Sou um homem de certa idade. A natureza das minhas ocupações, nestes últimos trinta anos, me levou a entrar permanentemente em contato com uma espécie de homens interessantes e um tanto singulares, da qual, que eu saiba, nada até agora se tem escrito: refiro-me aos copistas, escriturários ou escreventes a serviço de homens de leis. Conheci muitos, quer profissional quer particularmente, e poderia, se quisesse, contar sobre eles inúmeras histórias que fariam sorrir afáveis cavalheiros e levariam às lágrimas as almas sentimentais. Mas renuncio às biografias de todos os demais escriturários para relatar algumas passagens da vida de Bartleby, o mais estranho de todos que jamais vi e de quantos tive notícia. Aproveitando o mote da nota “O nosso Bartleby”, aí embaixo, que sirva o início de “Bartleby, o escriturário” (Rocco, 1986, tradução de Luís de Lima) como convite para quem ainda não conhece essa brilhante novelinha – ou conto alentado – que o escritor americano Herman Melville (1819-1891) publicou anonimamente numa revista em 1853, dois anos depois de sua obra-prima “Moby Dick”, e em livro, já com seu nome, três anos mais tarde.
É boa a temporada. Praticamente numa fornada única, a Companhia das Letras pôs nas livrarias novos títulos de três dos maiores autores de língua inglesa da atualidade. Logo depois de “Casa de encontros”, de Martin Amis, e colado em “Na praia”, de Ian McEwan, chega o romance “Homem lento”, de J.M. Coetzee, principal atração da iminente Flip (tradução de José Rubens Siqueira, 280 páginas, R$ 46). Além de uma manifestação de louvor (para a tradução) e outra de absoluto a$$ombro, nada tenho a acrescentar ao que já comentei sobre esse curioso livro aqui.
O “caso JT Leroy” foi tão embaraçoso para o establishment literário em geral que acabou sendo muito menos discutido do que merece. Levantou-se uma orelha do tapete, varreu-se o assunto, uma pena. Vale aproveitar o fato de a confusão ter finalmente chegado aos tribunais na forma de uma acusação de fraude – leia a reportagem do “New York Times”, mediante cadastro gratuito – para recordar a história. Para quem não se lembra, o escritor-personalidade JT Leroy, apresentado como um jovem travesti drogado, prostituído e soropositivo, salvo por um triz da ruína por sua genialidade literária, entrou em cena em 2000 nos Estados Unidos para virar uma celebridade instantânea. A questão constrangedora é: quanto da imediata e festiva adoção de JT pela imprensa literária se devia à sua biografia e quanto à literatura em si? Porque a biografia provou-se mais falsa do que uma prestação de contas do presidente do Senado. E se o texto era mesmo tão espetacular quanto andaram dizendo, que importância tinha um nom de plume? Por que, do dia para a noite, todo mundo que o cobrira de elogios saiu assobiando para cima? JT Leroy, soube-se há dois anos, era na verdade uma dona de casa quarentona…
…a minha impressão sugere que Raduan é um caso atípico de Bartleby. Seu silêncio literário aparentemente não se origina das tensões internas da modernidade literária, não veio de um drama autoral frente ao um desafio extremo, Raduan apenas se encaminhou para fora. A estranheza vem do nosso olhar, acostumados que estamos a descrições de “literatura como destino”, “relação orgânica texto-autor” e a escritores que lançam livros a cada dois ou três anos sem ter nada a mostrar. O ‘caso Raduan’ é um problema para nós, não para o próprio. Em seu blog, Marco Polli comenta com perspicácia o “caso Raduan Nasssar” à luz de “Bartleby e companhia”, do espanhol Enrique Vila-Matas – um estudo literário sobre escritores que, a exemplo do escriturário de Herman Melville, em algum momento se recusam a contribuir para o excesso de letrinhas no mundo e avisam: “Prefiro não fazer”. A nota me fez pensar numa razão para que o “silêncio dos escritores”, que não foi inventado ontem e pode obedecer a um milhão de razões particulares, nos pareça, neste início de século, um tema cultural cada vez mais relevante e desafiador. Deve ser porque vivemos – e não apenas na literatura – dentro de uma…
