Enquanto o livro não vem, e para não fugir do assunto de ontem, reedito um Sobrescrito publicado em fevereiro do ano passado: Conheceram-se na oficina de ficção coordenada por um escritor de barba espessa e fama rala. O que primeiro chamou a atenção dela foi a qualidade do diálogo que ele conseguia escrever, vozes se cruzando com uma espontaneidade e um fio inacessíveis a ela, aos outros alunos e talvez até, quem sabe, ao professor. Já a atenção dele foi despertada primeiro por aquele olhar, o olhar morno e lento que ela ficava revezando entre ele e seus próprios pés, como se seu pudor viesse em ondas, enquanto o ouvia ler em voz alta o diálogo habilmente plagiado do Sabino. Foi depois desse dia, a princípio num espírito de retribuição mas logo com curiosidade genuína, que ele expandiu sua atenção dos olhos para o texto, e não demorou a se impressionar com a força dos adjetivos luxuriantes que ela espalhava aqui e ali numa narrativa de resto seca, feito plantas carnívoras de estufa em vasos perdidos no deserto. Não é incomum, especialmente em ambientes artificiais como o de uma oficina de ficção, que metáforas ganhem vida: ele logo descobriu que…
Caso raro de filantropo cultural na história do país, Lírio Stuckert, o hoje sessentão herdeiro do império de mineração Stuckert, sobe ao palco com passos lentos, caminha até o microfone instalado sobre um púlpito de madeira de lei e, varrendo o auditório lotado com um olhar vago, pigarreia meia dúzia de vezes. Após trinta anos de expectativa, o famoso Desafio Stuckert está prestes a chegar ao fim. Como sabe qualquer um que não viva em Marte, Lírio Stuckert deixou para trás em 1979, ao completar 33 anos, uma juventude boêmia rascunhada no submundo internacional das artes moderninhas – entre São Paulo, Paris, Nova York e Tóquio – para dedicar os anos mais produtivos de sua vida e uma gorda fração de sua fortuna à procura do mais valioso e mitológico dos diamantes: o Escritor Genial Inédito, criminosamente ignorado pelas editoras e perdido nos confins deste Brasilzão. Ao longo de três décadas, a Fundação Stuckert recebeu 1.528.777 originais que, garante seu patrono, foram todos lidos com lupa, linha a linha, por uma equipe eclética de especialistas e não-especialistas, de pós-doutores a diletantes renomados. E agora, diante de representantes de toda a imprensa nacional, Lírio Stuckert está finalmente anunciando o resultado da…
Parabéns, gafanhoto. Você passou por todas as fases básicas do curso com louvor, sem dúvida um dos melhores aspirantes que já tive o prazer de treinar. Obrigado, mestre. Principalmente na questão da voz narrativa, no domínio do discurso indireto livre, nos exercícios de stream of consciousness, embora, como eu já disse outras vezes, ainda precise melhorar nos diálogos e na caracterização dos personagens. Eu sei, mestre. Estou trabalhando nisso dia e noite. Vai com calma, o aperfeiçoamento vem com o tempo. Na boa, não tenho mais nada a ensinar a você no Módulo Básico. O que significa dizer que está na hora de entrarmos no Módulo Avançado. Jura, o misterioso Módulo Avançado? Já? Podemos começar hoje. Caramba, que sinistro! Desculpe se pareço nervoso, mestre. É que desde o início do curso o Módulo Avançado é uma tremenda caixa-preta, sempre me intrigou por que no currículo ele só aparece assim, M.A. Nem as matérias eu sei quais são. Porque só quem já tem alguma estrada pode acessar essa informação, rapaz. Por acaso deixam um médico residente fazer cirurgia cerebral? O risco de usar mal as ferramentas do Módulo Avançado é enorme. Entendo. E que ferramentas são essas? Um pacote gigantesco de…
