João Antônio sentia a metamorfose do malandro em bandido ambicioso; a boemia é massacrada pela onipresença do mundo interesseiro dos negócios e das relações profissionais invasivas. A pobreza dos “desdentados” bate à porta dos condomínios particulares, com “a desconfiança e o medo massacrando”. Morro e asfalto não se encontram mais para fazer samba no Zicartola, encontram-se para a carnificina. Criminoso é otário que negocia com a polícia. A elite mostra-se mais egoísta e indiferente e a classe média, apenas uma correia de transmissão dos ideais elitistas, enganando a si mesma sobre a realidade brasileira. Apesar das reedições e da publicação de Dama do Encantado (96), o ostracismo. No controle de cartas enviadas, em 11 de outubro de 1996 marca o último destinatário – o compositor Ascendino Nogueira. Sofria de problema circulatório, como o pai. O corpo seria encontrado somente em 31 de outubro. O cheiro era insuportável. Ninguém tinha a chave do apartamento em Copacabana. Mesmo sem nenhuma tese original, é sucinto, abrangente e lúcido o texto sobre João Antônio (1937-1996) assinado por Francisco Quinteiro Pires no “Estadão” de hoje. O autor de “Malagueta, Perus e Bacanaço” teria completado 70 anos ontem. Nunca foi – vou confessar logo, desafiando a…
Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis. Que o antropólogo americano Buell Quain, meu amigo, morreu na noite de 2 de agosto de 1939, aos vinte e sete anos. Que se matou sem explicações aparentes, num ato intempestivo…
Alguém pode protestar dizendo que é ridículo decidir qual livro comprar com base num mero adjetivo. Eu concordo inteiramente. Mas deixe-me enfatizar que, se eu compro apenas livros que foram chamados de “assombrosos”, não compro todos os “livros assombrosos”. (?) Se há momentos em que eu temo que minha obsessão com a palavra “assombroso” me impeça de comprar um grande livro? Claro que sim. Mas a verdade é que, se ninguém descreve um livro como assombroso, ele provavelmente não é assombroso, e, se não é assombroso, quem precisa dele? Em artigo no “New York Times” (em inglês, mediante cadastro gratuito), o escritor Joe Queenan afirma ter encontrado um modo de lidar com o excesso de títulos postos no mercado e com o terreno pantanoso – sim, também lá – da crítica e da imprensa literária: há anos só compra livros que pelo menos um resenhista tenha brindado com o adjetivo “assombroso” (astonishing). Talvez não custe acrescentar que o texto é um exercício de ironia.
Antes de mais nada – sim, eu acho que os livros de papel são eternos. Enquanto houver ser humano, haverá quem os leia. Talvez até depois. Isso não elimina o fato de que uma engenhoca tipo iPod dedicada a livros está demorando a aparecer. Eu, pelo menos, não tenho a menor dúvida de que aparecerá. A questão é: será que o recém-lançado Sony Reader é essa máquina? Consta que o aparelho tem grandes vantagens sobre os desajeitados leitores eletrônicos do passado recente. Sobretudo pela tela não iluminada, fosca, proporcionada pela tecnologia da tinta eletrônica – ou papel eletrônico – desenvolvida pela empresa E-Ink. A coisa tem problemas também, parece, sobretudo de navegação. Mas mede o mesmo que um livro fino e permite aquela decisão revolucionária que os fãs do iPod conhecem bem: na dúvida sobre qual título levar para ler nas férias, que tal a biblioteca inteira? Está sendo vendido no site da Sony por US$ 350. O que sei é que, se não for o Reader a ocupar essa vaga, será outro. Há empresas trabalhando com a tinta eletrônica em suportes flexíveis, mais próximos do papel. Aguardemos.
