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Começos inesquecíveis: Mario Filho

Há quem ache que o futebol do passado é que era bom. De quando em quando a gente esbarra com um saudosista. Todos brancos, nenhum preto. Foi uma coisa que me intrigou a princípio. Por que o saudosista era sempre branco? O saudosista sempre branco, nunca preto, dava para desconfiar. E depois, a época de ouro, escolhida pelo saudosista, era uma época que se podia chamar de branca. Os jogadores claros, bem brancos, havia até louros nos times, ia-se ver: inglês ou alemão. Poucos morenos. Os mulatos e os pretos, uma raridade, um aqui, outro ali, perdiam-se, nem chamavam atenção. A prosa hipnoticamente despojada de Mario Filho, talvez o encontro mais feliz entre tom coloquial e expressão artística de toda a literatura brasileira, diz a que veio já nas primeiras linhas de “O negro no futebol brasileiro” (Mauad/Faperj, 4ª. edição, 2003), a épica reportagem-tese do homem que batizou o Maracanã. Ah, mas se o livro lançado em 1947 (e revisto e ampliado em 1964) pelo irmão menos famoso de Nelson Rodrigues não é um romance, o que está fazendo aqui? Hmmm. E quem disse que não é um romance? “O negro no futebol brasileiro” pode – e, acredito, deve –…

Não vem por quê? Por que não vem?
NoMínimo / 05/03/2009

Foi anunciado ontem que o escritor dominicano-americano Junot Díaz, que tinha confirmado presença na Flip, desistiu da viagem. “Não se perde grande coisa”, já vejo alguns leitores dizendo, mas não se trata disso. O fato provocou um post interessante no blog de Flavio Moura, diretor de programação do evento, que eleva a um novo patamar a transparência (estamos em tempos de Obama, afinal) com que as negociações pré-festival vêm sendo tratadas na edição deste ano. Um trecho: A recusa chama a atenção para um lado curioso da atividade de organizar festivais: o acesso a dimensões comezinhas do dia-a-dia dos escritores. Verdadeiros ou não, os motivos que os levam a recusar muitas vezes são divertidos e dizem algo a respeito da personalidade de cada um. Em 2008, o mesmo Junot disse que não podia vir porque tinha “um casamento na Itália”. No mesmo ano, Lobo Antunes – que segue confirmadíssimo para 2009 – não pôde vir em razão da formatura da filha, na mesma data da Flip. A família é também o ponto de apoio de Kazuo Ishiguro, autor de Vestígios do dia, e do crítico James Wood, de How fiction works. O primeiro se diz pouco à vontade para viajar…

Começos inesquecíveis: Henry James

A história havia nos prendido em suspense suficiente ao redor da lareira, mas exceto pela observação de que ela era horripilante, como, na véspera do Natal em um casarão antigo, qualquer relato estranho devia ser mesmo, não me lembro de nenhum comentário ter sido feito até calhar de alguém dizer que, em sua experiência, aquele era o único caso em que a aparição havia surgido para uma criança. O caso, devo mencionar, envolvia uma assombração numa casa velha exatamente igual àquela em que nos reuníamos na ocasião – uma aparição tenebrosa para um garotinho que dormia no quarto com sua mãe e que a acordou aterrorizado; acordou-a apenas para vê-la, antes que pudesse dissipar seu horror e pô-lo para dormir novamente com palavras tranqüilizadoras, encontrar ela também a visão que o abalara. Foi essa observação que levou Douglas a dar uma resposta – não imediatamente, mas mais tarde – que teria a interessante conseqüência para a qual eu desejo chamar atenção. Outra pessoa contava àquela altura uma história não muito bem-sucedida, que, eu notei, ele não estava acompanhando. Interpretei isso como um sinal de que ele mesmo tinha algo a relatar, e que não precisaríamos aguardar muito. Na verdade, tivemos…

