Quando li a notícia de que havia uma suspeita de plágio – sem processo na justiça – pairando sobre um livro do inglês Ian McEwan, e que este livro era nada menos que o magnífico “Reparação” (Companhia das Letras, 2002, tradução de Paulo Henriques Britto), minha primeira reação foi decidir que não trataria do assunto aqui. Factóide, pensei, ao saber que a acusação se baseava em semelhanças entre apenas uma das quatro partes do romance e um livro de memórias lançado em 1977. Mais especificamente, entre algumas cenas passadas num hospital de Londres durante a Segunda Guerra, onde Briony, a protagonista, trabalha como enfermeira, e um livro chamado No time for romance, de Lucilla Andrews, que morreu mês passado. Este livro – o detalhe é fundamental – foi citado por McEwan como uma importante fonte de pesquisa nos agradecimentos que constam da edição inglesa de “Reparação” (limados da brasileira). Tudo isso é dito no artigo em que o escritor se explicou, a meu ver de forma convincente, no “Guardian” da última segunda-feira. Caso encerrado, então? Acho que não. O que me faz entrar finalmente no assunto não é o debate sobre a legitimidade dos “empréstimos” literários e o que os…
O acaso promove uma espécie de festival Franz Kafka (1883-1924) nas livrarias brasileiras: chegam ao mercado ao mesmo tempo dois lançamentos que trazem abordagens opostas, embora igualmente apaixonadas, do escritor tcheco. Uma é pop-cabeça e se destina a iniciantes em sua obra. A outra, papo-cabeça, só será devidamente apreciada por quem já leu tudo ou quase tudo escrito por esse atormentado judeu de Praga, um dos maiores escritores do século XX. “Kafka de Crumb” (Relume Dumará, tradução José Gradel, 176 páginas, R$ 34,90) é uma parceria do famoso desenhista de Fritz the Cat com o escritor David Zane Mairowitz. O título original do livro, Introducing Kafka, deixa clara sua intenção: apresentar ao leitor em linhas gerais o universo do autor, um mundo entendido aqui como mistura de vida, contexto histórico-cultural e obra. Assim, a pequena biografia ilustrada de Franz é entremeada de breves adaptações simplificadas de seus principais livros. Apontar o dedo em riste para o que tem de superficial um livro desse tipo seria fácil, mas tolo. “Kafka de Crumb” é saboroso até para kafkianos cascudos. Parte de seu mérito funda-se no texto de Mairowitz, que consegue ser sucinto e didático sem subestimar a inteligência do leitor. Mas o…
O repórter Wilson Tosta conta no “Estadão” deste fim de semana que, segundo números do IBGE, a presença da internet avança no Brasil enquanto encolhe a das livrarias. A parcela de municípios servidos por provedores de acesso à rede passou de 16,4%, em 1999, para 46%, em 2005. Já a de cidades que têm pelo menos uma livraria encolheu, no mesmo período, de 35,5% para 30,93%. O levantamento traz notícias de outros altos e baixos da paisagem cultural brasileira, do bom desempenho das bibliotecas públicas ao panorama desolador das salas de cinema. Acesso livre ao texto aqui.
Não não. Papel, não. Ninguém vai falar de papel aqui. Não é coisa que se fale. Papel. Mas já reparou como tem papel por aí, espalhado, empilhado, grampeado, no mundo inteiro, um mundo de papel. Olha bem. Papel de parede, lenço de papel, papel-moeda, toda hora a gente está pegando ou olhando para um papel. Que nem você aí parado. E não precisa nem se mexer porque é aqui perto, bem pertinho, nessa página mesmo, que tem uma pessoa a um passo e a poucas páginas da maior complicação da sua vida por causa de um punhadinho bobo de papel. Não conheço muita gente que concorde comigo, mas lamento que Rubens Figueiredo tenha abandonado tão definitivamente o estilo efervescente de seus três primeiros livros, “O mistério da samambaia bailarina”, “Essa maldita farinha” e “A festa do milênio” – em que brincava desvairadamente com a linguagem em farsas rebuscadas e divertidíssimas –, para se dedicar aos meios-tons melancólicos de obras como “As palavras secretas”, “Barco a seco” e “Contos de Pedro”. Sim, foi esta segunda fase, sem dúvida competente, que tornou Rubens respeitado pela crítica brasileira. Mas eu, que sempre tive medo de confundir seriedade com sisudez, confesso sentir falta de…
