“Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português.” Assim cantava o grande Noel Rosa, um dos gênios da música brasileira, num samba-crônica dos anos 1930 chamado Não tem tradução. Apesar dos óbvios pontos de contato entre a canção – que diz a certa altura que “as rimas do samba não são I love you” – e o livro que você tem em mãos, não foram tais semelhanças que trouxeram o velho sambista para esta página. Noel está aqui para ser publicamente desautorizado diante do leitor lusitano. Porque o idioma falado no Brasil é o português, ponto. Um português à brasileira, claro, como não podia deixar de ser. No entanto, com todas todas as suas liberdades, ousadias, alfinetes espetados no umbigo, influências indígenas e africanas, plasticidade dos pronomes e paixão pelas vogais, nunca “passou de português” e não creio que algum dia passará. E por que deveria? Se a língua de Fernando Pessoa é estrangeira para mim, então já não sei quem sou – “fico sem poder ligar ser, idéia, alma de nome a mim, à terra e aos céus”. Da língua de Luís de Camões, com seus gerúndios de sabor tão brasileiro quanto…
A morte de John Updike, hoje, aos 76 anos, de câncer no pulmão, deixa Philip Roth como o último remanescente dos Grandes Machos Narcisistas (obrigado, David Foster Wallace) que dominaram a literatura americana na segunda metade do século 20: Norman Mailer, morto em novembro de 2007, era o terceiro da trinca. Prosador excepcional e romancista por excelência do subúrbio americano, o narigudo Updike passou a vida criando alter egos mal disfarçados como Henry Bech e Rabbit Angstrom, homens solitários – ainda que às vezes (mal) casados – fixados em sexo. Escritor prolífico, foi também presença constante na imprensa como crítico literário. Dos cerca de cinqüenta livros que publicou, a Companhia das Letras tem 14 em catálogo. O mais recente deles, lançado ano passado, é “Cidadezinhas”. Aqui, em inglês, mediante cadastro gratuito, o obituário do “New York Times”.
Quem gosta de se sentir angustiado ao contemplar toda a montanha de livros que ainda não leu vai se divertir, mesmo que perversamente, com a lista de mil romances que “todo mundo precisa ler” publicada pelo “Guardian” na semana passada (em inglês, acesso gratuito). Bobagem, claro, como toda lista do gênero. A própria idéia de que existam mil livros de leitura “obrigatória” é absurda – seja porque, como diria Nelson Rodrigues, bastam dois ou três, seja porque a relação de cada leitor deve ser sempre profundamente pessoal e idiossincrática, sob pena de ser tão vazia quanto aquelas lombadas decorativas em estante de novo-rico. Mas vale uma olhada. Dividida em categorias temáticas, a relação exige fôlego do leitor, mas tem lá suas compensações. Como encontrar “Dom Casmurro” na prateleira Amor e “Grande sertão: veredas” na rubrica Guerra e viagem. Ou constatar que José Saramago só comparece com “Ensaio sobre a cegueira”, o que faz pensar sobre o papel espúrio desempenhado pelo celulóide numa lista que deveria ser só de celulose. Ou ainda ficar perplexo diante de nomes obscuríssimos (talvez apenas para o leitor brasileiro ou quem sabe para mim, acho que não importa muito nesse caso) e, naturalmente, imaginar quais são…
Mandei um garoto para a câmara de gás em Huntsville. Foi só um. Eu prendi e testemunhei contra ele. Fui até lá conversar com ele duas ou três vezes. Três vezes. A última foi no dia da execução. Eu não tinha que ir, mas fui. Claro que não queria ir. Ele tinha matado uma garota de catorze anos e posso te dizer hoje que nunca tive muita vontade de conversar com ele, muito menos de ir à sua execução, mas fui. Os jornais diziam que tinha sido crime passional e ele me disse que não havia paixão nenhuma naquilo. Andava saindo com essa garota, mesmo tão jovem como ela era. Ele tinha dezenove. E me disse que estava planejando matar alguém desde quando era capaz de se lembrar. Disse que se o soltassem ia fazer de novo. Disse que sabia que ia para o inferno. Disse isso para mim com sua própria boca. Não sei o que pensar disso. Não sei mesmo. Achei que nunca tinha visto uma pessoa assim e fiquei me perguntando se ele seria de uma nova espécie. Fiquei observando enquanto amarravam ele no assento e fechavam a porta. Ele talvez parecesse um pouco nervoso, mas era…
Depois de orgulhosamente confirmar as presenças de Carlos Fuentes e do historiador Simon Schama, a organização da Flip anuncia seu (provavelmente) maior trunfo, o português António (com acento agudo, pois não?) Lobo Antunes. Recluso, mal-humorado, irascível, o lobo solitário que escreve a prosa mais luxuriantemente musical do português contemporâneo costuma ser confrontado com seu compatriota José Saramago por quem acredita que só pode haver um vencedor nas batalhas infinitas da literatura. Eu, que não concordo com essa bobagem, só posso adiantar que a festa deste ano em Parati está ficando imperdível.
