Mais uma vez, como já virou tradição, muita gente que se dispôs a encarar a gincana de comprar ingressos para a Festa Literária Internacional de Parati, postos à venda hoje ao meio-dia pela Ticketmaster, levou para casa um mico. Ou um micaço, se for levado em conta que esses aventureiros já pagaram pela pousada no balneário há semanas. Mazelas da pouca oferta para muita procura? Em parte, com certeza. Mas só em parte. Isso não explica que, no posto Ipiranga de Botafogo, no Rio, a mesa de Toni Morrison fosse dada como esgotada às 13h30 num guichê – e cinco minutos depois ainda se encontrasse ingresso para ela no guichê ao lado. O pessoal encarregado das vendas também não entendia o que estava acontecendo. Ligavam para supervisores o tempo todo. Continuaram no escuro. Na internet foi melhor? Não. Quem tentou comprar uma entrada para o show de Maria Bethânia pelo site da Ticketmaster foi informado de que, cinco minutos após a abertura das vendas, todas elas tinham evaporado. Danadinha essa Bethânia, não? É, pode ser… O ceticismo é justificado por um fenômeno que começa a ficar conhecido como a maldição dos ingressos da Flip. Ano passado uma confusão semelhante cercou…
A “Folha de S. Paulo” (aqui, mas só para assinantes do jornal ou do UOL) informa que Bogotá recebeu da Unesco, para ostentar ao longo do ano que vem, o título de Capital Mundial do Livro. A capital da Colômbia é a primeira cidade da América Latina a merecer a distinção, mas parece haver justiça nisso. Uma epidemia de leitura que a experiência brasileira torna difícil até de conceber estaria começando a mudar a imagem colombiana de país violento e ingovernável – ou pelo menos mostrando que ela não é exclusiva: Com 2,7 milhões de visitantes por ano, a Biblioteca Luis Ángel Arango, em Bogotá, é uma das mais visitadas do mundo. Recebe, em média, 9.000 pessoas diariamente. É mais do que a soma de visitantes de Masp (Museu de Arte Moderna de São Paulo), Biblioteca Mário de Andrade e Pinacoteca juntos por dia. Mantida pelo Banco Central do país, ela tem 2 milhões de livros e capacidade para 2.000 leitores sentados. Nos últimos anos, a BLAA fez escola: a prefeitura local construiu outras megabibliotecas pela cidade e criou diversos programas de leitura que visam formar leitores em massa.
Uma reportagem do jornal inglês “The Guardian” (acesso livre, em inglês) traz novas informações e contextualiza a situação de precária liberdade de expressão que tem atazanado a vida de escritores e jornalistas turcos – veja a nota “A Turquia ataca outra vez”, ali embaixo. A propósito da reabertura do processo contra uma romancista popular no país, Elif Shafak, por “ofender a turquidade” (na falta de palavra melhor), o jornal informa que mais de 60 pessoas foram processadas sob alegações semelhantes de um ano para cá, desde que se introduziu na lei um certo “artigo 301”. A maioria dos processos acaba girando em torno da questão do massacre – há quem prefira chamar de genocídio – dos armênios pelas tropas turcas durante a Primeira Guerra Mundial, que o país nega oficialmente. No caso de Elif Shafak, bastou que a palavra “genocídio” fosse pronunciada por um de seus personagens, aliás armênio, para que a autora fosse acusada. Algo como prender Flaubert pela morte de Emma Bovary. O jornal registra ainda uma interessante tese de Sarah Whyatt, diretora do PEN Internacional que acompanha o caso: mais do que um vício autoritário que a Turquia precisará abandonar em sua campanha para ingressar na União…
Na manhã em que a última filha dos Lisbon decidiu-se também pelo suicídio – foi Mary dessa vez, e soníferos, como Thereza –, os dois paramédicos chegaram à casa sabendo exatamente onde ficavam a gaveta das facas, o forno, e a viga no porão à qual era possível atar uma corda. Saíram da ambulância, como sempre andando mais devagar do que gostaríamos, e o gordo disse entre dentes: “Isso não é a TV, gente, mais rápido não dá.” Carregava o pesado equipamento cardíaco e o respirador, passando pelos arbustos que haviam crescido de forma monstruosa, pisando o gramado transbordante que fora liso e imaculado treze meses antes, quando os problemas começaram. Assim, entregando o fim para garantir desde a primeira linha que o leitor só abandonará o livro antes da hora se for ruim da cabeça, tem início a viagem poética e mórbida – praticamente neo-simbolista, pensando bem – de “Virgens suicidas” (Rocco, 1994, tradução de Marina Colasanti). Para quem se interessa pelas engrenagens da escrita, o belo romance de estréia do americano de ascendência grega Jeffrey Eugenides merece destaque ainda por um recurso inusitado: a narração é toda feita na primeira pessoa… do plural.