Philip Roth e John Updike, sem surpresa nenhuma, deram as caras. Thomas Pynchon e Monica Ali também, embora tenham merecido resenhas bem menos que entusiasmadas ? indicando que na seleção dos ?cem livros notáveis do ano? o julgamento propriamente literário não ocupou o centro do quadro. Novos nomes? Claro: Gary Shteyngart, Nell Freudenberger, Marisha Pessl? Não surpreende que quase todo mundo tenha o inglês como primeira língua na lista de livros do ano (mediante cadastro gratuito) do ?New York Times?, escolhidos entre os que foram resenhados pelo jornal desde dezembro do ano passado em duas categorias, ficção & poesia e não-ficção. Estamos falando, afinal, de um país que chama um campeonato esportivo nacional de World Series. Kiran Desai, a indiana que ganhou o Man Booker, não chega a ser uma das exceções que confirmam a regra: mora nos EUA desde a adolescência. É meio incômodo ? e provavelmente sintomático do isolacionismo da era Bush, por mais que o NYT se oponha a ela ? que ?o mundo lá fora? não vá muito além de um Michel Houellebecq aqui, uma Irène Némirovsky acolá. Com as migalhas que caem da mesa, esboça-se a nova geopolítica literária vista do Hemisfério Norte. A África…
Está ficando monótono. Depois de faturar o Jabuti, o romancista amazonense Milton Hatoum, autor de “Cinzas do Norte”, foi anunciado esta noite, em cerimônia realizada em São Paulo, como o grande vencedor do 4o Prêmio Portugal Telecom, o mais importante da literatura brasileira, no valor de R$ 100 mil. Milton, ficcionista de mão cheia, merece os prêmios em série. A biodiversidade cultural brasileira, talvez não. A repetição lembra o caso recente do americano Jonathan Littell, cujo “Les Bienveillantes” ganhou na França, quase no mesmo fôlego, o grande prêmio de romance da Académie Française e o Goncourt. Em segundo lugar no Portugal Telecom (R$ 35 mil) ficou o poeta Alberto Martins, autor de “História dos ossos”. Em terceiro (R$ 15 mil), Ricardo Lísias, pelo romance “Duas praças”. Leia a notícia da Agência Estado aqui.
Numa oficina literária, recentemente, todos fomos instados a levar nosso livro favorito. Íamos balançando a cabeça, sabidos, à medida que desfilavam os suspeitos de sempre: Orwell, Waugh, McEwan, ?O guia do mochileiro das galáxias?. E então alguém brandiu ?O alquimista?, de Paulo Coelho. É um bom livro para ler quando se está pensando em mudar de vida, disse sua defensora. Devo confessar logo de cara que ?O alquimista? não funciona para mim: não consigo pensar numa razão para alguém sequer terminar de lê-lo, muito menos para elegê-lo seu livro favorito. Mas, pondo meu preconceito de lado, ainda assim me parece que ?ser um bom livro para ler quando se está pensando em mudar de vida? é uma estranha razão para se escolher um favorito (claro, talvez ela tivesse outros motivos também, mas esses me escaparam). A nota que Sarah Burnett lançou hoje no animado blog de livros do ?Guardian? tinha um propósito singelo: convocar o leitor a nomear seu próprio livro favorito na área de comentários (sim, o pessoal atendeu em peso). Mas eu, que acredito tanto em ?livro favorito? ? no singular ? quanto em Papai Noel, me diverti mesmo foi com a participação especial do nosso best-seller canarinho,…
“Sugerir que Jane Austen era lésbica ou Sófocles um travesti”, escreve o teórico da literatura Terry Eagleton, “é a forma encontrada por aqueles que não têm nada especialmente brilhante a dizer sobre a ironia ou o destino trágico para forçar sua entrada na cena literária. É um pouco como ganhar uma reputação de geógrafo eminente por achar o caminho do banheiro.” A literatura, em outras palavras, é grande demais, independente demais, importante demais para ser aprisionada nos domínios da vida. E de qualquer maneira, o que exatamente é tão importante na vida? O poeta John Ashbery uma vez me disse que nunca quis escrever sobre nenhum dos assuntos normais da vida porque “as mesmas coisas acontecem a todo mundo”. Há uma desconexão entre arte e vida que deveria nos pôr em alerta contra invasões morais ou psicológicas. Orwell se perguntou se nossos sentimentos em relação a Shakespeare seriam diferentes caso fosse descoberto que ele tinha o hábito de atacar menininhas sexualmente. Bem, seriam? A resposta, parece, é sim. O ótimo artigo de Bryan Appleyard no “Sunday Times” (acesso livre, em inglês, aqui) reflete sobre a fascinação do nosso tempo com a vida dos escritores, traduzida no boom das biografias, obras…
