Quando Kelly de Souza, repórter da revista da Livraria Cultura, me procurou (e a outros escritores brasileiros) para perguntar que livro eu gostaria de ter escrito, não imaginei que aquilo fosse dar numa matéria tão interessante.
Sem mudar de assunto: a Feira de Livros de Frankfurt, o mais importante supermercado mundial de direitos literários, que começa depois de amanhã, também está preocupada com o livro digital: Metade dos profissionais do setor entrevistados pelos organizadores da feira estimou que a venda de livros digitais em 2018 será maior do que aquela de edições baseadas em papel. Os editores estão tentando descobrir um modo de ganhar dinheiro com a tendência, uma vez que muitos internautas já se habituaram a baixar conteúdo de graça.
Dois dias seguidos, duas cidades distantes cultural e geograficamente, e a mesma preocupação: o Kindle – ou um similar – vai matar o livro (de papel)? Falando na Feira de Livros do Sesc Paraná, em Curitiba, quinta-feira de manhã, e na Bienal do Livro de Pernambuco, em Recife, ontem à noite, encontrei a mesma dúvida, a mesma angústia. E me espantei um pouco de descobrir o quanto essa questão não me preocupa. Sim, estamos vivendo um momento de transição profunda nas formas de ler, escrever e veicular literatura. Sim, ninguém que seja minimamente ponderado pode se gabar de saber onde isso tudo vai dar. Mas uma coisa, à medida que eu tratava de improvisar respostas tateantes à preocupação do público, foi me parecendo cada vez mais clara: aqueles que temem uma revolução completa no formato do livro tradicional deveriam ver os e-readers como aliados, não como inimigos. Se a internet, com seus recursos de som, imagem, busca e interatividade, tem o potencial – ainda não realizado – de levar a narrativa a um hibridismo tridimensional em que provavelmente já não caberá falar de “literatura”, os Kindles e semelhantes trabalham no sentido contrário, o de preservar as formas literárias que nos…
A vitória da ficcionista e poeta alemã (de origem romena) Herta Müller significa que, por dois anos seguidos, o Nobel de Literatura é concedido a um escritor premiadíssimo, respeitadíssimo, mas de reduzida projeção internacional, daqueles que pouca gente leu. Ano passado, para quem não se lembra (e é mesmo fácil esquecer), o ganhador foi o francês J-M.G. Le Clézio. Essa ignorância não é exclusiva de um Brasil periférico, onde apenas dois livros da autora são encontráveis: “O compromisso”, lançado recentemente pela Globo com tradução de Lya Luft, e o já remoto (de 1993) “O homem é um grande faisão sobre a Terra”, da editora portuguesa Cotovia. No site do Nobel, até este momento, uma enquete sobre quem já leu Herta Müller tem o resultado parcial de 92% x 8% a favor do não. A repetição desse padrão por duas edições seguidas é uma novidade nos últimos anos. Doris Lessing (2007), Orhan Pamuk (2006), Harold Pinter (2005), Elfriede Jelinek (2004) e J.M. Coetzee (2003) compõem uma galeria com a qual o público, na maioria dos casos, pode se relacionar. Talvez o Nobel, depois de brigar explicitamente com a literatura americana no ano passado, não queira ser pop – o que pode…
Como a disputa agora é séria, e só elegeremos o melhor começo inesquecível de todos os tempos uma vez, que tal deixar a votação (no post abaixo) rolando por duas semanas? É o tempo que o Todoprosa vai tirar de folga. Dia 7 de outubro eu volto a atualizá-lo. Abraços a todos e até lá.
Esta é só para os leitores do Rio: amanhã, domingo, último dia da Bienal do Livro, estarei no Café Literário às 17h para falar, ao lado de Carlos Heitor Cony, sobre o tema “A política entre a ficção e a realidade” – no meu caso, leia-se “Elza, a garota”; no de Cony, leia-se uma obra inteira e, de forma mais diretamente ligada ao mote político, “Pessach: a travessia”. Quem quiser aparecer será muito bem-vindo. A mediação ficará por conta de Marcelo Moutinho.
E a relação dos finalistas do Portugal Telecom, hein? Nos seis anos de existência do galardão (os quatro primeiros, é verdade, em âmbito apenas nacional), só um português – o luso-angolano Gonçalo M. Tavares, em 2007 – ganhou o primeiro prêmio. Tem muita gente apostando que chegou a hora de equilibrar um pouco mais o jogo.
