Escritor admite que seu livro de memórias, um sucesso comercial, tinha partes inventadas. Sentindo-se logrados, leitores aos montes entram na Justiça para ter seu dinheiro de volta e a editora, diante da derrota certa, propõe um acordo que vai lhe custar nada menos que 2,35 milhões de dólares. Ficção? Não. O autor é o americano James Frey. O livro, “A million little pieces” (Um milhão de pedacinhos). A editora, a gigante Random House. A notícia (em inglês, mediante cadastro gratuito) está aqui. O mercado não consegue disfarçar o nervosismo. E se a moda pega?
Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia em direção àquele riso. Tocou-se. Estava vivo sim. Quando menino perguntou à mãe: e o cachorro? A mãe: o cachorro morreu. Então atirou-se à terra coalhada de abóboras, colou-se a uma toda torta, cilindro e cabeça ocre, e esgoelou: como morreu? como morreu? O pai: mulher, esse menino é idiota, tira ele de cima dessa abóbora. Morreu. Fodeu-se disse o pai, assim ó, fechou os dedos da mão esquerda sobre a palma espalmada da direita, repetiu: fodeu-se. Assim é que soube da morte. Começa assim “Com os meus olhos de cão” (Editora Globo, 2001), novela lançada em 1986 pela escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004). Ou assim começa sua parte em prosa: tomei a liberdade de excluir os doze versos curtos que a antecedem para ir direto a esse monumental, enigmático Deus “ancorado no riso”. Observa Alcir Pécora, organizador das obras reunidas de Hilda, que “o obsceno é nome do cordame grosso com que se desce a este fundo”. Acrescentar alguma coisa? Eu não. Ancorado no silêncio, leio.
O impagável mistério da falsa carta de amor que enganou AN Wilson, biógrafo do poeta inglês John Betjeman (veja abaixo a nota “O poeta, a amante, o biógrafo e o cafajeste”, de 29/8), chegou ao fim: a elaborada fraude – que formava em acróstico a frase “AN Wilson é um merda” – foi obra do escritor Bevis Hillier, 66 anos, que deu entrevista ao “Times” de Londres (aqui, em inglês) assumindo a trapaça. A confissão não surpreendeu os meios literários britânicos. Embora a princípio tivesse jurado inocência, Hillier era o suspeito número um: escreveu uma longa biografia de Betjeman antes do rival e foi espinafrado por ele na imprensa na época do lançamento. Mesmo assim, tem valor a candura com que o falsificador assumiu seu ciúme: o ego ferido, como se sabe, é um poderoso motor secreto da literatura. “Quando um jornal começou a dizer que o livro de Wilson era o maior, passou dos limites”, disse Hillier.
Günter Grass fez ontem à noite sua primeira aparição pública desde que confessou ter integrado a Waffen-SS, tropa de elite de Hitler, aos 17 anos de idade. No famoso teatro Berliner Ensemble, diante de uma platéia respeitosa e propensa aos aplausos, Grass leu trechos de suas memórias, “Descascando a cebola”, mas evitou as páginas 126 e 127 – as que tratam de seu breve passado nazista. O relato de uma noite consagradora para o autor é feito por Luke Harding no blog inglês “Culture Vulture”. Para Harding, a controvérsia sobre a confissão tardia de Grass, que domina as primeiras páginas dos cadernos culturais alemães há três semanas (veja nota de 15 de agosto, aqui embaixo), atingiu finalmente a fase do consenso, e ele é favorável ao escritor: o de que teria sido melhor se Grass houvesse revelado seu segredo antes, mas isso não afeta sua “credibilidade moral”. As caixas registradoras confirmam: “Descascando a cebola” está em primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos na Alemanha.
O conto “Os últimos dias de Muhammad Atta”, do inglês Martin Amis, que acompanha ficcionalmente – do ponto de vista do próprio Atta – as últimas horas de um dos terroristas mortos no atentado ao World Trade Center, foi publicado ontem pela revista do jornal “Observer”, de Londres, e pode ser lido aqui (em inglês, acesso livre). A história não é inédita: em abril deste ano saiu na “New Yorker”, mas, por razões contratuais, não deu as caras na versão online da revista. Se o conto é bom? No máximo interessante – e olha que eu gosto de Amis. Mas não dá para negar seu valor, digamos, histórico: de todas as abordagens ficcionais do 11 de setembro que começam a pipocar, esta é a que ousou chegar mais perto do centro do horror.
