Depois de Luiz Melodia chamar a Flip de “Flic”, foi a vez de Luis Fernando Verissimo, em sua primeira frase da conversa com Tom Stoppard, ontem à noite, chamá-la de “Clip”. Ao contrário do músico, o escritor percebeu imediatamente o erro e se corrigiu. Cáspite! Coincidência, com certeza. Contudo, cabe a conjetura: e se a letra cê estiver cavando um convite para o convescote?
Vou resumir aqui, mais em espírito que literalmente, o que foi a aula dada pelo dramaturgo inglês Tom Stoppard na mesa mais nobre da Flip, a das 19h de sábado. Aula? Sim, foi nisso que consistiu a primeira metade do programa, quando, depois de apresentado por Luis Fernando Verissimo, Stoppard pediu licença para ficar em pé no palco e passou a se dirigir diretamente ao auditório lotado, expondo uma espécie de cartilha de princípios artísticos. O segundo ato da peça, se assim podemos chamá-lo, em que o autor de The Coast of Utopia respondeu perguntas do mediador e da platéia, foi irregular, como costumam ser essas coisas. Mas a aula foi ótima. Stoppard dividiu o que entendemos por texto “bem escrito” em duas categorias: o que revela um poder magistral de manipulação da língua, no modo como as palavras se organizam, por assim dizer, arquitetonicamente, para expressar do modo mais eloqüente possível uma idéia forte; e aquele que, embora repleto de lugares-comuns e fórmulas convencionais, usa-os com tamanha precisão e em contextos tão perfeitos que tira deles o máximo de expressão artística. A primeira categoria é, naturalmente, aquela que costuma ser compreendida pela maior parte das pessoas como a mais…
A coisa mais notável sobre Tom Stoppard (deixando de lado toda essa história dele ser um gênio e tal) é que ele é vinte anos mais velho, e tem o mesmo cabelo que eu! Neil Gaiman, estrela da mesa de 11h45, sobre Tom Stoppard, estrela da mesa de logo mais, em seu blog pessoal (dica de Marcelo Tas). Ter se dado bem nos bastidores da Flip com Stoppard, um sujeito que ele quer ser “quando crescer”, é apenas um dos assuntos relacionados com o Brasil que Gaiman aborda. Parece estar adorando tudo.
Foi perfeita a mesa que reuniu Neil Gaiman e Richard Price. Além da qualidade da obra dos dois e da lucidez com que falam dela, acho que algumas questões de formato, digamos assim, ficaram bem claras. Em primeiro lugar, mesas com três convidados não funcionam. Dois é o número ideal para que cada um tenha tempo de dar o seu recado. Um, se o cara for uma grande estrela, tudo bem. Três é demais. Segundo: o mediador é mais importante do que parece. Marcelo Tas desempenhou seu papel com rara competência. Conhecia a obra dos entrevistados, mas, nem tímido nem exibido, entendeu que não estava ali para defender uma tese de doutorado, mas para apresentar um pequeno show ao vivo. O timing de televisão ajudou. Terceiro: a química entre os convidados costuma ter muito de imponderável, mas não precisa ser encontrada em grandes questões políticas ou existenciais. A discussão sobre a técnica do diálogo, por exemplo, bastou para que Price e Gaiman, tão diferentes, encontrassem solo comum suficiente para garantir à mesa uma certa coerência. “O diálogo real é um pesadelo num livro, como um mau filme de Andy Warhol. Bom diálogo é diálogo falso”, disse Price, jogando uma pá…
O americano David Sedaris encerrou a programação de sexta-feira da Flip dando o que pensar. Depois da mesa gelada sobre uma certa (e nebulosa) “estética do frio”, Sedaris, mestre naquele tipo de humor bem americano em que o sujeito ri cruelmente de si mesmo antes de rir dos outros, conseguiu soar simpático até quando disse que, no Brasil, tinha dois desejos: comer carne assada em espadas (espetos de churrasco) e ver macacos. Fez o público flipesco dar gargalhadas com o absurdo da vida e sair de coração aquecido para disputar a cotovelaços lugares em restaurantes lotados e agüentar o serviço baiano que a cidade oferece por preços tão nova-iorquinos quanto a estrela da noite. Depois de uma quinta-feira dominada por Ovalle, fica a pergunta: só o humor salva?
