“Só agora Amaro acredita que a primavera chegou: de sua janela vê Clarissa a brincar sob os pessegueiros floridos, mais floridos do que nunca, nutridos que foram desde o outono pelo adubo Duchão – pensou fertilização, pensou Duchão.” * “Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Nada que a agência de detetives Labanca & Irmãos não resolva em uma semana, com resultados comprovados e sigilo garantido.” * “Levantai-vos, heróis do Novo Mundo… Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! que chás espetaculares!” * “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral, essa gente que ainda não descobriu os poderes vivificantes do Tônico Maçaranduba.” * Leia também: Literatura brasileira com merchandising Literatura brasileira com merchandising (II)
– Tu tuíta? – Tuíto, e tu? – Tuíto, too. Publicado em 12/1/2010.
O escritor moveu o dedo indicador e apagou o último arquivo com o último vestígio de sua extensa obra inédita. Levantou-se e andou até a janela. Nono andar. Abriu a janela e, uma perna depois da outra, sentou-se no parapeito de frente para a rua, sem olhar para baixo. Olhou, em vez disso, para a janela do vizinho da esquerda. Esta tinha uma floreira onde adejava um beija-flor minúsculo, de bico longo e curvo, pretinho com umas pinceladas branco-fosforescentes na cauda. Voltou ao computador e iniciou imediatamente uma nova obra. Foi salvo por aquele passarinho. Um beija-flor minúsculo, de bico longo e curvo, escreveu. Uma obra voltada para a beleza. Esta foi igualmente extensa e também ficou inédita até sua morte por peritonite, trinta e sete anos depois, e por toda a posteridade.
Valério Schlondorf está relendo pela quinta vez a resenha que acabou de escrever. A caneta esferográfica em sua mão direita aplica rabiscos ocasionais nas folhas de papel sobre a mesa. Como sempre faz na hora de revisar seus escritos, tratou de imprimir este primeiro: apesar de jovem o bastante para ser considerado um dos valores da “nova geração de escritores brasileiros”, o capixaba Schlondorf é suficientemente velho para achar mais fácil flagrar deslizes, rimas indesejáveis, ideias inconsistentes e frases truncadas quando lê no papel, como se a fluidez da tela do computador mascarasse defeitos. Defeitos que, diga-se de passagem, ele não encontrou no romance que acaba de criticar. Nem para remédio: a resenha é francamente elogiosa. Seu problema passa a ser então moderar os elogios para, num paradoxo apenas aparente, deixá-los mais potentes. Sabe que as pessoas desconfiam de loas demasiado rasgadas e não é para menos – no ambiente de compadrio, hipocrisia e pouco apreço ao profissionalismo crítico em que chafurdam as letras nacionais, faz muito bem o leitor em se precaver. Assim, em vez de “divisor de águas na literatura brasileira contemporânea”, opta pela sobriedade firme de “livro fundamental na literatura brasileira contemporânea”. No lugar de “gênio”, vai…
Ele hesita, dedos de velho datilógrafo repousando sobre o asdfg e o çlkjh, polegares suspensos. Ele se vê hesitando, dedos de velho datilógrafo, emblema de sua idade, repousando com suavidade de pluma sobre o asdfg e o çlkjh do teclado negro, polegares suspensos a milímetros da barra de espaço. Ele decide escrever sobre se ver hesitando escrever, e então os dedos datilógrafos ganham uma súbita descarga elétrica e se põem a cutucar ritmicamente o teclado negro, polegares batendo surdão a intervalos impenetráveis. Ele sabe que os intervalos impenetráveis podem ser condizentes com algum padrão oculto, mas sabe também que, mesmo arbitrariamente, apontar esse padrão só será possível mais tarde – tarde demais? – em retrospecto, sendo por ora mais sábio se embalar na impenetrabilidade do sussurro produzido pelos pequenos tambores de plástico. Em sincronia com os comandos que os emblemas de sua idade percutem no teclado negro coberto de símbolos brancos, símbolos negros surgem na tela branca. Ele pára e lê os seis parágrafos que escreveu, incluindo este. Hesita mais uma vez. Torce os músculos faciais de tal modo que fica parecendo um nó de madeira, uma orelha, à luz hepática da tela onde a metáfora do nó precede sua…