Quem assina a epígrafe desse convite virtual, com a venerável chancela da PUC-RJ, é a escritora brasileira Clarisse (sic) Lispector. O lado bom é que pelo menos acertaram o sobrenome. Não faltam Clarisses Linspector por aí.
As possibilidades democratizantes da internet estão acelerando a degeneração da esfera pública numa proliferação de nódulos insulares, cada um combatendo uma guerra que nunca poderá ser vencida. Não se vencem nem se perdem batalhas na rede. O que resta é uma política solipsista de EU, EU, EU: meus pontos de vista, minhas verdades, meus fatos, minha dor, minha raiva. Convencer os outros e mudar o mundo ficou esquecido em favor da perpetuação da perspectiva individual. O artigo escrito a quatro mãos por Keith Kahn-Harris e David Hayes para o Open Democracy (em inglês, acesso gratuito) parte da guerra virtual que Gaza acirrou, mas acaba tocando em alguns pontos que dizem respeito aos “debates de idéias” em geral na internet. Quem ainda não sentiu um profundo desalento e achou que perdia seu precioso tempo diante de uma discussão internética típica, ou seja, tão cheia de ofensas e certezas inabaláveis de parte a parte quanto vazia de argumentos? Mesmo aqui no Todoprosa, com suas taxas de civilidade muito acima da média, de vez em quando temos uma amostra do que parece ser uma – paradoxal? – vocação do meio para os múltiplos monólogos paralelos. A solução? Sei lá. Só não acredito que…
Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tortura seria interessante se eu a explorasse com critério – mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias. Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustração de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Uma mulher nua, devorada por cobras e chamas, nas profundezas do inferno. Segundo o texto, era essa a imagem da luxúria e demais safadezas que atentam de uma forma ou outra contra os mandamentos da Santa Lei de Deus. O livro fez sucesso em nossas mãos. Cometeu-se muita masturbação por causa dele – algumas páginas ficaram emporcalhadas. Se não cheguei a tanto não foi culpa da mulher, bem merecia o pecado, culpa das cobras, sempre me inspiraram repugnância. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito. Assim começa “O ventre” (Alfaguara, 2008, 12.ª edição), romance de estréia de Carlos Heitor Cony, escrito em 1955 e finalmente publicado em 1958 pela Civilização Brasileira. É impressionante…
A Flip anuncia a vinda do escritor mexicano (nascido no Panamá) Carlos Fuentes, de 80 anos. Pela importância histórica, um cachorro grande em Parati. * Khaled Hosseini e Ken Follett foram os autores mais lidos do ano passado, numa consolidação das listas de mais vendidos de nove países (de fora da Europa, só EUA e China). Paulo Coelho aparece em vigésimo lugar. * “Cada sentença é tão simples e verdadeira quanto o sangue.” Hã? O nível estilístico não é grande coisa, mas o entusiasmo do crítico por The taker and other stories, de Rubem Fonseca (uma coletânea americana pinçada de diversos livros e puxada por “O cobrador”, com tradução de Clifford E. Landers), vale a leitura do texto publicado este mês na revista eletrônica Words Without Borders. * Da editoria de bizarrices divertidas: quando você imaginou que veria Gustave Flaubert lendo um trecho de “Madame Bovary”? E tem muitas outras animações (toscas, mas…) com escritores mortos de onde saiu esta. * Michel Laub voltou a blogar, o que é ótimo. Mas prefere se abster de juízos sobre autores nacionais – o que é compreensível e talvez até sábio, mas uma pena assim mesmo.
