costuma ser considerado seu melhor, tenha dado início a uma série de volumes de memórias como “O anel” e “Monsenhor”, entre outros, Villaça é mais conhecido – sem que para isso seja preciso lê-lo – como arquivo de anedotas dos bastidores da literatura brasileira do século XX, cuja intimidade freqüentou. Não é que tal juízo esteja errado. Apenas não faz justiça a um grande escritor. “O nariz do morto” acompanha a vida de Villaça do nascimento à idade adulta, com foco na inquietação espiritual que o levou a tentar a carreira religiosa, internando-se no Mosteiro de São Bento – apenas para sair correndo de lá, trinta quilos mais magro e mergulhado numa crise existencial que o acompanharia pelo resto da vida. Como monge, Villaça – ou Lelento, ou ainda Sigismundo, máscaras que ele vai assumindo ao longo da história – era um poeta. Como poeta, era monge. Nesse descompasso equilibrou sua vida. O livro foi definido…
Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. O começo inesquecível desta semana foi sugerido pelo leitor Rogério Martins. Talvez as linhas iniciais de “No caminho de Swann”, livro lançado em 1913 pelo francês Marcel Proust (1871-1922), não tenham grande impacto em si, mas entraram para a história por marcarem o início de uma aventura literária em sete volumes chamada “Em busca do tempo perdido” – uma das obras fundamentais do século XX. Numa nota aí embaixo, o bibliófilo José Mindlin confessou ter achado “No caminho de Swann” sonífero quando tentou encará-lo pela primeira vez – para, numa nova tentativa, tornar-se um proustiano de carteirinha. A tradução citada aqui é do poeta Mario Quintana, publicada pela Abril Cultural, sob licença da editora Globo, em 1982.
O livro-sensação da Feira de Frankfurt, “Les bienveillantes” (“As benevolentes”), escrito em francês pelo americano Jonathan Littell, 38 anos, teve seus direitos de publicação nos Estados Unidos vendidos para a HarperCollins por US$ 1 milhão – notícia completa aqui, mediante cadastro gratuito. O romance, um tijolo de quase mil páginas, tem um narrador peculiar: ex-oficial nazista da SS, sem um pingo de arrependimento, homossexual. Na França, vendeu 280 mil cópias em um mês e meio. O sucesso inesperado obrigou a editora Gallimard a remanejar parte do papel que estava reservado para as reedições de Harry Potter. A obra está sendo disputada por quatro editoras brasileiras. O nome da vencedora deve sair na semana que vem. Em conversa com o Todoprosa, um dos editores que participam do leilão se referiu ao livro de Jonathan Littell – filho do escritor de espionagem Robert Littell – como “obra-prima”.
Shakespeare não seria blogueiro por estar muito ocupado, e Jane Austen por não entender a tecnologia, mas Daniel Defoe e George Orwell postariam (sim, há que se usar a palavra justa) uma nota atrás da outra, alegremente. O exercício, bobo mas divertido, sobre como se comportariam os clássicos da literatura inglesa na era da internet é feito pelo jornalista Robert McCrum no novo e vitaminado blog de livros do “Guardian” – que deu uma repaginada geral na sua versão online e merece uma visita. Fiquei pensando em quem, na história da literatura brasileira, teria aderido à blogagem se ela estivesse ao seu alcance. Machado de Assis, provavelmente sim, para comentar com ironia e fino texto os acontecimentos da Corte – mas teria que ser um blog pago, amadorismo não. Amador, e amantíssimo, seria Mario de Andrade, autêntica lenda na web: blogueiro caudaloso, incansável nos posts e generoso na troca de mensagens com dezenas de leitores simultaneamente. Oswald começaria bem, espirituoso, sucinto, mas dificilmente sustentaria o esforço por um prazo longo: depois de três meses e meio sem renovação, tiraria o blog do ar. Graciliano e Rosa? Acho que não. O alagoano passaria uma violenta descompostura no primeiro comentarista que o…
A língua portuguesa, hoje, não corresponde à realidade de todos os países lusófonos. Há grandes diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil. Anteontem, eu estive na casa do cônsul de Portugal, em um jantar para um escritor português, José Rodrigues dos Santos. Era um evento para quatro, cinco pessoas apenas. E eu passei o jantar inteiro sem conseguir entender quase nada do que o escritor falava. Felizmente, a Maria Adelaide Amaral estava sentada ao meu lado e traduzia para mim o que ele dizia. Nunca achei certa a posição do Oswald de Andrade, que dizia: “Não li e não gostei”. Isso é uma coisa que não tem propósito. Eu li um livro de Paulo Coelho para poder dizer que li e não gostei. Paulo Coelho está para a literatura como o bispo Edir Macedo está para a religião. Nos anos 40, resolvi ler Proust. E esbarrei naquela dificuldade: páginas e páginas sem um parágrafo. Não consegui captar o interesse e o valor do texto proustiano. E uma noite, em casa de um amigo do Rio, encontrei o Tristão de Athayde, Alceu de Amoroso Lima, um dos introdutores de Proust no Brasil, nos anos 20. A conversa…
O Festival Paris Beckett 2006-2007, que começou no mês passado e vai até junho do ano que vem, comemora o centenário do nascimento do autor de “Esperando Godot” (1906-1989) com um riqueza de atividades – veja aqui o site oficial do projeto, em francês – capaz de matar de inveja os habitantes de ecossistemas culturais como o nosso, em que são escassos dois fatores abundantes por lá: dinheiro para atividades artísticas e respeito pelo patrimônio cultural. Só para dar uma idéia: todas as 19 peças escritas por Samuel Beckett estarão em cartaz na cidade. Isso mesmo, todas. E o homem nem era francês, era irlandês, embora tenha adotado Paris e o idioma francês a partir do fim dos anos 1930.
