O debate de alto nível sobre o fazer literário desembarcou em Parati com um dia de atraso, mas compensou a demora com a qualidade da conversa. Aconteceu na primeira mesa de hoje, que reuniu o francês Olivier Rolin, o peruano Alonso Cueto e o gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. A erudição articulada do português Mario de Carvalho (“Um deus passeando pela brisa da tarde”), ontem à noite, havia brindado a Flip com frases antológicas como esta: “Os livros não acabam. Nós os abandonamos”. Mas, no caso da mesa de Carvalho, dividida com o mexicano David Toscana, não chegou a haver propriamente um bate-bola. Os dois são distintos demais, faltou uma base comum de referências. Hoje foi diferente. O tema eram as relações entre “Prosa, política e história”. Podia ter dado em nada, ou em bem pouco, como costuma acontecer nos casos em que o tema é tão genérico que deriva para clichês vazios como “por que escrever?”, “de onde vêm suas idéias?” e coisas do gênero. Podia, mas não foi o que ocorreu. Graças principalmente a Rolin, autor de “Tigre de papel” (Cosac Naify), apresentado no Primeira Mão mão aqui do Todoprosa, e a Cueto, cujo “A hora azul”…
Em Parati a passeio, o romancista amazonense Milton Hatoum conversou com o Todoprosa sobre o prêmio Jabuti que acabou de ganhar com “Cinzas do Norte” e sobre a própria Flip, de que participou como autor convidado no primeiro ano e coordenando uma oficina de texto no segundo. Surpreendentemente, o tímido Hatoum afirma gostar dessas oportunidades de contato pessoal entre autor e leitor. “A presença física é importante, pela gestualidade, pela dicção… Às vezes até pelo silêncio você conhece um escritor”. Ouça a entrevista clicando aqui.
Como no ano passado, quando as bombas no metrô de Londres sacudiram a calma da Flip, a notícia sobre o plano dos atentados descoberto na capital inglesa fez a política internacional ocupar novamente o primeiro plano das conversas. O que é “obsceno”, segundo o inglês Christopher Hitchens, mas inevitável. Hitchens, que no sábado dividirá com Fernando Gabeira a mesa “Profissão repórter: na linha de frente”, teve que interromper hoje seus planos de uma sesta reparadora, que o deixasse novo em folha para novas rodadas de uísque com água mineral gasosa – a cachaça da terra não lhe fez a cabeça – a fim de escrever às pressas sobre o caso para a imprensa inglesa. Obscenidade é uma idéia precisa, principalmente quando se leva em conta o contraste entre a fisionomia carregada de Hitchens e as dezenas de crianças de uniforme escolar que corriam à sua volta na Praça da Matriz, entre contadores de histórias e bonecos de papel machê, dando à cena um jeitão comovente de utopia social. Ex-estrela da esquerda britânica que hoje não tem medo de ser chamado de direitista, Hitchens falou ao Todoprosa sobre as idéias que vai expor em seu artigo. Idéias fortes como esta: “Vai…
“Para namorar. Quando comecei, era para namorar.” A resposta do poeta Carlito Azevedo à pergunta encaminhada por um espectador, “por que escrever poesia?”, na mesa “Vozes em verso”, hoje de manhã, foi provavelmente a mais desconcertante ouvida até agora na Flip. A falta de pose também é uma pose? Claro que é. Mas é impossível negar o que há de verdade profunda na confissão de Carlito. “Eu via as minhas limitações, não sou o Marcos Siscar, louro, alto, de olho azul”, disse ele, referindo-se ao poeta com quem ele e Astrid Cabral dividiam a conferência na Tenda dos Autores. “Precisava que prestassem atenção em mim por três minutos, que em geral é o que dura um poema.” E hoje, passada essa necessidade juvenil de impressionar namoradas, por que continuar a escrever poesia? “Para mantê-las”, responde Carlito.