Meu querido Zeca, Por ocasião de teu aniversário de dúzia, ocasião tão venturosa quão promissora, endereço-te algumas palavras repletas das mais puras intenções. Teu bisavô não dura um ano; quando muito dois, se calhar, como imagino que saibas. Mas não transporei o Aqueronte naquela barca fatal sem antes deixar-te nesta margem um saquinho com as parcas pepitas que – garimpeiro inábil que fui, mas de longuíssimo curso – me foi dado amealhar. Pois não andam teus pais exultando diante do talento bruto que vislumbram em teus primeiros esforços de expressão literária? Perdoa este velho tão velho, para quem a velhice já é eufemismo: pouco entendo do mundo contemporâneo. Contam-me que pertences a um grupo de vanguardistas precoces chamado, creio, MSN, ou outra dessas siglas que o Zeitgeist favorece. Não sei o que isso possa significar em termos de filiação estética, e confesso que o exemplo textual com que meus netos pimpões ilustraram seu argumento carecia de nexo; talvez lhe faltasse uma página, ou vinte letras, e certamente faltava revisão; será isso, ou meus óculos andam vencidos. Mas pouco se me dá, Zequinha. Só me importa que, tendo submetido por toda a vida esta carcaça e esta moringa à faina inconsútil…
Saudação, amigo de internet! Eu é Sr. Kumbundu Wahaha, um filho de extinto ilustre escritor Sr. Dr. Kuagananga Wahaha, maior de Nigéria. Meu pai tem sido assassinado em Dezembro passado ano, 2008, por fanáticos suportadores de ex-amigo então inimigo de letras, Sr. Tutu T. Pendengas, ilustre não este, bem bastardo como uma questão de fato. A razão que eu escreve, amigo de internet, meu extinto querido pai tem deixado soma de US$ 2.993.345.558,20 (dois bilhão, novecentos noventa três milhão, trezentos quarenta cinco mil, quinhentos cinquenta oito dólares norte-americanos, mais vinte centavos) em conta de ele, fortuna de direitos de cópia de melhor-vendido de ele, “Marfins sangrentos”, de Kuagananga Wahaha. Dinheiro que tem tido bancário bloqueio devido explosiva política situação em Nigéria. Ajuda nós! Caso recebemos número de conta de você em banco, senha, nome completo, eu faz hoje transferência bancária de US$ 2.993.345.558,20, via Switzerland, para amigo de internet! Depois Sr. devolve fortuna e conserva para próprio uso 20% do total valor, isto é, US$ 598.669.111,64 (quinhentos noventa oito milhão, seiscentos sessenta nove mil, cento onze dólares norte-americanos, mais sessenta quatro centavos) por modos de compensando incômodo. Eu, Sr. Kumbundu Wahaha, conta com amizade de Sr. amigo e completa discrição….
Ela deu um meio sorriso de olhos baixos, como se tentasse ler desígnios superiores nos volteios dos pedaços de limão esmagados no fundo do copo, e disse que a maior ofensa que se costuma fazer às de sua espécie é supor como móvel de sua busca sem fim uma ilusão vizinha da loucura ou da imbecilidade – a de que os homens que dedicam a vida a simular outras vidas por escrito são mais gostosos ou tesudos, mais misteriosos ou desafiadores do que os mortais comuns. O meio sorriso virou uma gargalhada seca, tão áspera e alta que metade do bar se voltou na nossa direção, inclusive todos os garçons. Ela aproveitou para erguer o copo vazio com a mão esquerda e bater nele com a unha comprida do indicador direito, esmalte carmim, três pancadinhas que tilintaram longamente dentro do segundo de silêncio instaurado por seu riso. O garçom mais próximo assentiu com a cabeça e fez meia-volta. Se houver alguma relação, ela prosseguiu, é bem o contrário, escritores tendem a ser piores de cama do que a média dos homens: mais broxas, mais ejaculadores precoces, além de mais inseguros, mais ciumentos, mentirosos, desleais, descuidados, caspentos, fedidos, barrigudos, egoístas, frios,…
Em 658, o pequeno reino de Lu Xian Xu, o Sábio, ao norte do Rio da Fertilidade, foi invadido pelos mongóis. Os mongóis eram terríveis. Depois de reduzirem a papa os campos de arroz do povo de Xian Xu, queimaram suas vilas, uma a uma, e chegaram por fim à cidade real. A bela Tsuido Hen consistia apenas no palácio do monarca cercado de ruas labirínticas, e os mongóis entraram pisoteando com seus cavalos peludos o labirinto, que era de papel e bambu, e foram direto ao palácio. Puseram-se então a destruí-lo, como haviam feito com colheita, crianças, adultos, cidades, esperança. Enquanto seu palácio ardia, Xian Xu, o Sábio, entrou nos aposentos de suas onze esposas e, anunciando a derrota, ordenou que o seguissem. Pegariam a passagem secreta – a última esperança. Arrastando aquela cauda de mulheres assustadas, Xian Xu venceu o corredor com passos apressados e abriu de par em par as portas do salão abobadado da Grande Biblioteca, um aposento de vitrais altos e piso de mármore onde se assentava o xadrez das prateleiras repletas de arcanos teológicos e criacionistas, poéticos e terapêuticos, morais, filosóficos, míticos e cômicos. O Sábio avistou então Suri Kuoda, o jovem bibliotecário, espanando…