O caderno de anotações estava aberto no meio da mesa. Tinha só uma frase escrita nessas duas páginas que ficavam à vista. Dizia: “A partir de que idade se pode comesar a torturar uma criança?” O fortíssimo começo de “Duas vezes junho” (Amauta Editorial, 2005, tradução de Marcelo Barbão), do argentino Martín Kohan, que comprei ontem na tenda montada pela Livraria da Vila em Parati, fez crescer meu interesse pela mesa que começa daqui a pouco (e que terá ainda Nathan Englander e Vítor Ramil). A novela de Kohan aborda a violência da ditadura argentina de forma original já a partir de seu começo estarrecedor: o erro de ortografia representado por “comesar”, uma bobagem, será prontamente corrigido; a barbaridade demencial, mas ao mesmo tempo burocrática, de torturar um recém-nascido para obrigar sua mãe a falar, não.
Pronto, aconteceu: a Flip 2008 teve sua primeira mesa para ser lembrada por muitos anos. “Você estava naquela mesa do Ovalle?”, muita gente perguntará ano que vem, dedicando então, em caso de resposta negativa, um olhar de pena ao interlocutor. E por que foi tão boa a tal Conversa de Botequim entre Humberto Werneck e Xico Sá, com mediação de Paulo Roberto Pires? Bom, qualquer tentativa de dissecar friamente esses momentos de alegria, e ainda por cima no calor da hora, é arriscada. Mas vamos lá: Para começar foi seguramente a mais engraçada de todas as que já vi em Parati. A mais desaconselhável para menores de dezoito anos também. Xico Sá, cronista famoso pela verve, começou pegando um pouco pesado nos palavrões para os padrões flipescos, e um bom punhado de sobrancelhas erguidas refletia o temor de que aquilo pudesse desandar. Não desandou: decolou. Jayme Ovalle tem muito a ver com isso. O personagem-tema do livro de Werneck, “O santo sujo” (mais sobre ele aqui), é uma figuraça que por si só estimula o clima de conversa vadia. E o autor, jornalista de renome, se revelou um exímio contador de casos. Mineiramente elegante, com um humor mais baseado no…
O escritor colombiano Fernando Vallejo, cujas opiniões contra tudo o que aí está são uma chatice abominável, deu sorte. Como fala baixo, num espanhol enrolado, e não havia tradução simultânea, a entrevista coletiva que deu hoje na Flip foi tão pouco compreendida pela maioria dos repórteres presentes que ele pôde se safar sem um arranhão quando foi além da chatice habitual, entrou pelo terreno da teratologia e, irritado, lamentou a libertação de sua compatriota Ingrid Betancourt. Prisioneira na selva, segundo ele, ela era “menos uma praga para nosso país”.
Na já tradicional mesa dos “novos autores”, sempre a primeira de quinta-feira, terminada há pouco, o mediador João Moreira Salles se confessou em grande dificuldade para encontrar o “mínimo denominador comum” entre quatro escritores que, além de terem estilos diferentes, nem mesmo no tempo de carreira se parecem: de um lado Michel Laub e Adriana Lunardi, quase veteranos com seus três livros cada um, e do outro os calouríssimos Vanessa Barbara e Emilio Fraia, autores de “O verão do Chibo” (Alfaguara), um romance escrito, coisa rara, a quatro mãos. Um dos pontos de contato que Moreira Salles descobriu entre eles – além de gozações como “sobrenomes iniciados por consoantes” – me chamou a atenção: todos têm bem-sucedidas carreiras paralelas à literatura, Adriana como roteirista de TV, os outros três como jornalistas. Pode parecer a maior das banalidades, mas numa mesa de novos e seminovos achei muito significativo. Talvez indique que está passando aquele sarampo neo-romântico que acometeu muita gente nos últimos anos: tratar a literatura como se ela simplesmente devesse ao escritor sua subsistência, ainda que precária, e que qualquer desvio dessa rota é uma sórdida traição à arte.