Pronto, deu-se a mágica. Parati virou a capital brasileira da literatura do dia para a noite. Nessa hora importam muito pouco as críticas, que nunca estiveram em falta, às imperfeições do evento: começou, está começado. Enquanto as ruas de pedras irregulares são pisadas por exércitos de sapatos, sandálias e tênis fabricados nos quatro cantos do mundo, num assustador desafio à resistência de milhares de tendões, as quedas de luz na sala de imprensa fazem jornalistas experimentados perder de dez em dez minutos o trabalho escrito nos últimos dez minutos. Mas ninguém reclama. A prometida rede wi-fi? Amanhã, quem sabe, murmura-se nessa sucursal fluminense da Bahia. E daí, se você entra num botequim e encontra Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, ainda triste com a desistência de última hora de Ricardo Piglia? “O livro dele (‘O último leitor’) é a melhor obra de não-ficção publicada pela editora este ano”, avalia Schwarcz. Na mesa ao lado, o jovem autor angolano Ondjaki conta suas primeiras experiências com uma especialidade da terra: virou várias doses de cachaça e ficou de pé, garante. A voz firme e o equilíbrio passável confirmam a história. É pouco provável, porém, que a resistência do rapaz ao álcool…
Roubei o nome do blog do amigo Guilherme Fiuza para enfeitar o título acima, mas tenho uma boa razão. Isso não é necessariamente um defeito – embora possa ser, dependendo do gosto do freguês –, mas a desistência do argentino Ricardo Piglia parece ter sido o que faltava para fazer a balança da 4a Festa Literária Internacional de Parati, que começa hoje à noite com um show de Maria Bethânia, pender de vez para o lado dos temas políticos, deixando a literatura em segundo plano. A inclinação não deixa de ser condizente com um evento em que o autor homenageado é Jorge Amado, que em sua fase realista-socialista foi o escritor brasileiro que mais resolutamente subordinou sua ficção a diretrizes político-partidárias em toda a história. Não é este o melhor Jorge Amado. Também não é o melhor desta Flip, em termos literários, o paquistanês-britânico Tariq Ali, que na sexta-feira, às 15h, estará sozinho na mesa intitulada – justamente – “Literatura e política”. Romancista pouco inspirado, Ali goza de reputação melhor como ensaísta militante e porta-voz da cultura muçulmana. Tem tudo para dominar a cena, especialmente enquanto as bombas israelentes caem no Líbano. No outro extremo do arco ideológico – se…
Alguns outros resultados do Jabuti, em categorias que envolvem texto: Ruy Castro (“Carmen, uma biografia”) levou o prêmio de biografia; Marcelino Freire (“Contos negreiros”), o de contos e crônicas; Affonso Romano de Sant’Anna (“Vestígios”), o de poesia; Mamede Mustafá Jarouche (“Primeiro livro das Mil e uma noites”), o de tradução; Gabriel o Pensador (“Um garoto chamado Rorbeto”), o de infantil. Isso é só o começo da lista. E tem mais: cada categoria conta com um pódio de três ganhadores. O Jabuti é fortíssimo candidato a prêmio mais prolixo da literatura mundial.
O amazonense Milton Hatoum, com “Cinzas do Norte” (Companhia das Letras), ganhou hoje o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria romance. A escolha é justa e nada surpreendente. Para a lista completa (19 categorias ou quer mais?), clique aqui.
José Miguel Wisnik, com a palestra ?Machado maxixe?, baseada no ensaio homônimo publicado em seu livro ?Sem receita? (Publifolha, 2004), vai substituir o crítico e ficcionista argentino Ricardo Piglia na mesa das 17h de sábado, dia 12, na Festa Literária Internacional de Parati. ?Machado maxixe? analisa o conto ?Um homem célebre?, de Machado de Assis. Piglia, que seria uma das maiores atrações da Flip 2006 na opinião do Todoprosa (veja nota abaixo), alegou motivos de saúde ? uma virose ? para cancelar o compromisso. Sua editora, a Companhia das Letras, entrou hoje em contato com a organização da festa para saber se, chegando a Parati no sábado, o autor argentino ainda conseguiria falar ao público numa mesa improvisada no domingo. Recebeu resposta positiva. Em todo caso, é improvável que isso venha a ocorrer.