De vez em quando, roubo uma nota que, se eu bobeasse, acabaria no blog do meu amigo Luiz Antonio Ryff, caçador de bizarrices. Esta é uma delas. Na Cidade do México, que não fica atrás do Rio ou de São Paulo quando se trata de criminalidade, policiais estão sendo submetidos a uma reciclagem originalíssima: cursos de literatura e aulas de xadrez. “O princípio é que um policial com boa cultura estará numa posição favorável para ser um policial melhor”, declarou ao jornal “The Guardian” (acesso livre aqui, em inglês) o chefe de segurança pública José Jorge Amador.
Entre na sua livraria de sempre. Uma bancada estará provavelmente inundada de tons pastéis, letras bordadas e títulos que falam de compras, sapatos e mamães apetitosas: é o canto das meninas. Outra mesa exibe cores agressivas e capas que mostram helicópteros, soldados, lasers e caveiras – o canto dos garotos. Fico exausta só de olhar para isso – será que os hábitos de leitura de homens e mulheres cabem em clichezinhos tão banais? Por que, oh, por que qualquer mulher moderna compraria um livro com uma capa lilás? O blog de literatura que Ceri Radford mantém no site do jornal inglês “Daily Telegraph” vale uma visita. O olhar da moça tem freqüentemente uma candura que faz falta nesse mercado povoado de gente calejada que finge que já leu tudo, que nada mais é motivo de espanto. Ceri preserva uma qualidade fundamental em qualquer repórter, a capacidade de estranhar. Embora pareça, nessa nota ela não está falando de literatura infantil ou infanto-juvenil. Está falando de certos tipos popularíssimos – mais febrilmente consumidos lá do que aqui, é verdade – de ficção para adultos. As raízes dos clichês que deprimem a blogueira são profundas: a nota me fez lembrar que, criança, eu…
E já que estamos no labiríntico assunto de Borges (nota abaixo), uma notícia sensacional: está prestes a chegar às livrarias o que o jornal “Clarín” apresenta como o acontecimento literário do ano na Argentina. E não só na Argentina, observa Jean-François Flogel em seu blog no site Boomeran(g). Trata-se do minucioso e, parece, indiscretíssimo diário em que o escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), amigo e parceiro literário de Jorge Luis, registrou a convivência dos dois de 1947 a 1986, quando Borges morreu. A reportagem do “Clarín” sobre o lançamento pode ser lida aqui, mas os trechos do livro, adiantados na revista do jornal, “Ñ”, não estão disponíveis na internet. Graças a Flogel, aqui vai um deles, que mostra os dois escritores numa venenosa conversa de comadres sobre o Nobel em outubro de 1956 – cedo demais para que Borges, que jamais ganhou o prêmio, pudesse ser acusado de estar ressentido com a Academia Sueca: Borges me disse: “Deram o prêmio Nobel a Juan Ramón Jiménez”. BIOY: “Que vergonha”. BORGES: “…para Estocolmo. Primeiro Gabriela, agora Juan Ramón. São melhores para inventar a dinamite do que para dar prêmios”. BIOY: “De qualquer modo, Juan Ramón é muito melhor que Gabriela Mistral….