Quando todo mundo acordar escritor…
NoMínimo / 27/02/2009

Peço licença para, correndo o risco de parecer obsessivo, citar mais um trecho do brilhante “O livro do riso e do esquecimento”, de Milan Kundera, que andou por aqui há pouco tempo. A atualidade destas palavras escritas em 1978 – muito antes, portanto, de haver sombra de internet no horizonte – tem algo de dolorosamente profético: Aquele que escreve livros é tudo (um universo único para si mesmo e para todos os outros) ou nada. E porque nunca será dado a ninguém ser tudo, nós todos que escrevemos livros não somos nada. Somos desconhecidos, ciumentos, azedos, e desejamos a morte do outro. (…) A irresistível proliferação da grafomania entre os políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes me demonstra que todo homem sem exceção traz em si sua potencialidade de escritor, de modo que toda a espécie humana poderia com todo direito sair na rua e gritar: Somos todos escritores! Pois cada um de nós sofre com a idéia de desaparecer, sem ser ouvido e notado, num universo indiferente, e por isso quer, enquanto é tempo, transformar a si mesmo em seu próprio universo de…

NoMínimo, vida após a morte
NoMínimo / 25/02/2009

Para quem ainda se lembra com saudade do NoMínimo, eis uma página boa de visitar. O site se espatifou em meados de 2007, mas a cola virtual junta os caquinhos. Obrigado à Shirlei Horta pela lembrança.

Começos inesquecíveis: Javier Marías

Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados. Quando se ouviu a detonação, uns cinco minutos depois de a menina ter abandonado a mesa, o pai não se levantou de imediato, mas ficou alguns segundos paralisado com a boca cheia, sem se atrever a mastigar nem a engolir nem, menos ainda, a devolver o bocado ao prato; quando por fim se levantou e correu para o banheiro, os que o seguiram viram como, enquanto descobria o corpo ensangüentado da filha e levava as mãos à cabeça, ia passando o bocado de carne de um lado ao outro da boca, sem saber ainda o que fazer com ele. Eis o início de “Coração tão branco” (Companhia de Bolso, 2008, tradução de Eduardo Brandão), romance lançado em 1992 pelo espanhol Javier Marías. Sem comentários.

O blog é meu, ninguém tasca, eu vi primeiro!
NoMínimo / 19/02/2009

De vez em quando eu dou para os outros, vocês, o endereço informático e depois me arrependo. Um blog ainda contém certos resquícios gutenberguianos. Feito a revista que a gente assina, recebe em casa e não empresta para ninguém, nem deixa exposta em cima de coffee table na sala de visitas. Nós, ou ao menos este criado que vos fala, quer exclusividades. Não estou aqui também, sou franco, para dar hit e page impression para malandro nenhum. Podem me fazer de dado estatístico, mas minha alma informatizada, nem que seja apenas para as aparências, continua sendo minha, só minha. Ivan Lessa encontra paralelos insuspeitados entre o papel e a tela do computador. Imaginei um conhecido meu, com seu português de legenda de filme, interpelando o homem: “Mas, senhor Lessa, a internet é sobre compartilhando!” Mas fiquei bem curioso para saber: será que mais alguém aí tem ciúme e sentimentos de posse em relação a seus blogs favoritos?

A recusa de um manuscrito em 99 versões
NoMínimo / 17/02/2009

O livro mais engraçado que leio em um bom tempo é o recém-lançado “A arte de recusar um original” (Rocco, tradução de Pedro Karp Vasquez, 144 páginas, R$ 24), do escritor canadense de língua francesa Camilien Roy. A idéia é simples: Roy enfileira 99 cartas de recusa de originais, nos mais variados estilos, todas enviadas ao autor por editores a quem ele submeteu pelo correio o manuscrito de seu primeiro romance. Algumas dessas peças, supõe-se, devem ser baseadas nas que o autor de verdade recebeu um dia – como se diz no prólogo, ninguém, nem Proust, escapou disso –, mas o caráter furiosamente ficcional da brincadeira não demora a ficar claro. A vida real pode ser tão cruel quanto aquilo, sem dúvida. Mas não é tão divertida. Em meio a uma variedade quase inimaginável de tocos editoriais, do mais rebuscadamente insultuoso (“O pântano pestilento que lhe serve de cérebro, e do qual o senhor extraiu a inspiração para essa nauseabunda aberração, me paralisa de desgosto”) ao mais cinicamente modesto (“Nossos recursos são insuficientes para enfrentar as responsabilidades decorrentes do estrondoso sucesso que lhe é predestinado”), passando por cartas em verso e em forma de peça teatral, aparecem de repente umas…