O gigantesco parque temático de Harry Potter que abrirá ano que vem em Orlando, na Flórida, leva o blogueiro Alison Flood a especular (em inglês, acesso gratuito) quais as outras obras literárias que mereceriam essa glória mundana – ele fala de C.S. Lewis e de Stephenie Meyer, tudo meio óbvio. Gostei mais quando aquele estranho parque temático de Dickens inaugurado na Inglaterra há dois anos – comentado na época aqui – inspirou em colegas blogueiros fantasias irônicas como a de um aterrorizante Castelo de Kafka. É engraçado imaginar por dois minutos o tipo de empreendimento paraliterário do gênero que poderíamos ter no Brasil se houvesse por aqui mais dinheiro para gastar/apreço pela literatura/paixão por parques idiotas – sei lá qual é a melhor alternativa. Exercício para mentes desocupadas? Provavelmente sim. Mas que parece um desperdício nunca termos podido visitar o Sítio do Picapau Amarelo, comprar um potinho de purpurina com a marca Pirlimpimpim e almoçar uma galinha ensopada no Tia Nastácia, isso parece. (Sim, dizem que aquele que existe em Taubaté é simpático, mas parece estar mais para Museu Lobato, filho ilustre da terra, do que para parque temático.)
…numa única impressora a jato de tinta, o trabalho levaria 3.805 anos e produziria uma pilha de papel de 544 mil toneladas; e outros números igualmente inúteis – aqui.
“Seu cachorro é gay?”, “Guerra nuclear: o que você pode ganhar com ela”, “Torne sua casa à prova de bombas”, “A vagina mal-assombrada” (“É difícil amar uma mulher cuja vagina é um portal para o mundo dos mortos”, diz a apresentação), “Caixões: faça você mesmo”, “Origami de toalha”, “A termodinâmica da pizza” e o sensacional “Como sobreviver a uma revolta dos robôs” (foto ao lado) são alguns dos títulos disponíveis na recém-criada seção de livros esquisitos do sebo online AbeBooks.com. Vale fazer uma visita com calma. (Via blog de livros do Guardian.)
Para quem nunca estudou letras nem gostou de ler crítica, é a chance de ter contato, mesmo que resumido, com as principais técnicas, discussões e correntes da história da literatura. Parece burocrático, mas evita a tentação de reinventar a roda. (…) Para quem está ansioso por mostrar seu trabalho, é a chance de evitar jogá-lo sem filtro num blog ou livro pago do próprio bolso, o que no futuro será fonte de culpa e horror. (…) oficina não dá talento a ninguém, e sim melhora a técnica, que é o instrumento para levar o talento à página em branco. Não imagino como possa acontecer o contrário, isto é, as aulas castrarem o potencial de alguém. O escritor gaúcho Michel Laub, que lançou este ano o romance “O gato diz adeus”, é freqüentemente citado como argumento vivo em defesa das oficinas literárias por ter passado, como Cintia Moscovich e Daniel Galera, pelas aulas de Assis Brasil. Agora ele verbaliza o argumento e o desdobra em dez partes, nesta lista sensata publicada pelo jornal “Zero Hora” e republicada em seu blog. Nunca passei por oficina nenhuma, mas tendo a concordar com tudo ou quase tudo. Bom motivo para soprar as brasas da…
Na primeira missa do dia, ouviu o coro entoando o mais estranho dos latinórios: Membrum virile, mulier super virum, vas naturaaaalis… Vas prepooosterum! A voz de Alfombra ficou martelando em seus ouvidos as obscenidades extraídas de autos brutais pelo resto da manhã. Ocorreu-lhe a certa altura que o gordo ancião trocaria de bom grado uma galeota repleta de tonéis de vinho verde pelas confissões encadernadas em letra de fôrma. Vas prepooosterum! Lembrou-se que na noite anterior sonhara com Santo Agostinho, um Santo Agostinho invertido que começava a vida impoluto e a terminava se esbodegando em todas as orgias. No fim, Frei Alfombra o passava no espeto. Havia um outro condenado, Glauceste. Antes de marchar para a fogueira, o grande árcade soprara em seu ouvido: – É esta a nobre causa, Simão! Presta atenção: é esta a verdadeira Inconfidência! A edição F – isto é, a sexta – da bela revista de contos trimestral “Arte e Letra: Estórias” (96 páginas, R$ 18,50) traz um conto inédito meu, “Vas preposterum”, uma fantasia cívico-pornográfica ambientada em Vila Rica no tempo da Inconfidência Mineira. Lá estou na excelente companhia de, entre outros, William Faulkner, Antonio Tabucchi, Arthur Conan Doyle, Ryûnosuke Akutagawa, Luiz Vilela e…
O que os livros “A condição humana”, de André Malraux, “Killer in the rain”, de Raymond Chandler, “Christine”, de Stephen King, e “The complete shorter fiction”, de Virginia Woolf, têm em comum? Foram todos lançados no ano de 1899, segundo o Google Book Search. Onze anos depois de “A fogueira das vaidades”, de Tom Wolfe. E o pior é que esse tipo de disparate está muito longe de ser raro na Biblioteca Universal do Google, que chega a extremos bibliográficos hilariantes como o de classificar uma edição de “Moby Dick” na rubrica Computação – informa Geoffrey Nunberg em artigo (em inglês) publicado pelo “Chronicle of Higher Education”. Sim, em breve todo o conhecimento produzido pela humanidade estará online. Resta saber a que preço. (Via Arts & Letters Daily.)