O título de cavaleiro que o governo britânico concedeu a Salman Rushdie no último sábado está provocando reações de profunda insatisfação em diversos países islâmicos. Nenhuma que chegue perto, no tom de ameaça aberta, destas palavras de Mohammed Ijaz ul-Haq, ministro de Assuntos Religiosos do governo do Paquistão, em discurso no parlamento: É hora de 1,5 bilhão de muçulmanos considerarem a gravidade dessa decisão. O Ocidente tem acusado os muçulmanos de extremismo e terrorismo. Se alguém explodir uma bomba atada ao corpo, estará certo em fazê-lo, a não ser que o governo britânico peça desculpas e retire (de Rushdie) o título de Sir. A reportagem do “Guardian”, em inglês, pode ser lida aqui. O escritor passou a década de 90 entocado, ameaçado de morte pela fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini, do Irã, depois que seu livro “Os versos satânicos” foi considerado ofensivo ao Islã pelas autoridades religiosas do país. Vai começar tudo outra vez?
Outro dia falamos do assunto aqui, a propósito do divertido “trailer cinematográfico” do livro “A guerra dos bastardos”, de Ana Paula Maia (Língua Geral), uma das poucas iniciativas do gênero no Brasil. No site BookVideos.tv, ligado à editora Simon & Schuster, o barato é um pouco diferente, mais interessado em glamourizar autores e seduzir o leitor com uma espiada nos “bastidores da criação”. Qualquer que seja o conteúdo, porém, a forma parece ir além do mero modismo. Para começar, a produção é barata. E a veiculação é mais ainda, pois a internet fornece um ambiente em que as peças mais bem recebidas se espalham, por assim dizer, sozinhas. Não duvido que editoras e autores se vejam, em breve, obrigados a pegar a onda do videoclipe como peça promocional de livros.
Onde é que uma história começa, propriamente? Qualquer começo de história é sempre um tipo de contrato entre o escritor e o leitor. Há, é claro, todo tipo de contrato, incluindo aqueles que são insinceros. (…) Há começos que funcionam mais como um papel pega-mosca: primeiro você é seduzido por uma fofoca maliciosa, ou por uma confissão reveladora, ou por uma aventura de gelar o sangue, mas finalmente descobre que não fisgou um peixe, mas sim um peixe empalhado. Em Moby Dick, por exemplo, há muitas aventuras, mas também muitos artigos de delicatéssen não mencionados no menu, nem mesmo insinuados no contrato inicial (“Pode me chamar de Ishmael”), mas conferidos a você como um bônus especial – como se comprasse um sorvete e ganhasse uma passagem para viajar pelo mundo. Há contratos filosóficos, como o famoso trecho inicial de Anna Karenina, de Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem umas às outras; cada família infeliz é infeliz à sua própria maneira.” Na verdade, o próprio Tolstói, em Anna Karenina e em outras obras, contradiz essa dicotomia. Às vezes somos confrontados com um contrato inicial ríspido, quase intimidante, que alerta o leitor logo de início: as passagens são bem caras aqui….
O movimento BookCrossing lançou há seis anos nos Estados Unidos a idéia de abandonar livros em lugares públicos para que outros os leiam e depois, por sua vez, também os “esqueçam” por aí. Agora o metrô de Londres criou um programa semelhante, o London Book Project, com a diferença básica de que os livros são fornecidos pela empresa e não por leitores voluntários. Exemplares de segunda mão foram espalhados nos assentos dos trens para que os passageiros comecem a lê-los na viagem. Se for fisgado pelo autor, qualquer um pode levar os volumes para casa à vontade, mas sempre tendo o cuidado de, ao fim da leitura, deixá-los de volta no metrô. Dos dois lados do Atlântico, cada exemplar é numerado para permitir que seus leitores relatem – e acompanhem – a trajetória do livro na internet. Idéias muito, muito simpáticas. E inviáveis no Brasil, infelizmente. Ou não?