Começos inesquecíveis: Milan Kundera

Em fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald postou-se na sacada de um palácio barroco de Praga para discursar longamente para centenas de milhares de cidadãos concentrados na praça da Cidade Velha. Foi um grande marco na história da Boêmia. Um momento fatídico que ocorre uma ou duas vezes por milênio. Gottwald estava cercado por seus camaradas, e a seu lado, bem perto, encontrava-se Clementis. Nevava, fazia frio e Gottwald estava com a cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou seu gorro de pele e o colocou na cabeça de Gottwald. O departamento de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da fotografia da sacada de onde Gottwald, com o gorro de pele e cercado por seus camaradas, falou ao povo. Foi nessa sacada que começou a história da Boêmia comunista. Todas as crianças conheciam essa fotografia por a terem visto em cartazes, em livros ou nos museus. Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. O departamento de propaganda imediatamente fez com que ele desaparecesse da História e, claro, de todas as fotografias. Desde então Gottwald está sozinho na sacada. No lugar em que estava Clementis, não há mais nada a não ser a parede vazia…

Livros no celular… e sem sotaque
NoMínimo / 12/02/2009

Estava nu e do lado de fora do apartamento. Situação difícil em qualquer lugar do mundo. Mas aqui não é qualquer lugar. Aqui é o Rio de Janeiro. E no Rio é tudo praia, sol, Cristo, bunda, bala. Homem pelado aqui não é problema. – Que porra é essa, meirmão? O corredor vazio. Nove da manhã. Apenas o pelado e um careca. – Meu senhor, a porta bateu. Fiquei na rua. Compreenda. O sujeito ajeitou a calça e entrou no apartamento. Minutos depois, voltou com um calção vermelho. – Agora vê se não vacila. – Ô amigo, sem palavras. Despediram-se com um leve sinal de cabeça. O dia correu normalmente. O continho paródico acima, uma boa zoação com Fernando Sabino, chama-se O homem vestido e faz parte do livro “Histórias mal contadas”, de Bruno Germer e Maurício Azevedo. A novidade é que o livro está disponível para ser baixado gratuitamente e lido no celular, um dos sete títulos – todos inéditos – que a recém-criada Editora Plus, de Porto Alegre, lançou neste formato que os japoneses adoram. Enquanto as grandes casas editoriais não querem nem ouvir falar em livro digital, fingindo enquanto podem que o tempo parou, as pequenas se…

A volta das cartas manuscritas?
NoMínimo / 11/02/2009

Apesar da turbulência financeira, as vendas de canetas e papel estão disparando. Pode chamar de retro chic ou de esnobada nas engenhocas eletrônicas, mas as cartas e cartões estão vivendo um renascimento. E já era tempo, porque ninguém deixa de se impressionar com uma nota manuscrita. Hmmm, será? O excelente The Elegant Variation, onde eu achei o link para esse artigo do “Daily Telegraph” (em inglês, acesso gratuito), acha que ele pode ser mais a expressão de um desejo do que o retrato de uma tendência. Além de serem frágeis os fatos apresentados para sustentar a tese, eu confesso que não consigo me lembrar de ninguém que ainda escreva cartas à mão. Você consegue?

Cortázar redescoberto
NoMínimo / 10/02/2009

Na próxima viagem, sem dúvida, irei a Montparnasse, à Pont des Arts onde a Maga passeia, comerei a sopa de lentilhas de sempre do Pollydor onde, descubro hoje, se passa “62 modelo de armar”, um livro que não li. Mas aí já será uma outra Paris, soma fantasmagórica das que conheci em outros tempos e mais a dele, que, assim como quem não quer nada, voltou às prateleiras, às leituras, à vida. A redescoberta de Julio Cortázar em Paris inspira uma bonita crônica de Paulo Roberto Pires em seu blog no site da “Bravo!”

Começos inesquecíveis: Ralph Ellison

Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe; nem um desses ectoplasmas de filme de Hollywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos – talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. Tal como essas cabeças sem corpo que às vezes são exibidas nos mafuás de circo, estou, por assim dizer, cercado de espelhos de vidro duro e deformante. Quem se aproxima de mim vê apenas o que me cerca, a si mesmo, ou os inventos de sua própria imaginação – na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu. Assim começa o prólogo de “Homem invisível”, romance lançado em 1952 com grande sucesso por Ralph Ellison (Marco Zero, 1990, tradução de Márcia Serra) e em geral considerado o ponto mais alto da literatura negra americana – o que bem pode ser verdade, embora eu confesse um fraco pela prosa mais fina de James Baldwin. Quando se fala em romance de tese (como acredito ser o caso aqui, com um “homem invisível” e sem nome que simboliza todos os negros vivendo numa sociedade racista), é…