E enquanto os smartphones se tornam mais disseminados, em parte graças à popularidade do iPhone da Apple, também se espalham as ferramentas que facilitam para o usuário a tarefa de baixar um livro por uma fração do custo de adquiri-lo de outra forma. Usuários do iPhone e de seu primo, o iPod touch, baixaram as obras reunidas de William Shakespeare mais de 300 mil vezes da loja virtual iTunes, de acordo com a Readdle, a empresa novata baseada na Ucrânia que criou o aplicativo gratuito que torna isso possível. A seção de livros conta com cerca de setecentos títulos; sozinha, a Apple oferece também 72 audiolivros. Na guerra dos leitores eletrônicos, a tela pequena do iPhone não parece ter munição para enfrentar a do Kindle ou similares, mas há quem acredite que a multifuncionalidade do aparelho vai compensar tudo isso – como andamos comentando aqui em julho do ano passado. O artigo recente (em inglês, acesso livre) de Olga Kharif, da “BusinessWeek”, de onde foi extraído o trecho acima, reforça essa tese. Não deve ser por outra razão que editoras graúdas como Random House e Simon & Schuster estão entrando na onda. Não, eu não tenho um iPhone (ainda?) nem…
Você já sonhou que estava dentro de um livro, vivendo aquela história? Ou fora do livro, mas convivendo com seu autor? Chas Newkey-Burden, que escreve no blog de livros do “Guardian”, jura que já, e os comentaristas que reagiram à sua provocação sugerem que o fenômeno é menos raro do que eu imaginaria. O sujeito conta que foi a julgamento em “O sol é para todos”, tomou porrancas épicas com os personagens de Kingsley Amis e até esquiou em companhia de Shakespeare. Confesso que isso me deixou bem desconcertado. Que eu me lembre, e apesar de tudo o que já li, os sonhos nunca me levaram para dentro de livro nenhum. Será uma falha de caráter? De imaginação? Nesse departamento onírico-literário, mas em chave bem diferente, o máximo que eu posso relatar é o fato de ter escrito um romance inteiro num sonho especialmente realista e detalhado em que a felicidade que se seguiu ao ponto final (o livro era muito bom) foi proporcional à infelicidade de acordar e me descobrir incapaz de recordar uma única frase da obra-prima. Nada mais. O que é uma pena. Deve ser uma experiência e tanto perambular por Paris à procura da Maga. Ou,…
“Não me diga que a lua está brilhando; mostre-me o seu reflexo num caco de vidro.” ANTON TCHECOV
Antes que o ano vire, transformando o talão de cheques numa armadilha para o automatismo da mão apegada ao passado recente e, em sábia compensação, tornando cada vez mais raro à medida que o século envelhece o próprio uso desse mico-leão-dourado analógico chamado talão de cheques; Antes, portanto, que seja tarde demais para dar a uma frase longa e convulsa como a do parágrafo anterior o desconto do urgente espírito retrospectivo impressionista que baixa todo fim de ano sobre escribas dos mais variados estilos e confissões; Antes, enfim, que estourem fogos e rolhas e sacos, declare-se aqui com a clareza permitida pela ressaca do último espumante que, das leituras que fiz em 2008, não só o já mencionado “Austerlitz” merece citação nominal pela capacidade de se manter na memória; Pois haveria grande injustiça em não lembrar livros como “Sem sangue” (Companhia das Letras), de Alessandro Baricco, e “Black music” (Objetiva), de Arthur Dapieve, duas novelas curtas tão diferentes e ao mesmo tempo tão curiosamente conectadas, com seu recheio de violência extrema e suas cenas finais de sexo carregadas de uma simbologia estranha, de uma luz triste mas ainda redentora – no caso do italiano, a cópula reinventada como agridoce vingança;…
