Uma história não tem princípio nem fim: arbitrariamente, escolhe-se o momento vivido de onde se deve olhar para trás ou para a frente. Eu digo “escolhe-se” com o orgulho incorreto de um escritor profissional que tem sido elogiado – quando observado com seriedade – pela sua habilidade técnica, mas será que, de fato, escolho aquela noite escura e úmida de janeiro no Common, em 1946, a figura de Henry Miles atravessando, inclinada, o grande rio de chuva, ou são essas imagens que me escolhem? É conveniente e correto, segundo as regras do meu ofício, começar exatamente aqui, mas se eu tivesse acreditado então em um Deus, poderia também ter acreditado numa voz, sugerindo ao meu ouvido, “Fale com ele: ele ainda não viu você”. Eis o começo do fim, ou melhor, de “Fim de caso” (Record, 2000, 3ª. edição, tradução de Léa Viveiros de Castro), romance lançado em 1951 pelo escritor inglês Graham Greene (1904-1991).
Um livro infantil premiado, voltado para crianças de 9 a 12 anos, foi proibido em diversas escolas e bibliotecas americanas (notícia aqui, em inglês) porque contém a palavra “escroto”. Não o adjetivo brasileiro, mas o substantivo mesmo – trata-se de explicar o ponto exato da anatomia de um cachorro que uma cobra mordeu. Aqui entre nós: a palavra “escroto” é bem escrota. Mas proibi-la é muito mais.
Todo cuidado é pouco com essa máscara, viu, Vi? Não, sua boba, empresto com prazer porque você sabe que é a minha neta preferida, e além disso tem outras coisas, sinto um arrepio só de imaginar que a minha máscara negra veneziana nariguda vai se soltar por essas ruas outra vez depois de meio século guardada numa caixa de chapéu com a tampa afundada, devia andar triste, a coitadinha, olha só esses olhos vazados caídos, tão merencórios. Ah, esses olhinhos viram coisa, Vi. Claro que não era como agora, era melhor, era pior. Diferente: eu nunca fui de folia e nem podia ser, sempre fui certinha. Seu avô, sim, aquele se esbodegava inteiro, saía no sábado pra voltar na quarta-feira que nem na música da camisa listrada, só que a fantasia dele, infalível, era de arlequim – conhece a música da camisa listrada? Ainda toca isso? Em vez de tomar chá com torrada ele tomou parati, não, imagine se vai tocar. Agora é diferente, pior, melhor, depende. Por exemplo, quando você casar, duvido que agüente o que eu agüentei. Não agüenta, Vi, mudou demais. Para melhor, nesse ponto eu acho que foi para muito melhor, porque se o seu marido…
Bem, é um tipo de trabalho sedentário e introspectivo que se faz de pantufas, enfiando o dedo no nariz e coçando a bunda, você sozinho em seu escritório, e não há a menor possibilidade de ser de outra forma. Assim, qualquer um que entre nessa de olho em ganhos materiais e agitação mundana, eu não acredito que chegue muito longe. Surpresa: Martin Amis, 57 anos, um dos romancistas vivos mais importantes da Inglaterra – e provavelmente, com sua máscara midiática enfezada, o mais famoso – está sendo anunciado hoje pela Universidade de Manchester como seu novo professor de “escrita criativa”. Deve haver muito estudante apavorado, mas em entrevista ao “Guardian” (acesso livre, em inglês, aqui), Amis trata de tranqüilizá-los: Posso ser ácido na forma de escrever, mas não na forma como vivo. Seria muito difícil para mim dizer coisas cruéis a pessoas numa posição tão vulnerável. Imagino que eu vá ser surpreendentemente doce e gentil com eles. Uma das coisas que aprendi sobre ficção é que você realmente se expõe de uma forma que nenhum outro artista dito criativo faz. Na maioria das outras artes você está só exibindo um talento específico, de certa forma até na poesia, mas ao…
Olha o Joaquim Maria aqui de novo. Essa aí ao lado é a capa de uma edição bilíngüe (português-russo) de doze contos de Machado de Assis, inéditos na língua de Anton Tchecov, que acaba de ser lançada pelo Centro Lusófono Camões da Universidade Hertzen, de São Petersburgo. Organizado por Vadim Kopyl e com prefácio do professor brasileiro Adelto Gonçalves, o livro traz um elenco respeitável de histórias curtas: “Uns braços”, “O caso da vara”, “O espelho”, “Uma senhora”, “A senhora do Galvão”, “A sereníssima República”, “A igreja do Diabo”, “O enfermeiro”, “A causa secreta”, “D. Paula”, “Entre santos” e “Um apólogo”. Sentiu falta de “O alienista”, “Missa do galo”, “Um homem célebre”, “A cartomante”? Eu também. Mas Machado é um contista tão grande que o time fica poderoso mesmo com desfalques.