Muitas das alegações de Flaubert devem ser entendidas com uma dose de ceticismo. A certa altura, por exemplo, ele expressou o desejo de escrever “un livre sur rien”, um livro sobre “nada” – livro ideal que ficaria de pé por meio da pura força do estilo e da estrutura, sem qualquer preocupação com o tema. Essa metáfora da criação desapegada de um artífice parecido com um deus foi muito citada por críticos ansiosos em arrolar Flaubert entre os primeiros pós-modernistas. Mas permanece o fato de que “Madame Bovary”, firmemente plantado na realidade cotidiana de sua Normandia nativa, continha uma carga precisa de matéria temática suficiente para fazer seus conterrâneos normandos urrarem de fúria. A resenha (em inglês, acesso livre) que Victor Brombert assina na última edição do “Times Literary Supplement” sobre o recém-lançado tijolo Flaubert – a biography, de Frederick Brown, faz foco nas meias trapaças que Gustave Flaubert (1821-1880) semeou sobre sua própria pessoa: o famoso eremita que desprezava o convívio social e se devotava inteiramente à arte não era tão misantropo assim, teve uma vida interessantíssima e exultou quando se tornou amigo e conviva habitual da Princesa Mathilde Bonaparte. O que, pensando bem, ameniza a traição representada por…
AO LEITOR Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião. Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado….
Minha biblioteca é constituída, meio a meio, por livros que lembro e por livros que esqueci. Agora que minha memória já não é tão precisa quanto costumava ser, as páginas se esvaem na mesma medida em que tento conjurá-las. Algumas se apagam por inteiro de minha experiência, esquecidas e invisíveis. Outras me assediam tentadoramente com um título ou uma imagem, ou umas poucas palavras fora de contexto. Qual romance começa com as palavras “Numa noite de primavera de 1890”? Onde li que o rei Salomão usou uma lente de aumento para saber se a rainha de Sabá tinha pernas peludas? Quem escreveu aquele livro singular, Flight into Darkness, do qual só recordo a descrição de um corredor sem janelas, tomado por pássaros esvoaçantes? Em qual história li a frase “no despejo de sua biblioteca”? Qual livro tinha uma vela acesa na capa e desenhos a lápis no papel creme? Em algum lugar de minha biblioteca encontram-se as respostas a estas questões – mas esqueci onde. “A biblioteca à noite” (Companhia das Letras, tradução de Samuel Titan Jr., 304 páginas, R$ 45), lançado esta semana em São Paulo, é mais um exemplar inspirado daquele ensaísmo que, se não foi inventado, pode-se…
“Envelheçam depressa, deixem de ser jovens o mais rápido possível.” O conselho de Nelson Rodrigues (1912-1980) aos jovens deixa evidente a implicância que ele devotava a qualquer pessoa que não carregasse um bom número de décadas nas costas. No entanto, pelo menos num ponto – entre outros, claro – a juventude é invejável: quanto menos vivido, mais chances tem o leitor de receber como revelação a nova edição de “A vida como ela é…” (Agir, 606 páginas, R$ 59,90). E encontrar essas histórias pela primeira vez é um privilégio, uma dádiva. Convém, então, refazer aquele conselho: não envelheçam, jovens. Não enquanto não lerem isso aqui. Crônicas? Bem, pode-se dizer que sim, pois saíam no jornal. Por alguma razão parece melhor chamar de contos essas variações curtas e às vezes brutais em torno do tema do adultério. Como contos, aliás, elas já eram rotuladas em sua primeira edição em livro, nos dois volumes lançados em 1961 pela editora J. Ozon, que a Agir reúne agora num volume só. Contos populares, velozes, furiosos, magistrais em sua economia de meios. Fazendo as vezes de pano de fundo, um milagre: como é possível que textos de jornal, escritos diariamente – sim, com uma única…
O escritor egípcio Naguib Mahfouz, que morreu hoje no Cairo aos 94 anos, foi o único escritor do mundo árabe a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, em 1988. Mahfouz fora internado há um mês e meio, depois de sofrer uma queda em casa. O declínio da saúde de Mahfouz começou em 1994, quando um homem o esfaqueou no pescoço – e fugiu sem ser preso. O atentado foi provavelmente praticado por um extremista islâmico: líderes fundamentalistas tinham acabado de declarar o escritor “infiel”. De fato, sua literatura era boa demais, humana demais, para descer pela goela do fundamentalismo. Muitos de seus livros foram proibidos em outros países árabes, e um deles, de 1959, no próprio Egito. Leia o obituário do “New York Times” (em inglês, mediante cadastro) aqui. E o do “Le Monde” (em francês, acesso livre), aqui. Mahfouz, que certa vez se definiu como um “escritor de quarta ou quinta categoria”, é autor de três dezenas de romances, além de volumes de contos, peças teatrais e roteiros de cinema, mas sua obra hoje é escassa nas livrarias brasileiras. Lançado em 1997, o romance “Noites das Mil e Uma Noites” (Companhia das Letras), fantasia baseada no maior clássico das…