A chamada Técnica do Deputado Nordestino (denominação em que há inegavelmente uma dose de preconceito, visto que políticos de qualquer latitude dela lançam mão), ou apenas TDN, é a maior aliada do escritor que precisa preencher determinado espaço com suas letrinhas em prazo curto – o que a torna especialmente valiosa para cronistas. Trata-se, em resumo, de uma longa reiteração, de um incansável repisar da mesma idéia, com variações vocabulares, sintáticas e imagísticas engenhosamente dispostas de modo a disfarçar o fato desolador de que o texto não vai a lugar nenhum, limitando-se a bater na mesma tecla e sovar uma única proposição até que ela amoleça, se liqüefaça, desmanche diante do leitor e possa ser sorvida com canudinho – mais ou menos, repare, como se faz aqui, agora. Sabe-se que o movimento é importante para o sucesso de um texto, que deve sair de um ponto A e chegar a um ponto B – ou G, ou X, conforme a capacidade do autor – por meio de um desdobramento dialético em que, não raro, cada passo corresponde a um parágrafo. Infelizmente, sabe-se também que isso dá um trabalho danado. O número de sinapses necessário para ligar esses pontos pode ser…
Foram as poucas linhas daquela carta de recusa que fizeram Lúcio Nareba, lenda da blogosfera literária nacional, perder a cabeça. Não fosse o veneno destilado – gratuitamente, gratuitamente! – pela famosa editora Bia Escarpin, o adorável Nareba estaria entre nós até hoje, esvaziando dois engradados e meio de cerveja por dia às custas de seus admiradores mais jovens, fumando pelos ouvidos, coçando a bunda agressivamente como lhe parecia apropriado aos gênios irascíveis e rabiscando nanocontos em guardanapos com nódoas de azeite. Mas aquela carta de recusa… Prezado Nareba, Abri seu manuscrito com grande interesse e, já na primeira página, fui ao delírio com a epígrafe. Genial mesmo, parabéns. Infelizmente, não consegui passar da epígrafe, motivo pelo qual sou obrigada a recusar a publicação de “Sou phodão & outras modéstias”. Como sinal de boa vontade, uma crítica construtiva: a epígrafe é genial mas precisa ser aprimorada. Os versos “Astros! noite! tempestades!/ Rolai das imensidades!/ Varrei os mares, tufão!…” são do Castro Alves e não do Chacal. Isso posto, não desista jamais. Ou desista, phoda-se. Bia Escarpin Gratuito, não? Mais que gratuito, humilhante. Típico dessa alta burguesia editorial insensível e decadente que aí está. Mesmo assim, o plano de estrangular Bia Escarpin…
– Tu tuíta? – Tuíto, e tu? – Tuíto, too.
Acaba de sair, com patrocínio da Kleenex, o aguardado “Manual do cafungador de livros: teoria e prática da resistência bibliósmica” (Nova Cosac Naify, 556 páginas, R$ 2.899,00), suma teológica do movimento surgido espontaneamente nas primeiras décadas do século 21, quando multidões em todo o mundo elegeram seus aparelhos olfativos o último bastião de resistência ao então nascente livro digital. Lançado, claro, apenas em edição de papel, o livro traz um apêndice que ensina os cafungadores calouros a reconhecer os 102 aromas básicos entre os milhares catalogados pela Bibliosmia (almíscar, tanino, funghi, repolho, rolha seca, poeira do sótão, poeira do porão, urina de traça, sêmen de baleia etc.) e relacioná-los aos gêneros literários dos quais emanam. Requinte supremo: o capítulo dedicado a cada eflúvio pode ser, além de lido, cheirado. O que é talvez obrigatório, se procederem as informações de que os cafungadores lêem cada vez menos, chegando a apresentar alta incidência de analfabetismo e cegueira total ou parcial – em compensação, sua exuberância olfatométrica humilha até a dos enólogos. Cheiro de sucesso editorial no ar.