O melhor que se pode fazer pela “Enciclopédia de Literatura Brasileira” que o Instituto Itaú Cultural pôs no ar em seu bonito site na terça-feira é não visitá-la. Não por enquanto. Vamos ser justos e, até por respeito aos seus “consultores editoriais” – os escritores Luiz Ruffato e Flávio Carneiro e a professora Regina Dalcastagné –, esperar que a aprimorem. Do jeito que está, o trabalho é um perigo para leitores desavisados. Não é que Ivana Arruda Leite, uma escritora interessante, não mereça um verbete. Deve merecer. Mas de modo algum poderia furar uma fila em que Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst ainda aguardam a vez. Este é só um dos 277 furos que contei em três minutos e meio na “Enciclopédia”, um espantoso conjunto de 106 nomes de “todos os tempos” cuja única defesa parece ser a precipitação de pôr no ar um trabalho maciçamente inacabado e sem apreço a prioridades. O blogueiro exagera? Julgue você mesmo. Que o meu colega de site Daniel Galera, talentoso que só, é um bom nome para uma enciclopédia dessas, estou pronto a defender com veemência. Mas se Campos de Carvalho não aparece, nem Lúcio Cardoso, nem Rubem Fonseca, nem…
Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. A primeira frase de “As cidades invisíveis”, obra-prima lançada em 1972 por Italo Calvino (Companhia das Letras, tradução de Diogo Mainardi, 1990), pode não parecer, em si, inesquecível. É preciso ler esse espantoso conjunto de relatos de viagem por cidades imaginárias para descobrir que é, sim.
Este vídeo ensina a escrever O Grande Romance Americano. Com óbvias adaptações, funciona também para quem quiser escrever O Grande Romance Brasileiro. Se é que alguém ainda quer.
A 66a Feira do Livro de Madri, inaugurada na última sexta-feira, é dedicada à literatura africana, definitivamente a bola da vez – não em vendas, mas em badalação crítica – no mercado internacional. A edição de sábado passado do caderno Babelia, suplemento literário do jornal “El Pais”, se debruça sobre o tema e traz uma lista de “clássicos (africanos) contemporâneos” que inclui dois autores de língua portuguesa: o angolano Pepetela e o moçambicano Mia Couto, que estará na próxima Flip. (Favor desconsiderar o erro de digitação do jornal, que transformou o último em Mia Coute.)
Saiu a programação completa da Festa Literária Internacional de Parati, que a cidade histórica do litoral fluminense vai sediar de 4 a 8 de julho – baixe a grade em pdf aqui. A programação também estará disponível, juntamente com outras informações sobre os autores, a partir desta terça-feira no site oficial do evento. Entre as atrações nacionais – pálidas diante do bom elenco de estrelas estrangeiras, já comentado aqui e aqui –, o destaque é a mesa “A vida como ela foi”, inspirada pela recente polêmica sobre a biografia censurada de Roberto Carlos. O autor do livro que o cantor mandou recolher das livrarias, Paulo César de Araújo, terá ao seu lado dois biógrafos de peso, Ruy Castro e Fernando Morais. Os ingressos (R$ 20 para a Tenda dos Autores e R$ 6 para a Tenda da Matriz) começam a ser vendidos no dia 4 de junho às 9h pela internet e nos pontos de venda da Ingresso Rápido.