Leitura recomendável a todos nós, fetichistas do papel, para quem é absurda a idéia – defendida por tantos visigodos eletrônicos – de que o livro como o conhecemos seja menos que eterno, indestrutível, maior que a própria História. O jornalista e escritor argentino Marcelo Figueras escreve em seu blog no site El Boomeran(g) sobre uma relação com os livros que nada tem de rara. Talvez seja mesmo a mais comum das relações possíveis entre seres humanos e livros. Mas não é fácil encontrar quem assuma esse amor bandido: Cada pessoa se relaciona com o objeto livro de maneiras distintas. Sei de gente que os trata como se cada exemplar fosse um incunábulo: cuidando para que a sobrecapa e a capa não se amarrotem, abrindo-os de tal forma que não fiquem marcas na lombada, negando-se a sublinhar o texto a menos que seja com um delicado traço de lápis… Compreendo esse cuidado, porque expressa amor. Mas é claro que, como na vida, existem muitos tipos de amor. Amo meus livros, mas com um amor bárbaro. Ali estão os coitados, manuseados, gastos, sublinhados com tinta, cheios de papeizinhos que naquele momento serviram como marcadores… Meus livros se parecem bastante com a edição…
Começou na última terça-feira e vai até o dia 4 de agosto a World eBook Fair, ou Feira Mundial do Livro Eletrônico. Estão franqueadas por um mês as buscas e os downloads de arquivos – em pdf – numa biblioteca de cerca de 330 mil títulos em mais de cem línguas, com predominância do inglês. A feira comemora os 35 anos do Projeto Gutenberg, programa pioneiro de digitalização de clássicos, com o apoio e o acervo complementar da World eBook Library, que normalmente cobra pelos downloads uma assinatura de 8,95 dólares por ano, e mais um consórcio de iniciativas menores ligadas ao livro eletrônico. Quase todas as obras são suficientemente antigas para estarem em domínio público, ou seja, fora do alcance das leis de proteção aos direitos autorais. Decepcionante? Convém não esquecer que, embora mortal para quem acha que o mundo começou ontem, o critério não chega a excluir 5% dos maiores autores de todos os tempos. Isto é, em tese. Não significa que mais de 95% deles já estejam nessa feirinha, ao alcance de um clique. Chegaremos um pouco mais perto disso quando for atingida a marca, prevista para 2009, de 1 milhão de livros.
Eis um aspecto até certo ponto inesperado da discussão que abriu a semana aqui no Todoprosa, sobre o futuro do livro na era digital. “A palavra falada é o grande sucesso do mercado de livros digitais até o momento, graças ao fenômeno do iPod”, anuncia hoje uma reportagem do jornal inglês “The Guardian” (acesso gratuito aqui, em inglês): Peter Bowron, diretor da Random House, editora de ‘O código da Vinci’, diz que chegará o momento em que livros serão contratados com base em seu apelo de áudio, em vez de seu potencial nas prateleiras. ‘Veio o iPod e, de repente, o mercado de download de arquivos de áudio ficou muito maior… É uma das primeiras áreas do mundo digital em que, em vez de ficar apenas falando dela, estamos realmente ganhando dinheiro’. Depois disso, entende-se melhor a reportagem de ontem do “New York Times” (cadastro gratuito) sobre escritores que estão cuidando pessoalmente das gravações de seus audiolivros, convocando amigos e negociando horas em estúdio na base da camaradagem. Faz sentido. O que encarecia o produto, até pouco tempo atrás uma exclusividade de grandes vendedores, era toda aquela traquitana da vida real: suportes físicos, distribuição, estocagem nos pontos de venda. Quando…
Histórias de faroeste? Isso mesmo. Mas histórias de faroeste escritas por ninguém menos que Elmore Leonard, 80 anos, um mestre da narrativa veloz que é dono de um ouvido perfeito, imbatível na estetização da língua americana falada hoje e, por conta de tudo isso, um dos maiores prosadores vivos da língua inglesa. Quem acha que todos esses elogios não combinam com um escritor assumidamente comercial deve pensar de novo. Leonard não é um literato. É uma fábrica de histórias, do tipo que lança um livro por ano e vê muitas de suas tramas irem parar na tela grande – a maioria das vezes em filmes aquém de sua qualidade, mas recentemente em dois sucessos hollywoodianos, “O nome do jogo” e “Jackie Brown”. Mais conhecido como autor de romances policiais, foi escrevendo contos e romances do gênero western que Elmore Leonard fez sua carreira decolar, a partir dos anos 50. Vale conferir, em inglês, os aplausos com que o sisudo “Financial Times” comemora o lançamento de todos os seus contos de bangue-bangue num só volume, na Inglaterra, aqui. Os romances de faroeste de Elmore Leonard vêm sendo lançados no Brasil pela Rocco, que publica o autor há muitos anos – como…