Quando ele fez o velho sinal de pedir a conta rabiscando o ar, o garçom – um sujeito alto e branquelo, cabelos vermelhos cortados à máquina – se aproximou com um sorriso amplo e disse: – Como tu adivinhou que eu escrevo? E em vez da conta pôs em suas mãos um manuscrito pesado, com encadernação em espiral, chamado “Carnificina”. Antes de se retirar, acrescentou: – Sou um escritor gaúcho. Claro, ele pensou, nada mais apropriado. Você vai jantar numa churrascaria em São Paulo e o garçom é um escritor gaúcho. Estava decidido a não tomar o ansiolítico – não ainda. Atraiu outro garçom, desta vez tendo o cuidado de se expressar verbalmente: – A conta! Foi então que viu entrar na churrascaria aquele famoso escritor gaúcho de meia-idade, feio como poucos, acompanhado de uma mulher jovem e bonita. Ouviu quando o casal da mesa ao seu lado comentou: – Viu quem chegou? E discerniu no sussuro dos dois os nomes estrangeirados do escritor de meia-idade e de uma jovem escritora gaúcha emergente cuja cara ele não conhecia, embora, por dever de ofício, já a tivesse lido – não era má. Sem se dar conta, acompanhou os recém-chegados com os…
– Você vai passar o resto dos seus dias numa ilha deserta e pode levar um livro – ela diz. – Um só? – Um só. Qual você escolhe? Ele pensa um pouco. – Nenhum. – Como, nenhum? – Nenhum. Não vou ler, morto não lê. – Não – ela ri – quê isso, na ilha tem comida à vontade, você não morre. Só fica lá de bobeira, vivendo superbem e… lendo um livro. – Pode ser que você fique lá, lendo esse livro. Eu não fico porque me mato antes. – Se mata… – Mato, mato. Um livro só? Mil vezes a morte. Ela fica meio desconcertada porque é a primeira vez que um homem bagunça assim o seu teste, mas acaba decidindo que gostou, gostou muito, mais até do que se ele dissesse Estrela da vida inteira, Em busca do tempo perdido ou outra das respostas que ela costumava classificar como “certas”. Olhando para o homem do outro lado da mesa do restaurante, vê alguém que nunca viu antes. Pela primeira vez tem vontade de beijá-lo e pensa, sentindo uma moleza nos joelhos, que a noite promete. Enquanto isso, ele fica matutando que a idéia de um único…
Imagine o processo de fazer um livro como se estivéssemos na indústria automobilística. Só faz sentido fabricar um carro se for para ele andar, certo? O livro também precisa andar, quer dizer, cumprir sua própria função. E qual é a função do livro, me diz? Vender? Que vender! Se fazer ler, é óbvio. Ser lido. Esta é a viagem, o passeio. Carros precisam andar. Podem se destacar por serem velozes, lentos mas confiáveis, elegantes, econômicos, seguros, bonitos, espaçosos, baratinhos, o escambau. O mundo dos quatro-rodas, como o da literatura, é infinitamente vário. Mas uma característica todos os carros compartilham: precisam andar. Se não andam, não são carros. Não são nada. Sei. O problema é que, quando você vai construir o seu carro, ou seu carrinho de rolimã, como quiser, ou puder, você tem que fabricar peça por peça. Tem o design, naturalmente: o projeto geral, a cara do bicho, a distância entre eixos, a, digamos, proposta. Isso é importante e até divertido. O problema que pouca gente leva em conta é que, para o carro andar, tem também um monte de parafusos e porcas e bielas e rolamentos e correias e engrenagens e travas e juntas e molas e rebites…
O anacoluto, do grego anakólouthon, “o que não tem seqüência”, sem ele não vivemos. Quebra de estrutura, não exagera quem diz que o recurso está para a sintática como o non sequitur para a lógica. Eu, tanto faz que os conformistas do papai-e-mamãe gramatical riam de mim, apontando tropeços, gagueiras: o anacoluto para reproduzir na escrita o tumulto da vida não existe outro igual.