No dia em que Clarice Lispector e José Carlos Oliveira quase saíram no tapa na mesa do Antônio’s, a grande escritora entrevistava o cronista para a “Fatos & Fotos: Gente”, revista que, como fizera com a “Manchete” de 1968 a 1969, ela alimentou de entrevistas com artistas, escritores e esportistas brasileiros de dezembro de 1976 a outubro de 1977, para defender uns trocados. No entanto, pouca gente no lendário restaurante boêmio do Leblon deve ter percebido o que acontecia naquela mesa: perguntas e respostas eram disparadas de um lado a outro em atarefado silêncio, rabiscadas numa folha de papel. Clarice estava gripada. Carlinhos ia jantar. Com sua agressividade cultivada e famosa, o cronista do “Jornal do Brasil” enchia suas respostas de palavrões, magoando Clarice, que anotaria mais tarde: “Acho que Carlinhos continuava a me desafiar escrevendo na folha de papel expressões que ele próprio não usa nas suas crônicas. Mas a mim tanto se me faz”. A certa altura, depois de afirmar que “fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois e ver o sangue correr”, Clarice emenda, conciliadora: “Nós dois, Carlinhos, nos gostamos um do outro, mas falamos palavras diversas”….
Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. O Todoprosa completou um ano no início deste mês e paga agora uma dívida que tem a mesma idade: foi nas férias, pensando na vida, que me ocorreu o absurdo (palavrinha apropriada) de ainda não ter publicado nesta seção o primeiro parágrafo de “O estrangeiro” (Record, tradução de Valerie Rumjanek), novela lançada em 1957 pelo escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Parece que todo esse atraso teve algo a ver com a determinação de fugir do óbvio ou coisa parecida. Desculpa porca. Mais do que proporcionar ao leitor um começo realmente inesquecível, o narrador Mersault, ao anunciar a morte de sua mãe em tom tão frio, está escrevendo a epígrafe de uma época que ainda é a nossa.
Escrevo (…) estas coisas por ter a impressão de que em algum lugar, quem sabe no campo da literatura ou das artes, resta-nos um caminho capaz de invalidar as já referidas desvantagens. Eu mesmo quero chamar de volta, pelo menos ao campo literário, esse mundo de sombras que estamos prestes a perder. No santuário da Literatura, eu projetaria um beiral amplo, pintaria as paredes de cores sombrias, enfurnaria nas trevas tudo que se destacasse em demasia e eliminaria enfeites desnecessários. Não é preciso uma rua inteira de casas semelhantes, mas que mal faria se existisse ao menos uma construção com essas características? E agora vamos apagar as luzes elétricas para ver como fica. Eu nunca tinha lido o escritor japonês Junichiro Tanizaki (1886-1965) quando o encontrei no papel de personagem – e talvez um pouco mais do que isso – do bom “O sol se põe em São Paulo”, de Bernardo Carvalho (leia trecho aqui). Mas o ensaio “Em louvor da sombra”, que acaba de sair (Companhia das Letras, tradução de Leiko Gotoda, 72 páginas, R$ 27), me deu a certeza de estar dormindo no ponto. O livrinho, escrito em 1933, é um delicioso – e, paradoxalmente, luminoso – elogio…
Para não voltar das férias numa nota séria demais, que definitivamente não combinaria com meu estado de espírito hoje, aqui vai a história (acesso livre, em inglês) de Chris Baker, um escocês de 26 anos que lançou – na internet, onde mais? – um “projeto literário” com potencial para deixar muito autor aspirante morrendo de inveja. Por meio do site I Want A Word, qualquer pessoa pode comprar por uma libra esterlina (cerca de R$ 3,80) o direito de escolher uma das palavras que o sujeito, autor inédito, usará num romance. O plano é misturar dez mil palavras pagas com, suponho, outro tanto de graça para dar liga. “Um livro que consiste nas contribuições de 10 mil pessoas tem o potencial de ser algo muito especial”, diz Baker. A suposta graça, parece, é escolher termos bem difíceis para deixar o autor em apuros. Se tudo der certo, serão dez mil libras no bolso do cara, mas aposto que não dá: mesmo a estupidez humana tem limites. Até o momento, Baker só conseguiu vender 13 palavras. Mas ninguém deve desanimar. A Grande Web-Gincana Literária Mundial está só começando. Contos personalizados tatuados diretamente na pele do leitor, alguém?