Fujo do carnaval há muitos anos, mas mesmo a indiferença tem gradações. Dando uma espiada no arquivo do Todoprosa, constato – não sem surpresa – que ano passado fiz alguns acenos para Momo, entre eles uma discussão sobre a presença do ziriguidum na ficção brasileira e, passando da teoria à prática, nada menos que um conto de carnaval feito em casa. Mas não, este ano não vai ser igual àquele que passou. A menos que se considere como parte do delírio carnavalesco a história bizarra de Philip M. Parker (em inglês), que já publicou mais de 85 mil livros e diz que leva em média vinte minutos para escrever cada um. Aproveito que saí de fininho do salão para tirar umas curtas férias. O blog volta a ser renovado dia 13. Até lá.
Li este artigo do escritor e blogueiro Garth Risk Hallberg na revista eletrônica Slate (em inglês, acesso gratuito) como se estivesse diante de uma ótima peça cômica: entre uma risada e outra, um incômodo zumbido de apreensão ao fundo. O artigo é curto e o assunto rende pelo menos um livro – que provavelmente não demorará a ser escrito. Mas basta para indicar alguns caminhos para a desconstrução do mito dos “resenhistas amadores” da Amazon.com. De uns anos para cá, essas figuras desalojaram críticos profissionais como os principais “produtores de conteúdo” da megalivraria virtual e foram saudados pela vanguarda do deslumbramento tecnológico como guerreiros da geração Web 2.0, aquela em que profissionais embolorados são varridos do mapa por gente-como-a-gente, leitores-escritores cujo diletantismo radical é garantia de integridade e frescor. “Que monte de esterco!”, diriam os menos ingênuos numa tradução pudica. Hallberg delineia os previsíveis jogos de interesse, luta por prestígio, troca de favores, lobby editorial, desonestidade intelectual gritante e outras trapaças que, sob a falta de transparência patrocinada pela própria Amazon, transformam a recente instituição dos principais resenhistas amadores (sim, há um ranking) num puteiro de alta produtividade. Basta dizer que a número 1 da lista, chamada Harriet Klausner, detém…
Steve Jobs, da Apple, no blog de tecnologia do “New York Times”, falando sobre o Amazon Kindle e por que devem esperar sentados os que aguardam para breve o lançamento de um Mac E-Reader: Não importa se o produto é bom ou ruim, o fato é que as pessoas não lêem mais. Quarenta por cento das pessoas nos Estados Unidos leram um livro ou menos no ano passado. A concepção como um todo está corrompida de saída, porque as pessoas não lêem mais. Há quem lamente, há quem concorde. Mas há também os que apostam, lembrando que alguns anos atrás Jobs declarou os telefones celulares igualmente fora dos planos da empresa, que a engenhoca está quase pronta.