Venho em nome de nossa empresa, a Write Right, oferecer nossos serviços diferenciados de soluções literárias com foco customizado nas necessidades de escritores situados em qualquer nicho mercadológico/estético/igrejístico. Dos minicontos aguadinhos aos grandes épicos pedregosos, da poesia formalista altamente ilegível às letras de música dããã de axé e pagode, nosso compromisso é agregar o máximo de valor às suas criações/diluições/cópias, provendo soluções formais imediatas de eficácia comprovada e gerando contatos de negócio (57 resenhistas na folha de pagamento!) que oportunizarão um aumento significativo de sua satisfação autoral e de seu prestígio social, sem perder de vista a maximização do market share de seu produto e a fidelização eterna de seus clientes/leitores/otários. Se você quer apenas escrever, não precisa da Write Right. Mas se quer ESCREVER SEU NOME NA HISTÓRIA, está esperando o quê, ô?
Quando decidiu que seria escritora, Maria Cândida descobriu que, sem saber, já vinha se preparando nos últimos anos para aquele momento: estavam a postos o ouvido bisbilhoteiro, o olho clínico, aqueles surtos mórbidos de introspecção a cada café-da-manhã, o cabelo mais curto de um lado que do outro, os óculos de antiquário, as camisetas pretas puídas, o desapego a modismos e coisas materiais. Aí, como já tinha computador, foi só descolar um bom corretor ortográfico em versão pirata e espetar em sua parede de cortiça uma coleção de frases sobre a arte de escrever, com aquela genial da Dorothy Parker encabeçando a lista, e esperar. Quando a espera começou a se prolongar além do razoável, Maria Cândida acrescentou à sua escrivaninha um porta-lápis com o logo da Granta e um exemplar de The art of fiction, de John Gardner, que, mesmo sem saber inglês, passou a abrir em páginas aleatórias e folhear preguiçosamente sempre que ameaçava se impacientar. Depois comprou uma cadeira de escritório com ajuste de altura, um pôster comemorativo dos 50 anos de O encontro marcado, duas dúzias de lápis coloridos, uma coleção de cadernos de capa dura, uma luminária verde-água totally anos 50, uma caneca de chá…
“Das mais surpreendentes é a vida de tal faca: faca, ou qualquer metáfora, pode ser cultivada. E mais surpreendente ainda é sua cultura: medra não do que come porém do que jejua. Podes abandoná-la, essa faca intestina: jamais a encontrarás melhor que Tramontina.” *** “Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Mas um dia hei de ir – nas asas da Air France, ça va sans dire!” *** “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Ao pé deles, degustaram com delícia sua cota de Maxi Goiabinha.” *** “Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no…
“Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto, quando voava de Istambul a Frankfurt, com conexão para o Rio, mas a impecável companhia aérea, além de não ter culpa pelo transtorno, ainda nos hospedou em um hotel de primeira qualidade no aeroporto aquela noite – grande Lufthansa.” *** “– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Mas só comecei a acertar mesmo quando troquei o velho trabuco por esta Taurus aqui, arma de grande maravilha. O senhor espie. Ahã.” *** “Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar… Viu uma lua no céu Viu outra lua no mar. O doutor que a atendeu Não tardou a receitar Óc’los da Ótica Fiel Pra vista dupla acabar.” *** “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Se os tivesse, não hesitaria em escolher o conforto e a segurança da Maternidade Nossa Senhora do Bom Parto, que tem convênio com todos os planos de saúde.” Publicado em 26/6/2006. Republicado a pedidos.