O que tem a ver a Turquia com a União Européia? É o que muita gente tem se perguntado diante da reincidência do país nas restrições à liberdade de imprensa e opinião, um dos pontos fracos de sua candidatura a membro do clube. Ano passado, o escritor Orhan Pamuk foi submetido a um processo rumoroso por ter comentado, numa entrevista, aquilo que nenhum historiador sério nega: o massacre de cerca de 1 milhão de armênios pela Turquia, em 1915. Como Pamuk é um autor de renome internacional, a pressão da opinião pública, sobretudo a européia, levou o governo a desistir do processo. Mas Fatih Tas não é Pamuk. O dono da editora Aram, jovem de 27 anos que já é veterano de outros processos, anunciou numa entrevista divulgada pela agência France-Presse (mediante cadastro gratuito) que está enfrentando acusações de “denegrir a identidade nacional” e “incitar o ódio”, o que o sujeita a uma pena de até seis anos de prisão. Seu crime foi ter publicado, em março, uma tradução de Manufacturing consent: the political economy of the mass media, de Noam Chomsky e Edward S. Herman. Num dos ensaios do livro, Chomsky critica o tratamento dispensado pelo governo turco à…
A polêmica sobre o fim anunciado do livro ganha a adesão de duas vozes de peso. Umberto Eco comparece com a transcrição de sua palestra Da internet a Gutenberg, de 2003, traduzida para o português pelo professor catarinense João Bosco da Mota Alves (o link é uma contribuição do leitor Francisco Gonzalez). Comentando as infinitas possibilidades de “leitura ativa” que o meio eletrônico propicia, aquelas que seus propagandistas saúdam como o fim do “livro fechado” – hipertexto, interatividade, edição, colagem de fragmentos –, Eco defende o livro tradicional com sobriedade e elegância, apresentando um singelo argumento filosófico: Você é obrigado (como leitor de um livro) a aceitar as leis do destino, e constatar que não pode mudar o destino. Um romance hipertextual e interativo nos permite praticar liberdade e criatividade, e espero que tal tipo de atividade inventiva seja praticada nas escolas do futuro. Mas “Guerra e Paz” escrita não nos confronta com possibilidades ilimitadas de Liberdade, mas com as leis severas da Necessidade. Para sermos pessoas livres, precisamos também aprender esta lição sobre Vida e Morte, e apenas os livros ainda nos presenteiam com esta sensatez. A outra contribuição tem peso intelectual equivalente: vem do historiador francês Roger Chartier,…
Para quem se interessou pela polêmica exposta na nota abaixo: o artigo de Kevin Kelly que motivou a resposta de John Updike ganhou uma tradução para o português – uma versão condensada, mas ainda de certo fôlego – na última edição da revista “Entrelivros”, sob o título Biblioteca universal ao alcance do mouse.
Eis uma polêmica imperdível (toda em inglês, infelizmente) para quem se interessa pelos novos rumos que a cultura digital pode impor à literatura – ao ato de escrever, de ler, de vender, de comprar livros. Pouca gente minimamente antenada discute que mudanças culturais e econômicas estão a caminho, mas até que ponto isso mexerá, se é que mexerá, com a leitura como a conhecemos? Alguns radicais acham que o livro – o objeto físico e também o mental – está com os dias contados, nada menos. Um desses é Kevin Kelly, da revista de tecnologia “Wired”, que mês passado publicou um longo artigo no “New York Times” (cadastro gratuito) para saudar a nova era que, acredita ele, a digitalização de grandes bibliotecas pelo Google está inaugurando. Nessa era já não haverá livros, mas fragmentos de páginas que os leitores editarão na ordem que bem entenderem, trocando esses novos textos remixados como hoje se trocam listas de música online. Nenhum autor poderá viver de seus escritos em tal ambiente, é claro, pela simples razão de que não haverá direitos autorais. Como viverão os escritores? Vendendo “performances, acesso ao criador, personalização (…), patrocínios, assinaturas periódicas – em resumo, todos os valores que…
A Record, maior editora de livros de interesse geral (isto é, não didáticos) do país, desmentiu ontem oficialmente os rumores de que foi vendida para o grupo alemão Bertelsmann, um dos maiores do mundo na área de comunicação. Nao é a primeira vez que faz isso, o que reforça a suspeita de namoro entre as partes. O mesmo boato circulou com força em agosto do ano passado. Tanta força que chegou a ser desmentido por Stuart Applebaum, vice-presidente executivo de comunicação da Random House, braço editorial da Bertelsmann e maior editora de interesse geral do mundo. Applebaum declarou ao “PublishNews”: “Nós não compramos nem investimos em nenhuma editora brasileira, nem estamos contemplando fazer isto no futuro”. Mas a tendência do mercado é mesmo concentradora, e pelo menos uma editora portuguesa estava na mira do grupo. Terça-feira passada foi confirmada a compra, pela Bertelsmann, da editora e rede de livrarias portuguesa Bertrand, por um valor estimado entre 20 e 30 milhões de euros (entre 55 e 80 milhões de reais). A compra da empresa d’além-mar pode estar na origem do ressurgimento dos rumores. Em 1997, a Record adquiriu dos portugueses a Bertrand Brasil. Desde então, não há mais relação alguma entre…
Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (…) Eis o melhor dos começos, o pior dos começos: o começo de “Um conto de duas cidades”, lançado em 1859 por Charles Dickens (Nova Cultural, 2002, tradução de Sandra Luzia Couto).