Fique tranquilo: não são tão frequentes assim as palavras que têm sua grafia alterada pelo novo acordo da língua portuguesa, que estreia oficialmente na virada do ano. Se a ideia o deixa paranoico, temendo uma sequência de erros que acabe em quiproquó, recomenda-se aguentar firme. Um parágrafo como este, com seus oito exemplos de alteração em poucas linhas, seria um acidente raro se não fosse deliberado. Dos exemplos acima, a maioria tem a ver com a morte do trema. Abolido em Portugal desde 1946, esse sinal diacrítico tem seus simpatizantes, mas representa o menor dos problemas que aguardam os brasileiros nessa fase de transição ortográfica. Isso porque se trata de uma regra cristalina e, sobretudo, sem exceção: cinquenta, linguiça, delinquente, equidade, sequestrador… Basta abolir os dois pontinhos horizontais de tudo (menos, claro, de vocábulos estrangeiros, que estão sujeitos a outras regras) que não há como errar. Vale lembrar que a pronúncia dessas palavras permanece a que sempre foi. A reforma é ortográfica, ou seja, limita-se à forma de escrever. Os demais exemplos do parágrafo de abertura se referem a outra mudança de impacto, no sentido de afetar um grande número de palavras, mas também de fácil assimilação por sua clareza….
O dramaturgo inglês Harold Pinter morreu ontem, de câncer, aos 78 anos. Nobel de Literatura de 2005, Pinter, muito doente, não pôde comparecer à cerimônia de premiação, mas gravou um discurso que foi exibido em Estocolmo. Então ficou claro que a saúde debilitada não tinha enfraquecido sua combatividade. O discurso incluía este irônico monólogo para George W. Bush – que àquela altura, convém lembrar, ainda tinha pencas de defensores ferrenhos por aí: Deus é bom. Deus é ótimo. Deus é bom. O meu Deus é bom. O deus de Bin Laden é mau. É mau o deus dele. O deus de Saddam também era mau, a não ser pelo fato de que ele não tinha um. Ele era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Nós não cortamos cabeças. Nós acreditamos na liberdade. Deus também. Eu não sou um bárbaro. Sou o líder democraticamente eleito de uma democracia que ama a liberdade. Somos uma sociedade compassiva. Aplicamos eletrocussões compassivas e injeções letais compassivas. Por mais que seja revoltante confrontar dessa forma um dos grandes escritores do século 20 com um anão moral, não deixa de ser tentador pensar que, agora que Bush está (espera-se) politicamente morto, Pinter pôde finalmente se deixar…
Às sete horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor. — Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje. O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias. — Eu acho que o jeito… O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro. O “Conto de Natal” do maior cronista brasileiro está muito longe de ser daqueles que aquecem o coração. Mas é bom. Feita essa advertência, clique aqui se quiser ler a história inteira, publicada no site Releituras. Feliz Natal.
Eu tinha decidido não fazer uma retrospectiva este ano – não uma convencional, pelo menos, daquele tipo que elege os três ou cinco ou dez melhores livros que me passaram pelos olhos entre janeiro e dezembro. E não só porque o formato me parece meio cansado, mas porque 2008 para mim foi um ano de leituras atípicas. Li muito, mas de forma dirigida e sobretudo obras de não-ficção, como pesquisa para o romance histórico que estava escrevendo. O resultado foi que boa parte dos romances e contos que teriam me interessado em condições normais engarrafou numa fila monumental. Foi o convite do Daniel Lopes, editor do Amálgama, que me obrigou a revirar a memória para buscar o livro mais marcante que li em 2008 – e só então descobri que o ânimo retrospectivo que assola a imprensa todo fim de ano tem lá sua razão de ser. Sem essa pauta, acho que eu não teria me tocado de algo que parece, mais que óbvio, necessário: meu romance (agora pronto) não passou o ano cercado apenas de velhos volumes de História e montanhas de recortes de jornal. Reproduzo abaixo o textinho que saiu hoje no Amálgama. Para ler as indicações dos…