Qual é o maior problema da literatura brasileira? ( ) Os escritores não sabem escrever. ( ) Os leitores não sabem ler. ( ) Os críticos não sabem criticar. ( ) Os blogueiros se acham escritores. ( ) Os comentaristas de blog se acham críticos. ( ) Os críticos dos comentaristas de blog se acham. ( ) Os críticos dos comentaristas dos críticos dos comentaristas de blog… hã, onde estávamos mesmo? ( ) Ser brasileira demais. ( ) Não ser suficientemente brasileira. ( ) Não ser literatura. ( ) Literatura brasileira? Onde? ( ) Vai ler um livro e não me enche o saco. Publicado em 25/7/2007. Republicado a pedidos.
Quando Vladimir Nabokov não veio ao Brasil, em 1921, foi como entomologista convidado da expedição que a Universidade de Cambridge, onde ele estudava, organizou para subir o Xingu ciceroneada por um já alquebrado Cândido Rondon, empreendimento ambicioso que reunia mais de oitenta profissionais entre cientistas, cinegrafistas, artistas plásticos, nobres entediados, adidos militares discretos e espiões da indústria farmacêutica – e que também acabou não vindo. Foi assim que Nabokov não avistou à beira de um córrego um belo e até então desconhecido espécime crepuscular da família Nymphalidae, que desse modo, num bater de asas, perdeu para sempre a chance de inaugurar uma subespécie batizada Nabokovia. Foi também naquele ano que o jovem Vlad não sentiu a tentação de trocar a vida sombria de exilado russo na Europa pela de russo maluco nos trópicos, nem decidiu se recuperar dos rigores amazônicos que não lhe subtraíram sete quilos da carcaça no embalo de uma rede recifense na praia de Boa Viagem, onde, como é natural, tampouco conheceu biblicamente uma prostituta de doze anos chamada Dolores. Entre as mais notáveis conseqüências desses não-fatos pode-se salientar a circunstância incontornável de que Nabokov também não aprendeu a escrever em português com uma excelência de estilo…
As livrarias pequenas ou decadentes eram as melhores. Sentimentalismo? Picas: ausência de câmeras. Esgueirava-se entre as estantes feito réptil, puro sangue frio em movimento. Sim, um lagarto. Com olho de ave de rapina para que nada lhe escapasse: localização da obra em foco, vendedores mais próximos, possibilidade de flagra por meio de traiçoeiros espelhos ou jiraus. Suích, suích, lá ia ele dobrando esquinas acolchoadas de best-sellers, iguana com olho de gavião e mente hiperativa de escritor. A obra em foco era sempre, de algum modo, a mesma: o último sucesso de um de seus companheiros de geração. Pareciam inesgotáveis seus companheiros de geração. E os sucessos que produziam. Acompanhava os lançamentos, pupilas estreitas esquadrinhando os cada vez mais anêmicos cadernos literários dos jornais. Para isso pelo menos serviam os pasquins: montava ali, à mesa do café, o roteiro das próximas investidas. Às vezes acontecia de esbarrar com seu próprio livro perdido em algum pé de estante empoeirado, entre ácaros e oblívio. Raro, raríssimo. Mas sempre doía. Seu bebê incompreendido, seu prematuro grotesco. Era vexaminoso encontrá-lo nessas incursões, geralmente escondido atrás de tomos impossíveis, um guia de montanhismo lapão, a autobiografia da stripper que foi sucesso década e meia atrás. Preferia…