João Pontes, o escritor, olhou um dia pela janela ao lado de sua mesa de trabalho, no nono andar de um edifício na Gávea, e viu na cobertura do outro lado da rua, bem à sua frente, entre vasos de planta, uma mulher de Botero. A visão o desagradou, como o desagradavam as mulheres de Botero. Mas logo João a decompôs numa ilusão de folhas amarelas e vasos escuros, tela nublada pela lâmina de vidro que tudo recobria, com seus reflexos e sombras. Terminou por achar graça: a assombração era um incrível trompe-l’oeil produzido pelo acaso. Concentrou-se então no trabalho por mais meia hora – escrevia seu quinto romance, uma ficção histórica sobre o bando de Lampião – e, mal deixou o olho escapar pela janela atrás de um nome próprio, a palavra cardo, o adjetivo ressequido, lá estava a mulher de Botero outra vez. Era uma visão súbita, perfeita, de uma nitidez que dava náusea. E de novo, o que era estranho, João a recebeu com a surpresa de um tapa na cara. Não conseguia estar preparado para a mulher de Botero. Aquilo se repetiu por dias: olhar pela janela, tomar um susto ao ver a mulher de Botero…
Na Flip, a pergunta de alguém da platéia se dirige a todos os que dividem o palco – Arnaldo Bloch, Tatiana Salem Levy e eu. E ficamos nos entreolhando, sem saber o que responder. Não me lembro textualmente da pergunta, mas a idéia era saber o que nós, escritores, fazemos para que nosso texto não soe falso, para que o leitor acredite naquilo, para que tudo fique, digamos, plausível. (Não sei se o autor da pergunta tinha lido algum dos autores à sua frente e o considerava especialmente plausível. Gosto de imaginar que estivesse externando uma angústia antiga, nascida talvez da insatisfação com seus próprios escritos – mas isso não vem ao caso.) Depois de alguns segundos de constrangimento, não suportando mais o silêncio, peguei o microfone e comecei a falar a primeira coisa que me veio à cabeça: algo sobre a importância de rasgar, reescrever, enxugar, experimentar outro caminho. Mas a verdade é que, como meus companheiros de mesa, passei longe de captar o alcance da pergunta. Via nela apenas o lado ingênuo, óbvio, infantil, diante do qual o primeiro impulso é sacudir os ombros: “Ora, escrever é isso aí mesmo, o que mais posso dizer?” Só agora, meses…
A boa escrita é a atualização, que parece se dar no ato mesmo da leitura, de um certo potencial literário da linguagem, coisa obviamente intangível: um jogo desesperado, uma dança sedutora, tapeçaria vaporosa de ritmos, vírgulas, climas e sabedoria vocabular lançada sobre um relevo concreto de topoi, de pressupostos culturais e sensoriais que compõem o território compartilhado por escritor e leitor. Um relevo de lugares-comuns que a escrita ora aceita, acariciando, ora confronta, batendo de frente nas pedras – mas esta é outra conversa. O que importa destacar aqui é que toda essa algazarra se dá, como se acontecesse pela primeira vez, no ato mesmo da leitura, aparecendo antes de mais nada sob a forma de um comboio de palavras. E já que estamos no terreno do intangível: quanto mais charmoso esse comboio, quanto melhor a escrita, maior o fio, o gume com que fere a página naquele momento. É o fio, para não deixar de explorar a polissemia da palavra, que nos leva a passar de uma palavra à próxima, de uma frase às frases seguintes, e virar as páginas fascinados num mundo em que a cada dia há mais páginas, páginas excessivas, implorando nossa atenção como crianças malabaristas…
O romance tem barriga. Se perdê-la, vira novela. A palavra barriga está carregada de conotações negativas que, no entanto, não quero absolutamente expressar. Pois é a barriga que torna o romance superior à novela: a imperfeição faz dele o veículo perfeito para a imitação literária (não necessariamente realista, é claro) da vida. Diante da barriga morna e fértil do romance, a novela é, no máximo, uma top model: linda, mas meio anoréxica. Com ela temos um caso. Com o romance, casamos. Um tanto fria, mais propícia à expressão da literatura como puro jogo, a boa novela tem necessariamente a musculatura definida. Sabe o que está fazendo, planejou a vida inteira, jamais esbarra nos móveis, mas não consegue disfarçar um brilho cruel no fundo do olho. O romance, não: este pode ser sedentário, triste, doentio, de pele áspera e hálito azedo, mas também alegre, ativo, cheiroso, úmido, confortável. Pode ter quantas caras e jeitos tiverem as pessoas, mas nunca perde a mania de se perder um pouco nas encruzilhadas, marcar passo, tropeçar, pedir perdão. Um bom romance nos dá a ilusão de ser feito mais de vida que de literatura. É a barriga que o salva. Publicado em 30/3/2007. Aproveito para…