Luiz Melodia fez um showzaço ontem à noite em Parati, misturando sambas antigos com sucessos de seu próprio repertório. Pouca gente se animou a mexer as cadeiras, apesar da banda afiada: intelectual é fogo. Mas o coro de centenas de vozes da platéia nos primeiros versos de “Estácio, holly Estácio” compensou. Para ser tudo perfeito, só faltou Melodia acertar o nome da festa, que chamou, repetidas vezes, de “Flic”. Uma espécie de Flip com soluço.
A Flip começou cabeçuda, densa, talvez um pouco fria, com a conferência do crítico Roberto Schwarz sobre “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, o homenageado da festa este ano. Schwarz é um analista brilhante da obra machadiana, ponto. A leitura que faz do velho Joaquim Maria como o mais ácido crítico das relações de dominação de um país patriarcal e escravocrata é tão luminosa que, para mim, mais do que jogar novas luzes sobre o autor, ajuda a espantar as próprias sombras de irrelevância que costumam rondar a literatura. Mas quem já leu seus dois livros essenciais sobre o tema, “Ao vencedor as batatas” e “Um mestre na periferia do capitalismo”, não encontrou muita novidade na mesa terminada agora há pouco. A não ser, talvez, quando Schwarz terminou a leitura de seu ensaio e passou a responder perguntas da platéia. O clima de improvisação fez bem à noite. É interessante sua tese de que a virada ocorrida no conceito de Machado, de jóia do conservadorismo brasileiro a autor subversivo, coincidiu com o golpe militar de 1964, quando, na opinião dele, os últimos resquícios do otimismo modernista foram soterrados e “todo mundo perdeu a ilusão com a elite brasileira”. De repente,…
Não gosto muito de ler teatro. Acho que pouca gente gosta – aquilo é feito para ser encenado, não é? Foi apenas no interesse da pesquisa que fazia para meu novo livro, de tema correlato, que há seis meses mandei a Amazon entregar aqui em casa um exemplar de The Coast of Utopia, a premiada trilogia de Tom Stoppard sobre a geração de intelectuais russos de meados do século 19 em cujas cabeças germinou com força a idéia de uma revolução feita pelas massas. Algum tempo depois, ainda estava lendo o livro quando soube que o dramaturgo inglês de origem tcheca viria à Flip. Meu primeiro pensamento foi: “Que coincidência”. E o segundo: “Que maluquice”. Stoppard é uma presença inusitada por algumas razões. Seu único livro em catálogo por aqui, lançado pela Rocco, é o roteiro do filme-pipoca “Shakespeare apaixonado”, do qual é co-autor – um projeto definitivamente menor, ainda que competente e divertido. Suas peças não são encenadas em nossos teatros, o que talvez faça sentido: jogos intelectualizados e referenciais, tapeçarias em que se juntam fatos históricos, debates filosóficos, personagens reais, as peças de Stoppard são dramas de idéias. Não têm nada de chatas ou cinzentas – seu senso…
Não fui à primeira Flip, em 2003, uma edição que ficou na história da festa como mito fundador, o Éden de gatos pingados que veio antes da Queda na massificação. No entanto, como descobri ao revirar meus arquivos agora há pouco, não deixei o assunto passar em branco. Num de meus primeiros artigos para o extinto NoMínimo, com o título acima, em agosto de 2003, falei da festa pelo ângulo de um quebra-pau supraliterário – ou infraliterário, pode escolher – que, embora não seja do tipo que muda a vida de ninguém, também não merece ser tratado como se não existisse. Afinal, a cidade se chama Parati ou Paraty? Como a dupla grafia domina a imprensa até hoje, confundindo muita gente, reproduzo abaixo a crônica de (homessa!) cinco anos atrás, que tenta encontrar resposta um pouco mais ilustrada para uma questão normalmente resolvida com o recurso simplório a leis federais, municipais etc. Em tempo, prefiro escrever Parati por uma razão simples: morro de medo de um precedente que inspire vereadores numerólogos e/ou caipiras a rebatizar suas cidades de Floreepa, Cuyabah, Seaureaukabba… * Falou em ortografia, o pessoal se empolga logo. Muita gente tem escassa disposição para enfrentar questões de língua…