Crítica construtiva, tudo bem, mas eu gosto mesmo é de elogio, disse o jovem escritor do momento. A platéia riu. A boutade é boa, retrucou da poltrona ao lado o escritor de meia-idade, seu momento perdido em algum ponto remoto dos anos 80, mas eu sempre achei que elogio é que nem doce. Uma delícia, e te enche de energia. Mas não faz crescer. Críticas têm proteína, elogios têm açúcar. O escritor jovem que se esbalda nos primeiros elogios, se lambuza neles, principalmente acredita neles, está se recusando a crescer. O jovem escritor do momento ficou lívido. As juntas de seus dedos descoloriram em torno do microfone. Quem se recusou a crescer foi você, cara. Como disse? Quem se recusou a crescer foi você, você é que se recusou a ir além daquela lengalenga sub-mautneriana de marginais heróis e nonsense que eu li quando tinha quinze anos, como era mesmo o nome, Minhocas do asfalto? Não, agora lembrei: A cidade e os cupins. Li com quinze, achei razoável, com dezesseis já achava um lixo. Foi você que não cresceu, você que fracassou. Tudo bem, pode ser que eu não dê em nada também, é altamente provável, aliás. Mas tenha pelo…
O problema de Demóstenes Bastião era que ele escrevia em preto-e-branco. Não num preto-e-branco estiloso ou expressionista. Num preto-e-branco cinza, cinza-e-branco, cinza-e-cinza. Chiadeira das mais invernosas, sua prosa era mais cacete que a palavra “cacete” usada como adjetivo, mais morrinha que um daqueles lençóis de vapor que uma vez por década envelopam o mundo por semanas, meses, sem chover nem sair de cima, até os canários virarem limo e os orgasmos, perebas. Desprovida de quaisquer efeitos poéticos, dramáticos ou cômicos que soassem minimamente autênticos, a prosa de Demóstenes Bastião era sem lustro, sem lastro, sem risco, sem gosto, sem gusto. Nada iluminava, nada movia. Movia-se, só, e penosamente. Era como se desafiasse o leitor a cada advérbio preciosista, a cada contorno de frase corretíssimo e vão: se você não desistir, não espere que desista eu. Renitente, isso não dá para negar que a escrita de Demóstenes Bastião fosse. Feito um vírus combalido que, de uma hora para a outra, ao descuido mais bobo, pode ser mortal. E aqui não se trata de metáfora, infelizmente. Consta que houve mesmo seis ou sete casos funestos. Está certo que o sujeito acabar de ler um livro de Demóstenes Bastião e morrer ali mesmo,…
O lançamento do livro de memórias “Pugnus” faz do professor Cecilio Giovenazzi, 78 anos, renomado latinista da Unicamp, nada menos que “o maior memorialista do onanismo no Ocidente”, nas palavras do crítico Teodoro Spitz: Dono de uma memória digna de desafiar a do caipira de Borges, e com a vantagem de borrifar perfeitas citações em latim pelo caminho, esse escritor profundamente original nos brinda com relatos épicos de uma vida dedicada ao squirt-n-spurt. Tão ricos são os episódios em detalhe, circunstância, iluminação, grau de intumescimento, têm as cenas um tal rendilhado de sentimentos e sensações que fazem empalidecer, por infantil ou tosco, o mais impudente cronista de bacanal. Na multiplicidade de sessões febris ambientadas em banheiros, cozinhas, salas de estar, cabines telefônicas, elevadores, escadas de serviço, confessionários – ou mesmo, temerariamente, ao ar livre, em praças, parques, piscinas, terrenos baldios, ruas desertas de madrugada, no meio da multidão –, o que em todos esses cenários se conta é uma bela história de amor-próprio. Os jorros reflexivos de Giovenazzi atingem insuspeitada altitude filosófica. “Então me digam que metáfora do solitário, pungente, imaginoso ofício de escrever pode, nesta vida cachorra, superar o velho manutigium?”, perora o autor. Um livro seminal. De Spitz…