O melhor livro rubem-fonsequiano da temporada não é a coletânea de contos “Ela e outras mulheres” (Companhia das Letras, 176 páginas, R$ 34), a última e desvitalizada cria do autor de obras-primas como “A coleira do cão” e “Feliz ano novo”. É o romance “O que contei a Zveiter sobre sexo” (Record, 336 páginas, R$ 44,90), de um gaúcho radicado no Rio de Janeiro chamado Flávio Braga. O título é o que o livro de Braga tem de pior. Deve-se desconsiderá-lo. Além de palavroso e sem sal, esbarra no inconveniente de que o tal Zveiter, psicanalista a quem o narrador confessa suas aventuras, não chega a se constituir como personagem. Superado esse problema, o que o leitor encontra é um furioso, perturbador e engraçado romance picaresco em torno da compulsão sexual do priápico João. A comparação com Fonseca vai além da conveniência jornalística de juntar lançamentos que aliam afinidades temáticas e proximidade cronológica. Por acaso, quando saiu “Ela e outras mulheres”, eu tinha acabado de ler o livro de Braga e ainda refletia sobre o que ele tem de rubem-fonsequiano, no bom sentido – e tem muito. Mas só ao ler o novo do próprio Fonseca é que percebi o…
– Você não vem? – Vou já, mamãe. Mas não foi: nem iria nunca. “Coitada de mamãe”, pensou, numa tristeza maior. D. Margarida não sabia, não desconfiava de nada. Se soubesse, se pudesse imaginar! Disse baixinho: “Daqui a pouco estarei morta”. E repetiu, como se custasse a acreditar: “Estarei morta”. Assim, com a morte rondando o seio da família, começam as peripécias rocambolescas de “Núpcias de fogo” (Companhia das Letras), o quarto folhetim escrito por Nelson Rodrigues com o pseudônimo de Suzana Flag. “O Jornal” publicou-o em capítulos em 1948. A primeira edição em livro só saiu em 1997.
A lição não está no curso de Raimundo Carrero (veja nota abaixo) ou em qualquer outro: escritores devem ter cautela ao batizar personagens, especialmente os vilanescos. Em seu romance policial Johnny come home, lançado este ano, o inglês Jake Arnott imaginou um ex-cantor de big band e atual gângster chamado Tony Rocco. Foi processado por danos morais por um ex-cantor de big band – e, parece, atual cidadão de bem – chamado… adivinhou, Tony Rocco. Derrota para autor e editora, sem muito papo. Não há chance para a defesa em casos assim. A notícia inspira um artigo bem-humorado de John Sutherland no “Guardian” de hoje – acesso livre aqui, em inglês – sobre os riscos do batismo de personagens e as formas como diversos autores lidaram com o problema ao longo da história. Em nossas oficinas de literatura, o máximo que se costuma adiantar nesse terreno é a recomendação de evitar que nomes semelhantes se embaralhem numa mesma trama: nada de José Carlos disputando namoradas com seu amigo João Carlos – a menos, claro, que a idéia seja confundir o leitor irremediavelmente. Com a indústria dos danos morais em franca expansão no mundo inteiro, pode ter chegado a hora de…
Na 11a e última aula de sua oficina literária online no Portal Literal, o romancista pernambucano Raimundo Carrero, autor de “Os segredos da ficção” (Agir), faz um resumão do curso tomando como fio condutor a bibliografia comentada que usou nas aulas – aulas que também é possível revisitar no arquivo do site. O aproveitamento de “lições” desse tipo vai ser sempre idiossincrático, claro, ou não será aproveitamento algum. Há tópicos para assimilar, para refutar e para esquecer. No geral, porém, Carrero reflete com lucidez sobre o ofício de escrever ficção. Eis o ponto mais louvável de sua abordagem: o fato de tratar como ofício o que ofício é, sem dar bola para a mitologia da “irrefreável expressão do eu” que a era da internet, num curioso retrocesso, tanto reavivou. O autor de “Sombra severa” (Iluminuras) chega ao exagero de sustentar – como neste artigo publicado ano passado em NoMínimo, em resposta a uma crítica de Antonio Fernando Borges às novas gerações de escritores – que qualquer pessoa pode se tornar ficcionista, que talento é balela. Nesse ponto eu subo no caixote para discordar com a maior ênfase possível: acredito, como Nelson Rodrigues, que o sujeito precisa de talento até para…
A revista Time e a Publishers Weekly desrespeitaram o embargo imposto pela editora Penguin à publicação de resenhas sobre o novo livro de Thomas Pynchon, Against the day (“Contra o dia”) – veja nota anterior do Todoprosa aqui. Faltando uma semana para o lançamento nos Estados Unidos, dia 21, quando finalmente as resenhas estarão liberadas, as duas publicações puseram suas críticas na rua. A da “Time”, naquele estilo antiintelectualista característico, compara o peso literal do volume de 1.085 páginas com o de uma torradeira e conclui que esta leva vantagem: faz torradas. O rompimento do tradicional acordo de cavalheiros entre editora e imprensa está provocando algum alvoroço, comenta Richard Lea no blog de livros do “Guardian”. Compreensível. Pynchon, autor de “O arco-íris da gravidade”, é um recluso que não fala, não se deixa fotografar e publica um livro por década – com muitas centenas de páginas, para compensar a longa espera. A expectativa que o cerca é sempre grande. A “Time” e a “PW” só fizeram ampliá-la um pouco mais.