A retrospectiva da seção dá um salto no tempo para ir entrando no clima da Flip. Esse sul-africano esquisitão aí ao lado foi responsável pelo momento mais polêmico – para mim e outras cinco pessoas o melhor, para a maioria do público um desastre – da festa paratiense do ano passado. O post abaixo foi publicado em 3/3/2007. * Para um homem de sua idade, cinqüenta e dois, divorciado, ele tinha, em sua opinião, resolvido muito bem o problema de sexo. Nas tardes de quinta-feira, vai de carro até Green Point. Pontualmente às duas da tarde, toca a campainha da portaria do edifício Windsor Mansions, diz seu nome e entra. Soraya está esperando na porta do 113. Ele vai direto até o quarto, que cheira bem e tem luz suave, e tira a roupa. Soraya surge do banheiro, despe o roupão, escorrega para a cama ao lado dele. “Sentiu saudade de mim?”, ela pergunta. “Sinto saudade o tempo todo”, ele responde. Acaricia seu corpo marrom cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor. E já que andamos falando do homem, vai aí o começo do tétrico romance “Desonra”, obra-prima do escritor sul-africano J.M. Coetzee (Companhia das Letras,…
Muso, personagem e guru de Manuel Bandeira e uma penca de nomes estelares do modernismo brasileiro, Jayme Ovalle (1896-1955) é a mais curiosa figura daquela geração. Artista sem obra – ou quase isso, embora fosse compositor talentoso e tenha emplacado um clássico, “Azulão” –, encarnou como ninguém o espírito de gratuidade, boemia e improvisação dos que fazem da própria vida matéria de arte e estão, bem, bebendo e andando para organizar essa bagunça em nome da posteridade. Virou mito, mas pagou um preço alto: por trás da lenda, quase sumiu. Não é exagero dizer que só agora, ao ganhar uma biografia, sua obra-vida fica completa. “O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle” (Cosac Naify, 400 páginas, R$ 55) está saindo numa daquelas edições primorosas que viraram a marca da editora paulistana depois de custar a seu autor, o jornalista mineiro Humberto Werneck, quase duas décadas de trabalho – um trabalho repleto de interrupções e adiamentos, naturalmente, como o biografado seria o primeiro a compreender. Werneck, autor também de “O desatino da rapaziada – Jornalistas e escritores em Minas Gerais” (Companhia das Letras), estará na próxima quinta-feira numa mesa da Flip, ao lado de Xico Sá, para falar de…
Em primeiro lugar, Walt Disney. Em segundo, Agatha Christie. Para provar que a língua inglesa é forte mas não é tudo, o pódio é completado por Jules Verne. Em quarto lugar, à frente de Shakespeare, uma surpresa saborosa: Lênin. A lista completa dos cinqüenta autores mais traduzidos do mundo desde 1932 segundo a Unesco, com o número de edições em línguas estrangeiras de cada um, pode ser consultada aqui. (Via blog da “New Yorker”.) Como curiosidade, está valendo. Não tenho nada contra essa promiscuidade de ficção e não-ficção, literatura “literária” e de massa. Mas que há algo de profundamente injusto em pôr a corporação do empresário Disney para brigar com autores de verdade, há.
Graças aos amigos que colhi através deste blog, chegou às minhas mãos o romance “Chiquita”, ganhador do Prêmio Alfaguara deste ano. É provável que eu tenha um dos poucos exemplares que há na Ilha, o que me obriga a lê-lo depressa e passá-lo à fila de amigos que esperam por ele. As mais de quinhentas páginas escritas por Antonio Orlando Rodrigues são atraentes não só pela história que narram, mas pelo círculo de mistério que envolve o próprio livro. Basta dizer que os meios oficiais cubanos ainda não anunciaram que um compatriota ganhou tão importante galardão. Os encantos do festejadíssimo – com razão – blog Generación Y, da cubana Yoani Sánchez, brotam da superposição de dois mundos inconciliáveis: a vida em Cuba, com seus milhões de anacronismos, e a consciência planetária de sua autora, uma jovem cevada na blogosfera sem porteiras do século 21. Essa superposição, livre de deslumbramento capitalista ou ranço programático, está na base do leque de efeitos que Yoani obtém: patéticos, cômicos, às vezes tristes de doer, em outras surpreendentemente ternos; quase sempre amargos, mas nunca derrotistas. Fidel Castro acaba de passar recibo. O post sobre o romance “Chiquita” (nada a ver com as “Chiquititas” da TV)…