Os personagens são quase inteiramente desconhecidos por aqui, mas a história é tão boa que vale assim mesmo. Uma recente biografia do poeta inglês Sir John Betjeman – poeta “oficial” do Reino Unido de 1972 até morrer, em 1984 – trouxe como uma de suas maiores curiosidades uma derramadíssima carta de amor até então inédita endereçada por Betjeman a uma amante. O biógrafo, AN Wilson, acaba de reconhecer que o texto é falso e que alguém lhe armou uma cilada. A prova é incontestável: um jornalista descobriu que as iniciais maiúsculas de cada frase da suposta carta de amor formam a sentença “AN Wilson is a shit” (AN Wilson é um merda). Esse ambiente literário sabe ser inóspito às vezes.
Faz alguns anos que pesquisas no mundo anglófono vêm denunciando a insignificância do papel masculino entre os leitores de ficção: os homens respondem por cerca de 20% do mercado. Só. Não foi à toa que o inglês Ian McEwan, um dos maiores escritores vivos, declarou ano passado: “Quando as mulheres pararem de ler, o romance estará morto”. É sempre arriscado tirar conclusões muito ambiciosas em cima de estatísticas como essa. Faltam dados a respeito do sexo dos leitores de ficção em outros países – e em outras épocas, como quando Ernest Hemingway era rei com seus livros cheios de testosterona. Mesmo sendo difícil pôr em perspectiva números tão curiosos, já se começa a murmurar por aí que a dramática perda de prestígio cultural dos romancistas, ocorrida do último quarto do século XX para cá, está relacionada ao fato de os homens, os detentores do poder, estarem interessados mesmo é em livros de não-ficção. Obras sérias, sabe como? (Atenção: isso é uma ironia. O Todoprosa só se interessa por não-ficção quando ela fala de ficção.) O ótimo tema da feminilidade da leitura é discutido com graça em suas diversas implicações – políticas, culturais, filosóficas – num artigo (em inglês) publicado pela…
Sou o médico de quem às vezes se fala neste romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica. Não me ocuparei de psicanálise porque já se fala dela o suficiente neste livro. Devo escusar-me por haver induzido meu paciente a escrever sua autobiografia; os estudiosos de psicanálise torcerão o nariz a tamanha novidade. Mas ele era velho, e eu supunha que com tal evocação o seu passado reflorisse e que a autobiografia se mostrasse um bom prelúdio ao tratamento. Até hoje a idéia me parece boa, pois forneceu-me resultados inesperados, os quais teriam sido ainda melhores se o paciente, no momento crítico, não se tivesse subtraído à cura, furtando-me assim os frutos da longa e paciente análise destas memórias. Publico-as por vingança e espero que o autor se aborreça. Seja dito, porém, que estou pronto a dividir com ele os direitos autorais desta publicação, desde que ele reinicie o tratamento. Parecia tão curioso de si mesmo! Se soubesse quantas surpresas poderiam resultar do comentário de todas as verdades e mentiras que ele aqui acumulou!… O pequeno prefácio que abre “A consciência de Zeno” (Nova Fronteira, tradução de Ivo Barroso),…
Passados setenta anos da publicação de “Angústia”, reafirmada sua excelência artística no âmbito da literatura brasileira, Graciliano Ramos parece ter-se enganado sobre seu livro mais polêmico. É conhecido o desconforto do escritor em relação ao romance que necessitava, segundo ele, ser revisto até chegar ao osso, sem as repetições e os excessos que julgava defeitos a serem sanados. A prisão em 3 de março de 1936 o impediu de realizar a revisão desejada, antes que o livro fosse editado com o autor ainda na cadeia. O “livro infeliz”, como Graciliano se refere a “Angústia” em “Memórias do cárcere”, vai aos poucos se impondo por meio de um processo de atração e repulsa, que marcará para sempre a postura do romancista diante da obra. Em artigo de capa no jornal “Rascunho”, o professor de literatura Wander Melo Miranda, autor de “Graciliano Ramos” (PubliFolha), comemora os 70 anos de “Angústia”, do autor preferido de Heloísa Helena.