Voltava finalmente depois de uma ausência de duas semanas. Os nossos estavam havia já três dias em Rulettenburgo. Pensava que eles, Deus sabe como, me estariam esperando, mas enganava-me. O general parecia o supra-sumo da indiferença; falou-me com altivez e enviou-me à sua irmã. Saltava aos olhos que, fosse como fosse, haviam arranjado dinheiro. A mim me pareceu também que o general se esforçava muito por não me olhar. Mária Filipóvna estava muito atarefada e falou-me muito à pressa; aceitou, não obstante, o dinheiro, contou-o e escutou meu relato até o fim. À hora da refeição esperavam Miezientsov, um francês e também certo inglês; assim costumavam fazer enquanto tinham dinheiro: em seguida davam jantares à moscovita. Polina Alieksándrovna, ao ver-me, perguntou: “Vai estar ali muito tempo?” E sem esperar resposta, foi-se para não sei onde. Naturalmente, fez aquilo de propósito. Precisávamos, não obstante, ter uma explicação. Haviam-se juntado muitas coisas. Muitas coisas, realmente. Coisas demais? O início de “O jogador” (Obra completa, volume III, tradução de Oscar Mendes, Nova Aguilar, 1995), novela escrita por Dostoiévski em apenas três semanas em 1866, a fim de pagar uma dívida com seu editor, leva ao limite do pandemônio a máxima de que os…
A editora inglesa Penguin está comemorando os 60 anos da coleção Penguin Classics. A festa é justificada: a empresa criada por Allen Lane em 1935 fez tanto sucesso com sua estratégia editorial revolucionária que se tornou a maior responsável por trazer a literatura – um tanto tardiamente – para a era da comunicação de massa. A idéia de publicar conteúdo de qualidade em brochuras industrialmente baratas – suporte reservado até então à subliteratura e a reedições sem cuidado de textos caídos em domínio público – estreou no mercado em 1935. Trazia textos de autores (então) contemporâneos, como Agatha Christie e Ernest Hemingway. Só na década seguinte os clássicos entraram na dança, e o público, para surpresa de muita gente, continuou comparecendo. “O amante de Lady Chatterley”, de D.H. Lawrence, lançado em 1960, chegou a vender o número até então inconcebível de 3,5 milhões de exemplares. Para comemorar a data, a Penguin preparou uma lista dos cem melhores títulos da história da coleção – leia a reportagem do “Times”, em inglês, aqui.
Finnegans Wake é um laboratório que submete a leitura a sua prova mais extrema. À medida que nos aproximamos, aquelas linhas nebulosas se transformam em letras e as letras se amontoam e se misturam, as palavras se transmutam, se alteram, o texto é um rio, uma torrente múltipla em contínua expansão. Lemos restos, pedaços soltos, fragmentos, a unidade do sentido é ilusória. A primeira representação espacial desse tipo de leitura já está em Cervantes, sob a forma dos papéis que ele recolhia na rua. Essa é a situação inicial do romance, seu pressuposto, melhor dizendo. “Sou aficionado a ler até pedaços de papéis pelas ruas”, afirma-se no D. Quixote. Poderíamos ver nesse trecho a condição material do leitor moderno: ele vive num mundo de signos; está rodeado de palavras impressas (que, no caso de Cervantes, a imprensa começou a difundir pouco antes); no tumulto da cidade, ele se detém para recolher papéis atirados na rua, deseja lê-los. Só que agora, diz Joyce em Finnegans Wake – ou seja, na outra ponta do arco imaginário que se abre com D. Quixote – esses papéis amassados estão perdidos numa lixeira, bicados por uma galinha que cavouca o chão. O trecho – e…
Para quem gosta de acompanhar os movimentos – nos últimos tempos, todos concentradores – do mercado editorial, é imperdível a reportagem do jornal “Valor Econômico” de hoje sobre a transformação da editora paulista Geração, fundada há 14 anos por Luiz Fernando Emediato, no nono selo da gigante carioca Ediouro.