Me chamem de Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível. Há uma única e melancólica razão para que o início de “Moby Dick”, de Herman Melville, o começo mais “inesquecível”, citado e parodiado da literatura americana, tenha demorado quase dois anos para vir parar nesta seção: a insistência com que os tradutores brasileiros que conheço vertem a…
“Se for um livro, eu não li, não estudei, ou estudei e não lembro”. Essa é a resposta de uma aluna do terceiro ano do curso de Relações Públicas da Universidade de São Paulo para a seguinte pergunta: “Quem escreveu Macunaíma?” Para a mesma questão, outros palpites: “José de Alencar”, diz um aluno de Engenharia Agrícola da Unicamp; “Guimarães Rosa”, arrisca uma estudante de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cásper Líbero; “João Cabral”, afirma uma jornalista formada pela FIAM; “Camilo Castelo Branco”, aposta um jovem engenheiro mecânico recém-graduado pela Unicamp. Um aluno de Economia da Faculdade de Campinas responde com outra pergunta: “Tem opções?” Dos 30 jovens que entrevistamos nessa pequena pesquisa, apenas oito souberam dizer que Mário de Andrade era o autor de Macunaíma, um dos mais importantes títulos da literatura nacional. Começa assim o texto publicado por Luísa Pécora no site da revista “Cult” a propósito dos 80 anos de “Macunaíma”, em que a autora ouve professores para tentar entender por que o romance, “um dos mais importantes títulos da literatura nacional”, é tão pouco lido hoje. As intenções são nobres, como se vê, mas o início dificilmente poderia ser mais equivocado. Paremos para pensar. Se oito universitários…
Já que a pergunta “por que você escreve, escritor?”, mote de um pequeno conto (ou coisa que o valha) na nota anterior, parece ter furado um inesperado veio de polêmica entre os leitores do Todoprosa, cai bem lembrar um trecho marcante do discurso do turco Orhan Pamuk (aqui em inglês) na cerimônia do Nobel de 2006 – mais tarde publicado em forma de livreto pela Companhia das Letras, ao lado de dois outros discursos do homem, com o título “A maleta do meu pai”. A releitura desse trecho me levou a duas constatações, a primeira óbvia, a outra nem tanto: o jornalismo glória-maria não é exclusividade do Brasil; é possível, sim, levar a sério essa “pergunta de mil respostas”, de preferência enumerando, como Pamuk, uma infinidade de razões parciais em que a força do conjunto e de certos achados parece ter o poder de anular a banalidade dos lugares-comuns que lá vão de cambulhada. Aproveitem: A pergunta que, com maior freqüência, é dirigida a nós, escritores, a pergunta favorita, é: por que vocês escrevem? Escrevo porque tenho uma necessidade inata de escrever. Escrevo porque não posso ter um trabalho normal como as outras pessoas. Escrevo porque quero ler livros iguais…
O ótimo crítico James Wood discorre (em inglês) sobre Diary of a bad year, de J.M. Coetzee (Señor C é o personagem principal do livro, alter ego do autor): No último verbete do romance, “Sobre Dostoiévski”, Señor C escreve: “Li mais uma vez ontem à noite o quinto capítulo da segunda parte de Os irmãos Karamazov, o capítulo em que Ivan devolve seu ingresso para o universo que Deus criou, e de repente me vi soluçando incontrolavelmente.” Não é o poder da argumentação de Ivan, diz ele, que o arrebata, mas as “entonações da angústia, a angústia pessoal de uma alma incapaz de suportar os horrores deste mundo”. Podemos ouvir a mesma nota de angústia pessoal na ficção de Coetzee, mesmo que essa ficção sustente que não está nos oferecendo uma confissão, mas apenas a representação de uma confissão. Seus livros fazem todos os barulhos pós-modernos corretos, mas a força deles repousa na relação atônita que mantêm com uma tradição mais antiga, dostoievskiana, em que sentimos a marca do autor confessional, por mais recôndita e velada que seja. O texto, que faz uma análise brilhante do Formidável – mas sempre um tanto Enigmático – Sr. C., é leitura recomendável para…
A excelente revista eletrônica americana Words Without Borders se dedica à tradução para o inglês de escritores do mundo inteiro. Mereceria uma recomendação aqui de qualquer jeito, mesmo que a edição de janeiro de 2008, “Os sete pecados mortais”, não trouxesse um conto meu (brilhantemente traduzido por Fernanda Abreu), The Man Who Killed the Writer.