Todo mundo pode pedir doações para as editoras, afinal, o pedido “é para divulgar a literatura, a cultura”, e por aí vai. E dá-lhe pedidos de jornalistas, escritores, igrejas, ONGs, bibliotecas, penitenciárias, associação de amigos de bairro, cursinhos e por aí afora. Uma festa! Por que será que essas mesmas entidades não pedem um carro zerinho pra Volks quando ela lança um novo modelo? Por que não um apartamento pra Coelho da Fonseca em um novo empreendimento? Ou um “quarto completo” pras Casas Bahia? Será que se eu fechar a Papagaio e abrir um bar muita gente vai pedir um trago de graça? Ou vai aparecer alguma entidade pedindo uma porção de queijo com um pouquinho de azeite e uma pitada de orégano? Dá o que pensar o divertido desabafo do editor Sérgio Pinto de Almeida, da Papagaio, publicado hoje no site Leia Livro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, sob o título “Livro custa caro (também para as editoras)”. A motivação foi o pedido de doação vindo de uma próspera faculdade particular. Tudo bem que o pessoal adore uma boca-livro – o trocadilho é meu. O problema é a sensação de que de livro, mesmo, não…
Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: “Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado.” Penso freqüentemente nessa imagem que só eu ainda vejo e sobre a qual jamais falei a alguém. Está sempre lá no mesmo silêncio, maravilhosa. É entre todas a que me faz gostar de mim, na qual me reconheço, a que me encanta. Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais. Assim, de forma bela e estranha, começa o belo e estranho “O amante” (Nova Fronteira, 1985, tradução de Aulydes Soares Rodrigues), pequeno – na extensão – romance memorialístico com o qual Marguerite Duras (1914-1996) conquistou o prêmio Goncourt de 1984 e o sucesso comercial em escala planetária.
Existem coisas que a gente só faz quando está sozinho. Caminhei até a estante reservada às primeiras edições dos meus romances e de suas traduções e acariciei as lombadas tão conhecidas. Depois, como se sob o efeito de uma compulsão irresistível, retirei, em primeiro lugar, o novo livro e, mais tarde, todos os outros, para dar uma espiada em certas passagens. No fim, passei a noite inteira em minha poltrona, além de todo o dia seguinte, até boa parte da noite, sem quase nenhuma interrupção, embora suspeitasse estar com febre. Reli toda a minha produção. A certa altura, sentenças inteiras que eu tinha escrito pareciam se desintegrar como as figuras num caleidoscópio, quando a gente gira o tubo, só que minhas palavras não se reagrupavam nem se fundiam em novas maravilhas de cor e desenho. Jaziam na página como cacos vulgares e odiosos de vidro. A conclusão a que cheguei resumiu-se ao seguinte: nenhum dos meus livros, nem o novo romance nem qualquer um dos outros que escrevi antes, era muito bom. Com certeza, nenhum deles tinha o mérito literário que a crítica lhe atribuíra. Nem mesmo meu segundo romance, o que ganhou todos os prêmios e sobre o qual…
Dois obituários brilhantes. O da agente literária alemã Ray-Güde Mertin, publicado ontem aqui mesmo em NoMínimo. Assinado por Paulo Roberto Pires, é informativo e emocionado na medida certa da enorme lacuna que ela deixa. E, em vídeo, o do cronista de humor americano Art Buchwald, no site do “New York Times”, seção A última palavra, que traz o próprio morto dizendo como quer ser lembrado. Começa assim: “Olá, sou Art Buchwald e acabo de morrer”.
Não tenha dúvida: o ato de escrever era infinitamente mais complicado (e sobretudo mais moroso) antigamente. O que não impediu que alguns praticantes lhe acrescentassem novos estorvos – que, para eles, deduzo, não eram propriamente estorvos; antes, um estimulante. Assim como o visconde de Valmont, o libertino personagem de Chordelos de Laclos, seu contemporâneo Voltaire, por exemplo, adorava redigir cartas e escritos menos íntimos sobre as costas nuas de suas amantes. Tão singular mesa de trabalho não lhe afetou a criatividade. Nem a saúde; muito pelo contrário: Voltaire produziu bastante e chegou aos 84 anos. É de se presumir que, ao rabiscar palavras sobre o dorso desnudo de uma dama, Voltaire vez por outra também estivesse como Deus o criou. Nisso não foi um inovador. Alguns gregos da Antiguidade já haviam feito a mesma coisa, não raro apoiando-se (e inspirando-se) na região glútea de um efebo. “Com a bunda de fora, eu nem sequer anoto um número de telefone”, revelou Truman Capote, que, apesar de tudo, não gostava de misturar os canais. Para ele, havia a hora de deitar com os efebos e a hora de deitar para escrever. “Sou um escritor completamente horizontal”, definiu, numa entrevista, citando Mark Twain…
O site da Harvard University Press oferece gratuitamente arquivos de áudio com trechos de duas das seis palestras proferidas na universidade americana por Jorge Luis Borges em 1967-68, no ciclo Norton Lectures, sob o título This craft of verse. Para melhor temperar o acepipe, a HUP avisa que só recentemente as gravações foram descobertas nos arquivos da universidade. A qualidade do som é muito boa. Ali podemos constatar tanto o conhecido talento dramático do escritor argentino, com seu histrionismo contido, quanto um surpreendente – em autor famoso por sua anglofilia – sotaque carregado. Em resumo: imperdível para borgianos e divertido para curiosos em geral. Quem se interessar pelo áudio completo das palestras pode comprar o CD no próprio site. As conferências de Borges no ciclo Norton foram publicadas no Brasil como “Esse ofício do verso” (Companhia das Letras, 2000). Via El Boomeran(g).