Num evento literário beneficente de que participaram ao lado de JK Rowling ontem à noite, no Radio City Music Hall, em Nova York, John Irving e Stephen King fizeram um apelo à autora para que poupe a vida de Harry Potter no sétimo e último livro da série sobre o jovem mago, que ela está escrevendo – notícia completa, em inglês, aqui. Ela não prometeu nada. “Estou cruzando os dedos pelo Harry”, disse Irving. Parece bobagem, e é. Mas muitas piscinas de lágrimas estão em jogo.
A história dos protestos contra a filmagem do livro de Monica Ali sobre a comunidade bengalesa de Londres, apresentada na nota “Queimem Monica Ali!”, aqui embaixo, ficou muito melhor depois que Salman Rushdie chutou o balde. O autor de “Os versos satânicos”, nascido na Índia, escreveu uma carta para o “Guardian” (em inglês, aqui) atacando o movimento contra o filme. Até aí, normal. O que esquenta tudo é o ataque de Rushdie à intelectual feminista Germaine Greer, uma radical do “relativismo cultural” que, habituada a tomar o partido errado em qualquer discussão, defendeu os que querem inviabilizar o filme. Com a palavra, o autor: Seu (de Germaine Greer) apoio aos que atacam o projeto desse filme é filistino, santimonial e deplorável, mas não é surpreendente. Ela já fez isso antes, lembro-me bem. No momento culminante dos ataques ao meu romance “Os versos satânicos”, Germaine Greer declarou: “Eu me recuso a assinar petições em favor daquele livro dele, que é sobre os problemas pessoais dele”. Gentil, Rushdie preferiu não mencionar que, na mesma entrevista, de 1992, Germaine Greer defendeu a prisão de escritores dizendo que a cadeia é um bom lugar para eles porque lá “eles escrevem”. Se brigas desse tipo…
O ponto coroa a realização do pensamento, proporciona a ilusão de um término, possui uma certa altivez que nasce, como em Napoleão, do seu tamanho diminuto. Alberto Manguel, escritor argentino naturalizado canadense – que os leitores brasileiros conhecem de “Uma história da leitura”, da Companhia das Letras, entre outros títulos –, publicou neste fim de semana no Babelia, suplemento literário do jornal espanhol “El Pais”, uma pequena e saborosa crônica sobre a mais simples e genial das convenções tipográficas, uma criação do Renascimento sem a qual a leitura como a conhecemos não existiria: o ponto. Conta Manguel que os mais estranhos métodos de indicar o fim das frases foram experimentados ao longo da história, com efeitos confusos para o leitor, até que… …en 1566, as coisas mudaram. Aldo Manuzio, o Jovem, neto do grande impressor veneziano a quem devemos a invenção do livro de bolso, definiu o ponto em seu manual de pontuação, o Interpungendi ratio. Num latim claro e inequívoco, Manuzio descreveu pela primeira vez seu papel e seu aspecto. Pensou que estava preparando um manual para tipógrafos; não podia saber que outorgava a nós, futuros leitores, os dons do sentido e da música.
Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça. Escrevo um livro por mês, com vários pseudônimos americanos, embora meu herói – não sei se você notou – sempre se chame Conrad. Conrad James. Herman Conrad. Um ex-marinheiro de poucas palavras. Um peixe pequeno, mas mais de uma cidade foi salva da catástrofe pela sua ação decisiva entre as páginas 90 e 95. Tenho uma fórmula: a grande trepada por volta da página 40, o encontro final com o vilão, e o desenlace, a partir da página 90. Sobrevivo. Nunca mais vi o mar. O início de “O jardim do diabo” (L&PM, 1988) não é marcante…