Um dos chavões preferidos da imprensa literária brasileira é discutir a discreta presença do futebol em nossa ficção. E o carnaval, clichê da “nacionalidade” tão forte quanto o velho ludopédio, será que está bem representado? À primeira vista, não. “O país do carnaval”, romance de estréia de Jorge Amado, de carnavalesco mesmo tem pouco mais que o nome. Os contos “Antes do baile verde”, de Lygia Fagundes Telles, e “A morte da porta-estandarte”, de Aníbal Machado, chegam mais perto da festa, mas mantendo um pé na vida e outro na morte. Também sombrio, “O bebê da tarlatana rosa”, de João do Rio, outra história curta, talvez entre mais um pouco no espírito da gandaia. Mas cabe à crônica “Batalha no Largo do Machado”, de Rubem Braga, ser, esta sim, uma brilhante tradução em prosa da ofegante epidemia. É claro que o gênero crônica, por sua natureza, oferece uma fartura de textos de carnaval, mas não acredito que algum deles chegue perto desse do Braga. Devo estar esquecendo títulos importantíssimos, com certeza. Infelizmente, nunca tive nas mãos a (esgotadíssima) “Antologia do carnaval”, de Wilson Louzada. Sendo este post uma obra aberta, espero que me corrijam. Mas mesmo assim o saldo tende…
O post deve iniciar com breve e superficial descrição do ambiente. Usar as palavras casa de minha avó, sombra da mangueira, calor abafado. Falar da quase felicidade que eu sentia por estar ali, lendo um livro, sem maiores preocupações. Talvez especular sobre a experiência de não suar apesar do calor, divagando sobre as possíveis causas do fenômeno e sobre o modo como ele, longe de representar incômodo, tornava tudo ainda mais estranhamente agradável. Tom neutro. Começa bem, depois melhora. Quem acha que blog não combina com prosa literária de qualidade precisa ler isso.
A autora nunca me interessou terrivelmente, mas comecei a ler seu diário de juventude com uma vaga curiosidade e fui até o fim. São cheias de reflexões como essas aí embaixo – cruas, nervosas, às vezes meio adolescentes, mas transpirando sinceridade – as anotações que a escritora e pensadora americana Susan Sontag (1933-2004) manteve de 1958 a 1966, basicamente entre Paris e Nova York, enquanto lutava para se inventar como escritora. Como atração colateral, vale a pena fingir por um momento que estamos lendo os posts de uma aspirante a escritora do século XXI: o estilo blogueiro já estava maduro há meio século, só faltava o meio. Uma tradução do diário de Susan Sontag acaba de ser publicada pela revista “Granta” em espanhol – acesso livre, em pdf, aqui. 31 de dezembro de 1958: Por que é importante escrever? Sobretudo por egoísmo, suponho. Porque quero ser esse personagem, uma escritora, e não porque haja algo que deva dizer. Mas por que não também por isso? Com um pouco de construção do ego – como mostra o fait accompli deste diário – emergirei lá na frente com a confiança de que eu (eu) tenho algo a dizer, algo que deve ser…
Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. E já que mencionei a sisudez da literatura contemporânea, aí vai o supra-sumo do contrário: o primeiro parágrafo do romance “A lua vem da Ásia”, lançado pelo grande Campos de Carvalho (1916-1998) em 1956 (José Olympio, Obra reunida, 2a. edição, 1995).