O último número da revista “New Yorker” traz uma boa gozação de Adam Gopnik com a lista de “leituras de verão” de George W. Bush, uma tradição americana tão forte que mesmo um dos presidentes mais notoriamente broncos a passar pela Casa Branca acha de bom tom não dispensá-la. A piada maior é que, brilhando na lista de Bush, aparece “O estrangeiro”, de Albert Camus. E por que isso é engraçado? Bem, como se sabe, o narrador do maior clássico do existencialismo, Mersault, mata um árabe sem motivo – não, o sujeito não era acusado de esconder armas químicas no quintal. Entende-se o interesse do presidente americano, então? Claro que sim, mas apenas quando se leva em conta que listas desse tipo cumprem sobretudo um papel marqueteiro. Não é preciso que Bush leia Camus. Basta que ele diga que está lendo. E que depois agüente as gozações. Passada a zoeira, o que sobra é, por via das dúvidas, a imagem de um homem um pouco mais pensante do que imaginávamos – e se quisermos ser muito, muito crédulos, um verdadeiro estadista. Estamos bem longe disso no Brasil. O colunista Ancelmo Góis, do “Globo”, publicou no último fim de semana uma…
Reportagem de ontem do jornal “Valor Econômico”, assinada por Tainá Bispo, fala do alarme geral provocado pela apresentação de Fábio Godinho, diretor da Larousse do Brasil, no 34o Encontro de Editores e Livreiros, em Fortaleza. Tentando entender por que o mercado de livros no Brasil encolheu, segundo seus números, 26% nos últimos dez anos, com venda de 270 milhões de exemplares e receita de R$ 2,5 bilhões em 2005, Godinho apontou, além da desorganização do setor, razões econômicas. Destacou o fato de o preço do livro ter subido acima da inflação nesse período, o que faz sentido. Por outro lado, comemorou “a universalização do ensino médio”. Aí, acho que já não faz tanto. Que ensino é esse? O Brasil jamais terá um mercado leitor saudável enquanto insistir na sua educação de mentirinha. Considerando que qualquer medida nessa área só surtirá efeito a longo prazo, e que não se vê nenhuma medida decente no horizonte, não será surpresa para este blog se o mercado continuar murchando. Apertem os cintos.
“História de O”, romance publicado em 1954 com a assinatura de Pauline Réage, costuma ser considerado um dos maiores clássicos da literatura erótica de todos os tempos, e talvez a única obra do século XX a levar o tema às alturas – ou profundezas? – atingidas pelo Marquês de Sade. Conta a história da submissão voluntária de O a seu amante, num crescendo de provas psicológicas e castigos físicos que ela encara – eis o escândalo – cada vez mais feliz e realizada. Sim, o livro pode ser lido como um poderoso libelo antifeminista, embora, convenhamos, isso o empobreça terrivelmente. Tendo lido “História de O” já faz uns vinte anos, posso garantir que não é fácil apagar da memória algumas de suas imagens, como a que encerra o livro: a linda O, nua e com uma enorme máscara de coruja, finalmente despersonalizada, endeusada, cercada de homens devotos numa festa. Estranhíssimo. Deve-se reconhecer que essa insistência em permanecer na memória é mais do que se encontra na maior parte da literatura, erótica ou não. A verdadeira identidade da autora de “História de O” foi um grande mistério literário na França durante quarenta anos. Albert Camus chegou a garantir que o livro…