Porque muitos que são leterados não sabem treladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos para ello necessários. Primeiro, conhecer bem a sentença do que há de tornar, e poê-la enteiramente, não mudando, acrescentando, nem minguando alguma cousa do que está escrito. O segundo, que não ponha palavra latinadas nem doutra linguagem, mas todo seja em nosso linguagem escrito, mais achegadamente ao geral bom costume de nosso falar que se pode fazer. O terceiro, que sempre se ponham palavras que sejam dereita linguagem, respondentes ao latim, não mudando umas por outras, assi que onde el disser per latim “escorregar”, não ponha “afastar”, e assi em outras semelhantes, entendo que tanto monta uma cousa como a outra; porque grande deferença faz pera se bem entender, serem estas palavras propriamente escritas. Em homenagem à seleção treinada por Felipão, que encara neste sábado a Inglaterra, vai aí um fragmento delicioso – e cheio de verdade, é só prestar atenção – do “Leal Conselheiro”, clássico do português medieval escrito por um rei de verdade, D. Duarte (1391-1430), que carrega pela história afora o simpático epíteto de “primeiro filósofo da saudade”. O fragmento foi colhido no livro “Era Medieval”, de Segismundo Spina, primeiro…
Reproduzo abaixo a mensagem que acabo de receber de Fernando Monteiro, escritor pernambucano citado semana passada aqui no Todoprosa, na nota “É claro que nossos netos vão rir”, por conta da apresentação interneticamente tosca de um folhetim de sua autoria no site do jornal paranaense “Rascunho”. A mensagem repete em linhas gerais os argumentos de um dos editores do jornal, Luís Henrique Pellanda, já publicados aqui: o trabalho em questão foi concebido para publicação em papel, o site é só um subproduto disso – traduzindo, ninguém está ligando para o que vai ao ar no “Rascunho” digital e eu não deveria ligar também. O que, na minha opinião, é confissão de culpa e não atenuante. De novidade, a mensagem do autor do folhetim traz uma crítica genérica e um tanto difusa ao próprio meio eletrônico e aos “debates” (aspas de Monteiro) que ele propicia. Pois é em benefício do debate (sem aspas) que a mensagem de Fernando Monteiro vai aqui na íntegra, sem edição, o que dificilmente ocorreria no espaço contado da imprensa de papel. E também porque, no fim das contas, suas palavras ajudam a entender por que seu folhetim, mesmo tendo caído na rede, se recusa tão obstinadamente…
As pinturas religiosas do século XIV foram as primeiras a retratar cenas de danação em que pessoas acima do peso vagavam pelo Inferno, condenadas a saladas e iogurte. Os espanhóis eram particularmente cruéis, e durante a Inquisição um homem podia ser condenado à morte por rechear um abacate com siri. Nenhum filósofo chegou perto de resolver o problema da culpa e do peso até que Descartes dividiu mente e corpo em dois, para que o corpo pudesse se empanturrar enquanto a mente pensava: “Quem se importa, esse não sou eu”. A grande questão filosófica continua sendo: se a vida não tem sentido, o que fazer a respeito da sopa de letrinhas? Deu para reconhecer o estilo? O trecho foi retirado de um livro inédito de um dos maiores filósofos da história, o “Livro de dieta de Friedrich Nietzsche”, cujo manuscrito foi descoberto recentemente em Heidelberg por Woody Allen – ou pelo menos é esse o ponto de partida da crônica de humor filosófico (em inglês) que ele publica no último número da “New Yorker”.