Nossa adorável, vulgar e humaníssima arte (o romance) está num de seus finais, se não estiver no fim. Mas isso não é motivo para não querer praticá-la, ou mesmo lê-la. De qualquer modo, como sacerdotes que já se esqueceram do sentido das preces que entoam, continuaremos por um bom tempo falando de livros e escrevendo livros, fingindo não notar, enquanto isso, que a igreja está vazia e os paroquianos foram embora para algum lugar a fim de venerar outros deuses, quem sabe em silêncio ou com novas palavras. A previsão pessimista sobre o futuro do romance é do escritor americano Gore Vidal, 81 anos, que está lançando nos Estados Unidos um novo livro de memórias, Point to point navigation: a memoir. Esse alarmismo soa batido em tempos internéticos, mas ganha frescor quando se sabe que o trecho faz parte de um ensaio, French letters, publicado em 1967. O prognóstico sombrio de Vidal é lembrado pelo resenhista Larry McMurtry em seu longo artigo (acesso livre, em inglês) sobre o novo livro do escritor para a última edição do “New York Review of Books”. Em 1967 eu tinha cinco anos. Hoje, aos 44, constato que a igreja, sem dúvida esvaziada, ainda tem…
Antes tenho de fazer a barba, disse ele, não quero ir ao hospital com uma barba de três dias, por favor, vá chamar o barbeiro, mora na esquina, é o senhor Manacés. Mas não temos tempo, senhor Pessoa, replicou a zeladora, o táxi já está na porta, seus amigos já chegaram e estão à sua espera na entrada. Não importa, respondeu ele, sempre há tempo. Ajeitou-se na poltronazinha onde o senhor Manacés habitualmente lhe fazia a barba e pôs-se a ler as poesias de Sá-Carneiro. O singelo início da novelinha “Os três últimos dias de Fernando Pessoa”, do italiano Antonio Tabucchi (Rocco, tradução de Roberta Barni, 1996), talvez não seja memorável para qualquer um. É para mim. E o que vem em seguida não é menos: no hospital, Pessoa é visitado por um séquito de heterônimos antes de morrer.
Sou um mestre da ficção. Sou também o maior escritor policial que jamais viveu. Sou para o romance policial, especificamente, o que Tolstói é para o romance russo e Beethoven para a música. A declaração é de James Ellroy (veja nota abaixo, sobre “Dália Negra”), em entrevista publicada domingo passado pela revista do “New York Times”. Que marra, hein? Um pouco dessa autoconfiança – um pouco só, senão mandam buscar a camisa-de-força – não faria mal a alguns dos escritores que andam se digladiando aqui no blog.
É boa a polêmica surgida entre Vinicius Jatobá e Gaston Gallimard na caixa de comentários da nota “Littell, Goncourt no bolso, é da Alfaguara”, aí embaixo. Boa, exaltada e complexa, mas no geral vejo uma dose maior de bom senso nos argumentos de Gaston. Tudo indica que a Alfaguara empregou bem seu dinheiro em Jonathan Littell – qualquer que seja o valor exato. Com a histeria internacional de público e crítica que cerca “As Benevolentes”, não é improvável que o investimento gere lucro. Quem sabe, até, muito lucro. Creio ser este o ponto fraco do retrato que Vinicius faz dos best-sellers – ralos de dinheiro que o autor brasileiro, se bem entendi, financia. Ora, best-sellers fazem dinheiro. É o que eles fazem, por definição. Exatamente de que forma isso seria ruim para o autor brasileiro aspirante? Na história da indústria editorial, pelo contrário, é recorrente que fenômenos comerciais financiem o ambiente de afluência em que bancar a publicação de meia dúzia de escritores duvidosos, “literários”, passa a ser encarado como um piquenique. Convém não esquecer que o negócio de livros é, como sempre foi, um negócio. Interessa ao ambiente intelectual como um todo que o negócio seja saudável. Comprar os…