Eis um belo paradoxo. Em todas as áreas da vida britânica, a acusação de falta de humor é um insulto cruel; não ser engraçado é praticamente um pecado nacional. Mas para ser considerado um dos “romancistas de verdade” deste país, hoje, você tem que ser mortalmente sério. Estou começando a temer que haja algum insidioso Zeitgeist rolando, uma estranha sopa em que se unem os Tempos Difíceis em que vivemos, um malformado desejo de categorizar e regras subterrâneas que ninguém articula mas todos sabem que estão lá. (…) Com raras exceções, o clima literário agora é de solenidade implacável. Uma noção nebulosa serpenteia em torno do subconsciente do romancista como uma trepadeira: você precisa ser sério, senão nunca vai ser resenhado nos jornais importantes ou terá a menor chance de conquistar uma vaguinha na posteridade. Tive vontade de aplaudir de pé esse pequeno artigo (em inglês, acesso livre) publicado no blog de livros do “Guardian” por Tania Kindersley. Ela cita Jane Austen e Graham Greene como escritores sérios dotados de fino senso de humor, para não mencionar o mais obviamente cômico Evelyn Waugh. Acrescenta que Martin Amis, cansado de jamais ganhar prêmios com suas comédias sombrias, “agora escreve sobre os…
Do diário de J.K. Rowling em seu site, entrada de 6 de fevereiro, com modéstia apenas aparente: Charles Dickens expressou melhor do que eu conseguiria: “Talvez seja de escasso interesse para o leitor saber com que tristeza a pena é deposta após dois anos de labor da imaginação; ou como um Autor tem a sensação de estar abandonando uma porção de si mesmo ao mundo sombrio, quando um grupo de criaturas nascidas em seu cérebro se despede dele para sempre.” Ao que eu posso apenas suspirar, experimente 17 anos, Charles… O sétimo e último livro da série de Rowling, Harry Potter and the Deathly Hallows, será publicado no dia 21 de julho nos mercados britânico e americano. Via The New York Times.
No que toca à questão étnica abordada nos romances, pode-se constatar que, além de não ter se esquivado dos problemas que afetavam os afro-brasileiros, Machado fala de seus irmãos de cor como sujeitos marcados por traços indeléveis de humanidade e por um perfil que quase sempre os dignifica, apesar da posição secundária que ocupam nos enredos. Impõe-se destacar que essa ausência de protagonismo está em homologia com o papel social por eles desempenhado, caracterizado pela subalternidade da condição e pela redução a mera força de trabalho, como já demonstrou Gizêlda Melo do Nascimento (2002). Ainda assim, o escritor, se não os eleva a heróis épicos da raça ou a líderes quilombolas, o que de resto comprometeria a verossimilhança do universo citadino e burguês representado nos textos, também não os limita ao formato estreito advindo dos estereótipos dominantes no imaginário social do Segundo Reinado. O livro “Machado de Assis afro-descendente”, de Eduardo de Assis Duarte (Pallas/Crisálida, 288 páginas, preço a definir), professor de literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, supre uma lacuna nos estudos machadianos ao levantar na obra do gênio brasileiro os textos e trechos de textos que lidam de alguma forma com o problema da escravidão. A velha…
Sabe aquela prosa cortante? Aquele estilo contundente? O conto que é um soco na boca do estômago? O poema que é um tapa na cara do leitor? (Para não mencionar, por educação, o escritor que é um pé no saco?) Seus problemas acabaram. O blog Ao Mirante, Nelson! descobriu a solução – veja o vídeo aqui.