“Estes são os autores americanos mais importantes de todos os tempos”, proclamou há alguns Natais a revista francesa Lire: “Raymond Chandler, Faulkner, John Fante”. Há poucas semanas, Michel Tournier (que não tinha até agora reputação de idiota) elegeu como livro do ano em The Times Literary Supplement o novo romance de Amèlie Nothomb, Ni d’Eve ni d’Adam, que já havia proposto, naturalmente sem sucesso, para o Prêmio Goncourt. Em certo jornal italiano, um célebre crítico de cujo nome não quero me lembrar coroou como melhor livro de 2007 a obra completa de Dario Fo, “o Shakespeare do século 20”, juízo que, se exato, faria de Shakespeare o Dario Fo do século 17. “Sobre gostos não há nada escrito”, escreveu alguém que nunca abriu um suplemento literário. Oscar Wilde argumentou que fazer listas do que se deve ler é uma tarefa inútil ou perniciosa, uma vez que um autêntico apreço pela literatura é sempre questão de temperamento e não pode ser ensinado. Propôs, em vez disso, listas do que não se deve ler: as obras teatrais de Voltaire, a Inglaterra de Hume, a História da filosofia de Lewes… Seguindo seu exemplo, Mark Twain opinou que a melhor forma de começar uma…
Flowerville é um condomínio de luxo, com arquitetura e infra-estrutura modernas, mas comandado por senhor que age como um grande patriarca, um caudilho. O empreendimento só foi possível por causa de uma escusa troca de favores feita durante o governo militar, lembrando de como o capital no Brasil esteve vezes demais ligado ao Estado. Essa mistura de moderno e antigo integra toda a narrativa e, apesar do esforço da cúpula de Flowerville em continuar “saltando à frente” e ignorar os problemas ainda abertos, é o passado que ditará os rumos do enredo. A epígrafe do livro sobre a “máscara de puro sonho” é tirada da série de quadrinhos Sandman, de Neil Gaiman. Mais do que uma citação, a referência simultânea aos quadrinhos e ao universo onírico é incorporada profundamente na linguagem e na história. O grotesco e o absurdo não aparecem como uma exceção, mas como parte do modus operandi de Flowerville. Mais uma vez, tal como a mistura do moderno e arcaico, essa é uma abordagem que serve muito bem para o Brasil em geral, um lugar em que, hora ou outra, recebem-se notícias como uma adolescente encarcerada com homens. Enfim, o absurdo é produto da nossa “maquinaria nacional”,…
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Ano passado, o conto natalino do blog foi o insuperável “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles – quem perdeu pode clicar aqui. Este ano é a vez de O peru de Natal, de Mario de Andrade, que já seria ótimo se não tivesse nada além da frase acima.
Prólogo: peço desculpas se esta nota vem meio em cima do laço, mas, caso seja tarde para municiar as compras de Natal, acredito que pelo menos as listas de livros para as férias ainda estejam, no geral, abertas à negociação. Não sei se os seis romances abaixo são “os melhores do ano” – existirão mesmo tais coisas? Só posso garantir que são, em minha imodesta opinião, os melhores que li e comentei no blog. Nessa retrospectiva 2007 garimpada nos arquivos do Todoprosa, basta clicar no título para ler uma pequena resenha, publicada aqui na época do lançamento, além de, na maioria dos casos, um trecho da obra. O filho eterno, de Cristovão Tezza. Na praia, de Ian McEwan. As Benevolentes, de Jonathan Littell. A cada um o seu, de Leonardo Sciascia. O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho. Arthur & George, de Julian Barnes.