As cinco (ou seis) regras de Updike
NoMínimo / 04/02/2009

Dias de luto por John Updike, trezentas mil reportagens e artigos pipocando na internet, eu – que nunca fui fã do ficcionista, que li de forma incipiente e há muito tempo – me lembrei das ótimas (e pouco observadas) cinco regras para uma boa crítica jornalística que ele, resenhista prolífico, escreveu há décadas. Faz uns dois anos que esbarrei com elas e nunca esqueci. Resumindo (a íntegra, em inglês, pode ser lida aqui), trata-se do seguinte: 1. Tente entender o que o autor quis fazer, e não o culpe por não conseguir fazer aquilo que não tentou. 2. Transcreva trechos da prosa do livro em extensão suficiente – pelo menos uma passagem mais longa – para que o leitor da resenha possa formar sua própria impressão. 3. Confirme sua descrição do livro com uma citação do próprio, mesmo que só uma frase, em vez de fazer apenas um resumo vago. 4. Vá devagar com o resumo da trama, e não entregue o fim. 5. Se o livro for considerado deficiente, cite um exemplo bem-sucedido de outro que vá na mesma linha, seja ele tirado da obra do mesmo autor ou de outro. Tente compreender o fracasso. Tem certeza de que…

Millôr e o presidente do Senado
NoMínimo / 03/02/2009

Em homenagem à eleição de José Sarney para a presidência do Senado, tomo a iniciativa de republicar, para refrescar a memória das velhas gerações e implantar memórias fresquinhas nas novas, um dos textos em que, em 1988, em seu “quadrado” no “Jornal do Brasil”, Millôr Fernandes dissecou o livro “Brejal dos Guajas”, do imortal maranhense. Millôr não ficou nisso: a série crítica completa pode ser lida aqui. As opiniões divergem. Alguns brilhantes e cultos intelectuais (…) afirmam, audaciosamente, que Brejal dos Guajas é um livro. Eu garanto que não. É uma anedotinha “socialzinha” tolinha (já contada mais de um milhão de vezes) da briguinha de dois coroneizinhos de uma cidadezinha perdidinha no interiorzinho do Maranhão. O autor deve ter lido umas 20 páginas de Jorge Amado (Marli, que socialismo!) e umas cinco de Guimarães Rosa (Zezinho, que linguagem! E que difícil, Murilo!) e isso, claro, lhe causou uma indigestão na cabeça. Reacionário desde sempre, deve ter achado fascinante e lucrativo ser um escritor do povo. Sem jamais ter entendido a realidade em volta, naturalmente fundiu diante do realismo mágico. Incapaz de juntar sujeito e predicado em português escolar, se perdeu na aventura da linguagem que é Guimarães Rosa – e…

Começos inesquecíveis: Roberto Bolaño

2 de novembro Fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor assim. 3 de novembro Não sei muito bem em que consiste o realismo visceral. Tenho dezessete anos, meu nome é Juan García Madero, estou no primeiro semestre de Direito. Não queria estudar Direito, e sim Letras, mas meu tio insistiu e acabei cedendo. Sou órfão. Serei advogado. Foi o que disse ao meu tio e à minha tia, depois me tranquei no quarto e chorei a noite inteira. Assim, com uma piadinha simples (“claro que aceitei”, “não sei em que consiste”) e no embalo aparentemente despretensioso do diário juvenil de Madero, aspirante a poeta, o leitor é suavemente puxado pela mão para dentro do monumental turbilhão de vozes e tramas que torna o romance “Os detetives selvagens” (Companhia das Letras, 2006, tradução de Eduardo Brandão), do chileno Roberto Bolaño, uma das obras fundamentais da literatura contemporânea.

Sei lá, mil livros… (II)
NoMínimo / 30/01/2009

Crise séria no mercado editorial turco, o secretário-geral do sindicato nacional dos escritores aparece com uma proposta que, embora pareça fadada a ser ignorada pelo governo de lá, tem tudo para frutificar em certos setores da literatura brasileira: “Poderia ser um primeiro passo se o ministério (da Cultura) comprasse mil exemplares de cada livro publicado”. Atenção, isso é só uma notícia: depois não vão dizer que eu dei a idéia. Via blog de livros da “New Yorker”.