Seis dias atrás, um homem morreu em uma explosão à beira de uma estrada no norte de Wisconsin. Não houve testemunhas, mas parece que ele estava sentado na grama junto a seu carro estacionado quando a bomba que montava detonou por acidente. Segundo o relatório da perícia divulgado há pouco, o homem teve morte instantânea. Seu corpo explodiu em inúmeros pedacinhos, e fragmentos do seu cadáver foram encontrados a até quinze metros do local da explosão. Até hoje (4 de julho de 1990), ninguém parece ter a menor idéia de quem era o morto. Ninguém menos o narrador, é claro. E logo, se não abandonar o romance, o leitor poderá se juntar a ele. Tudo isso – para não mencionar a promessa, que será cumprida, de estudo ficcional sobre um tema que desde então só faz ficar mais atual e doloroso, o terrorismo – está contido nas linhas iniciais do excelente “Leviatã” (Companhia das Letras, 2001, tradução de Rubens Figueiredo), meu livro preferido de Paul Auster, lançado em 1992. Muito antes, portanto, de virar modismo entre intelectuais brasileiros espancar o escritor mais famoso do Brooklyn, como se ele fosse um escrevinhador chinfrim. Modismo gratuito, como quase todos, mas que parece…
Imagine um romance escrito nos moldes da Wikipedia, com cada autor contribuinte tendo o poder de pôr e tirar, escrever e cortar tanto o seu trabalho quanto o dos outros. O “projeto” – como o chamam com certa pompa seus criadores, gente da editora Penguin em parceria com uma universidade inglesa – leva o nome de A million penguins (“Um milhão de pingüins”) e está no ar desde quinta-feira, aqui. (Se a página não abrir logo, dê um tempo e tente de novo. Volta e meia, o serviço tem andado “temporariamente indisponível”, num sinal de sucesso maior que o esperado: em dois dias, o romance já chegou ao capítulo 7.) Não, claro que uma coisa dessas não tem a menor chance de dar certo num sentido, vamos dizer, estético. Mesmo tendo regras mais ou menos estritas e contando, como conta, com um time de “moderadores profissionais” escalado para zelar 24 horas por dia pela qualidade do material, editando a edição dos colaboradores, o resultado da empreitada tem tudo para ser pífio. O primeiro parágrafo provisório do romance – isto é, no momento em que escrevo – sugere que “pífio” talvez venha a se provar um adjetivo pálido. Vai uma tradução…
Machado de Assis, Jorge Amado, Clarice Lispector e Paulo Lins. Eis o eixo em torno do qual gira a história da literatura brasileira, segundo o artigo Destination: Brazil (acesso livre), publicado hoje por Anderson Tepper na seção “Guia Literário do Mundo” da boa revista eletrônica americana Salon. Eu sei que parece, mas não, com essa seqüência de nomes o autor não quis insinuar que a decadência das letras brasileiras é vertiginosa e irremediável. Será que, além de ser levado pelo cinema a superestimar a arte do autor de “Cidade de Deus”, ele fala muita bobagem? Uma ou outra, mas bem menos do que a média em artigos desse tipo. Diante da virtual invisibilidade internacional da nossa literatura, pode-se dizer que o texto é positivo à beça.
Ao invocar o sobrenatural, ele (Norman Mailer) pode parecer afirmar que as forças que moviam Hitler eram mais do que meramente criminosas; no entanto, o jovem Adolf ao qual ele dá vida nessas páginas não é satânico, nem mesmo demoníaco, mas apenas uma figura nefasta. Manter vivo o paradoxo infernal/banal, em toda a sua inescrutabilidade angustiante, talvez seja a maior das conquistas desta mui considerável contribuição à ficção histórica. O sul-africano J.M. Coetzee elogia (em inglês, acesso livre) no “New York Review of Books” o novo romance de Norman Mailer, The castle in the forest, sobre um jovem Adolf Hitler e seu, digamos, demônio da guarda. Vê no livro uma espécie de desafio ficcional à tese da “banalidade do mal” de Hannah Arendt. Interessante. Coetzee é, pelo menos aqui em casa, um escritor muito maior do que Mailer. Sua opinião tem peso.