Grandes estilos representam a interface entre “mundo” e “eu”, e é na própria noção de ser tal interface diferente da nossa em espécie e qualidade que reside o poder da ficção. Escritores fracassam quando essa interface é feita sob medida para nossas necessidades, quando agencia as generalidades do momento, quando nos oferece um mundo que sabe que aceitaremos, por já tê-lo visto na televisão. A má literatura nada faz, nada muda, não educa as emoções, não redesenha circuitos interiores – fechamos o livro com a mesma confiança metafísica na universalidade de nossa própria interface que tínhamos ao abri-lo. Mas a grande literatura, esta o obriga a se submeter à sua visão. Você passa a manhã lendo Tchecov e, de tarde, dando uma volta na vizinhança, o mundo se tornou tchecoviano (…). Nunca li Zadie Smith, uma das mais festejadas jovens escritoras inglesas, que teve seus dois primeiros romances, “Dentes brancos” e “O caçador de autógrafos”, lançados no Brasil pela Companhia das Letras. Admito que, quando a imprensa começa a bater demais na tecla do “jovem gênio”, desconfio de marquetagem – quase sempre com razão. Mas com este longo e original ensaio sobre o que vem a ser literatura (acesso livre,…
Tempo físico e mental para ler “As mil e uma noites”, “Dom Quixote”, “A comédia humana”, “Guerra e paz”, “Em busca do tempo perdido”, “O quarteto de Alexandria”, “O Senhor dos Anéis”, “O tempo e o vento”, as aventuras completas de Maigret, as obras reunidas de Pynchon, toda a saga de Sandman, Mônica e Cebolinha unabridged – todos estes, um ou outro deles, nenhum, desde que sem sombra daquela sensação de correr contra o tempo para cumprir tarefas. Pelo puro prazer de pular fora do tempo. É o que deseja o Todoprosa a todos os seus leitores em 2007, aproveitando o mote para avisar que vai dar um tempo: o blog volta a ser renovado dia 15 de janeiro. Até lá.
Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras), do qual publiquei um trecho em Primeira Mão aqui, não teve na imprensa literária brasileira a acolhida que merecia. Houve quem o condenasse a nota de colunão, depois se arrependesse. Isso talvez se explique em parte pela força impressionante de uma narrativa que vai para duzentos lados ao mesmo tempo, confundindo o leitor apegado a eixos mais fixos. Romance complexo e excessivo, estilhaçado mas coeso, trágico mas engraçadíssimo, a obra-prima desse chileno que morreu precocemente na Espanha em 2003 é povoada de dezenas de personagens, quase todos, curiosamente, poetas – e menos curiosamente, considerando que Bolaño viveu no país, mexicanos. Engajam-se em disputas às vezes surdas, às vezes escancaradas sobre qual seria a voz capaz de redimir, com seu canto, todo um continente desgraçado – o nosso. Ou estarão apenas atrás do ouro-de-tolo da glória? A ingenuidade dessa fé juvenil no poder da literatura é contrabalançada com folga por um desencanto de gelar a espinha, os dois pólos entre os quais vagam os “detetives” do título. Sua busca de romance metapolicial os leva a errar pelo mundo, arrastando, sempre um ou dois passos atrás, o leitor boquiaberto. Para mim, o livro…
Existe uma segunda vantagem em tentar acompanhar o turbilhão de lançamentos que comentei na nota abaixo: diante da tarefa de eleger os livros mais destacados do ano, basta pescar na memória aqueles que conseguiram fugir do campo gravitacional dessa algaravia-láctea, suspendendo a impaciência e a exasperação da leitura para instaurar seu próprio tempo. Ah, o critério é subjetivo? Evidente que é. O Todoprosa nunca foi outra coisa. (Existe mesmo quem seja?) Os títulos à altura da façanha não foram tantos assim. Em meio ao borrão de velocidade que Thomas de Quincey, com uma argúcia que soa deliciosamente ingênua nestes tempos eletrônicos, identificou no futuro da humanidade ao contemplar em meados do século XIX a carruagem do correio inglês, os livros que carregam suas próprias cápsulas de tempo flutuam nítidos na memória do leitor que leu muito, leu demais, mas ainda se recusa a abrir mão do prazer como princípio básico da brincadeira. Não houve livro brasileiro de ficção que eu tenha lido com mais gosto este ano do que Mãos de Cavalo (Companhia das Letras), de Daniel Galera, resenhado na época aqui. Não estou dizendo que seja uma obra-prima, uma obra irretocável. Uma leitura ranzinza identifica nele pelo menos um…
Em 2006 eu li muito, talvez nunca tenha lido tanto. Não é uma experiência de todo positiva. Ler por obrigação, tentando acompanhar o ritmo cada vez mais desembestado dos lançamentos, deve trair algum princípio formador do gosto pela leitura, desses que ficaram perdidos na pré-história da vida adulta. Tem algo de heresia nessa exasperação, nessa velocidade, e outro tanto de mau gosto e barbárie. Não me queixo. É até possível – embora por enquanto seja apenas uma suspeita a ser ponderada com calma em 2007, eis mais uma resolução para a lista – que tal modo de ler tenha a virtude de reproduzir numa escala individual a aceleração do fluxo de informações que é uma marca do nosso tempo, com todos os penduricalhos da diluição geral dos sentidos, da atenção curta, da impaciência do leitor etc. E por que isso seria uma virtude? Sei lá – porque mergulhar de forma suicida no Zeitgeist deve servir para alguma coisa. Nem que seja para descobrir onde fica o botão que desliga essa joça.
“Mestre da ficção auto-reflexiva”, assim já se chamou Vladimir Nabokov (São Petersburgo, 1890-Montreux, Suíça, 1977). A verdade é que este escritor genial que estava convencido de o ser criou um estilo que, se com certeza é único, paradoxalmente fecundou de maneira extensa a narrativa norte-americana que não depende exclusivamente do realismo. Mesmo assim, Nabokov é um detalhista consumado; a quantidade de gestos, trejeitos e outras coisas extraídas da realidade que utiliza é impressionante; verdadeiramente fascinante é o modo pelo qual as transmuta em literatura, porque é tão minucioso ao selecionar o que seu olhar observa como ao transpor tudo isso para o território da imaginação. O constante fluxo de imagens em sua prosa é resultado de uma poderosa reflexão sobre as qualidades expressivas da linguagem, pois, como assinala seu biógrafo com acerto, “só quando a mente tenta olhar além da generalização ou do lugar-comum as coisas começam de verdade (o grifo é meu) a se tornar reais, individuais, detalhadas, diferenciadas umas das outras”. O melhor realismo seleciona, para o imitar, o que considera significativo da realidade; Nabokov dá a sensação de operar de modo inverso, isto é: só aceita a realidade que sua imaginação iluminou previamente; sua magia – ele…
O “conto de Natal” é um subgênero mortífero. Se for muito natalino, dificilmente escapa de ser má literatura. Se não for nada natalino, pode até ser boa literatura, mas conto de Natal não mais será. Por isso, de vez em quando nessa época eu releio e renovo minha admiração por “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles, o melhor conto natalino que conheço, publicado no livro “Antes do baile verde” (1970). Para ler ou reler, é só clicar aqui. Bom Natal para todos.