Não há razão alguma para pensarmos que a leitura e a escrita estão à beira da extinção, mas alguns sociólogos especulam que ler livros por prazer será um dia o território de uma “classe leitora” especial, em grande medida como ocorria antes do advento do letramento em massa, na segunda metade do século XIX. Mas, eles advertem, a leitura provavelmente não mais recuperará o prestígio que vinha com a exclusividade; poderá acabar se tornando “um passatempo cada vez mais esotérico”. … Numa visão mais ampla, não é o abandono da leitura que precisa ser explicado, e sim o fato de que sejamos sequer capazes de ler. “O ato de ler não é natural”, Maryanne Wolf escreve em “Proust and the Squid” [“Proust e a Lula”, atenção para o artigo feminino], um relato sobre a história e a biologia da leitura. Amantes da leitura que tenham problemas cardíacos ou qualquer tipo de hipersensibilidade nervosa devem evitar este artigo (em inglês, acesso gratuito) de Caleb Crain na revista “New Yorker”, a propósito de um livro sobre a história da leitura. Não pela platitude de que “o ato de ler não é natural” (o mesmo pode ser dito de escovar os dentes, usar…
Ao trazer o mineiro Luiz Vilela no entrevistão do Paiol Literário e o gaúcho Sergio Faraco na seção Dom Casmurro, com a íntegra do conto “O céu não é tão longe”, a edição de dezembro do “Rascunho” junta dois dos maiores contistas brasileiros vivos. Ambos são leitura mais recomendável que nunca neste momento de vale-tudo estético e inflação contística galopante, em que qualquer texto cotó vem tirando onda de “conto”. Nenhuma palavra dos editores indica que, ao juntar os dois mestres, o jornal curitibano quis fazer uma homenagem a essa brilhante geração de contadores de histórias – Faraco nascido em 1940, Vilela em 1942. Mas fez, e isso basta.
Foi no verão de 1994, já faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três importantes acontecimentos tinham então acabado de se produzir em minha vida: meu pai havia morrido, minha mulher me abandonara e eu abandonara minha carreira de escritor. Minto. Dessas três ocorrências, as duas primeiras eram exatas, exatíssimas; a terceira não era tanto assim. Na verdade, minha carreira de escritor nunca decolou; portanto, dificilmente poderia tê-la abandonado. Grande parte do apelo do romance “Soldados de Salamina”, sucesso internacional do espanhol Javier Cercas (Francis, 2002, tradução de Wagner Carelli), está no seu jeito – despretensioso só na aparência – de alternar constantemente o foco entre a História (mundial) e uma história (pessoal). O efeito ganha profundidade ao longo de 240 páginas, com outro par de opostos – realidade e ficção – para complicar. As primeiras linhas do livro expõem todo o projeto como miniatura.
A primeira edição da Copa de Literatura Brasileira terminou hoje com a vitória de “Música perdida”, de Assis Brasil, sobre “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, por 9 x 5 – placar de futebol de areia. É que, pelas regras da final, todos os jurados das rodadas anteriores têm direito a voto. Confiram lá. Entre os muitos temas de discussão que a brincadeira deixa no ar, um dos mais interessantes é esta (aparente) contradição: a vitória de um romance clássico, para muita gente até conservador (não o li), numa competição off-off organizada por jovens blogueiros. Será que daqui a pouco surgirão teorias sobre os romances “copeiros”, aqueles que por terem uma personalidade menos agressiva, menos crivada de arestas, acabam se dando bem numa competição mata-mata? Quaisquer que sejam as conversas que a Copa já inspirou e ainda vai inspirar, das mais relevantes às mais tolinhas, não tenho dúvida de que estamos diante de uma das melhores notícias surgidas ultimamente no front sonolento do debate literário brasileiro. Vida longa a ela.
Cansado de experiências de criação literária online? Eu também, um pouco, mas isso não quer dizer que não haja formatos novos por descobrir. Um dos mais curiosos estreou esta semana: o site Estrangeiros, uma idéia da escritora brasileira Daniela Abade, reúne sete autores – além da própria Daniela, a argentina Florencia Abbate, a austríaca Claudia Chibici-Revneanu, o italiano Max Mauro, o canadense David McGuire, o australiano Matt Rubinstein e o mexicano Gonzalo Soltero. Em cinco idiomas, cada um com o seu, e sem tradução, eles escrevem posts fictícios sobre cidades situadas no país de um dos colegas. Cidades que nunca visitaram. Daniela, autora do romance “Crônicos” (Agir), tem experiência nesse tipo de invenção. Ficamos amigos em 2004, durante a ambiciosa, divertida (para nós com certeza, mas acho que também para os leitores que entraram no clima) e absurda Cadeia de Palavras.