Vejam Cormac McCarthy, que por anos parecia ser o mais velho modernista vivo em cativeiro, mas que inaugurou sua fase madura com um romance sobre um serial killer e o seguiu com uma obra de ficção científica apocalíptica. Vejam Thomas Pynchon – em “Inherent vice”, ele trocou suas pesadas acrobacias verbais de sempre pela estrutura mais manejável de um romance de detetive hard boiled. Esse é o futuro da ficção. O romance está finalmente despertando de um cochilo de pedra de cem anos. As velhas hierarquias de gosto estão desmoronando. Os gêneros se hibridizam. A balança do poder está deixando de pender para o escritor e voltando para o leitor, e pactos com o gosto do público vão sendo feitos por toda parte. O lirismo está em declínio, enquanto o suspense, o humor e o ritmo se livram de seus estigmas e assumem o lugar de tecnologias literárias centrais do século 21. De objeto de arte solene e hermético, o romance vai desabrochando em algo mais aberto e casual: uma literatura do prazer. Os críticos terão que acompanhar a mudança. Essa nova linhagem de romances é resistente à interpretação, mas não da forma como a escola modernista era. São livros…
“Édipo Rei” – Cotação média dos leitores: Quatro estrelas. Sófocles é um autor satisfatório que escreve numa prosa clara e ágil. Os jovens em especial podem aprender bastante imitando o Sr. Rei, até o momento em que ele sai um pouco dos trilhos perto do fim. Nada que vá fazer o chão tremer, mas a coisa tem tutano. Devo admitir que ainda estou meio confuso com a subtrama bizarra envolvendo a mãe do Sr. Rei. O satirista americano Joe Queenan consegue alguns momentos divertidos ao imaginar, no Wall Street Journal (em inglês, acesso gratuito), como seriam as resenhas de certos clássicos se em sua época já existissem os leitores da Amazon. Nada que vá fazer o chão tremer, mas… (Via Arts & Letters Daily.)
Com este argumento eu ainda não tinha esbarrado: uma pesquisa (em inglês) sustenta que os leitores digitais de livros têm o potencial de reduzir as emissões de dióxido de carbono em quase 10 milhões de toneladas nos próximos três anos.
Ninguém tomava ao pé da letra as coisas que Martin Pemberton dizia; ele era melodramático demais, ou atormentado demais, para falar sem floreios. Por isso as mulheres o achavam atraente – viam-no como uma espécie de poeta, embora ele fosse mais crítico do que poeta, um crítico de sua própria vida e época. Assim, quando Martin começou a dizer que seu pai ainda estava vivo, nós que o ouvíamos falar e nos lembrávamos de seu pai tínhamos a impressão de que ele estava se referindo à persistência do mal, em termos gerais. Alguém, creio que Don DeLillo, já disse que o segredo da literatura está no modo como se enfileiram palavras, o resto é secundário. O que sugere um paradoxo: o que há de mais “profundo” na escrita estaria logo ali na superfície, numa combinação de sinais gráficos que leva o leitor a submergir naquilo – ou ir embora. O primeiro parágrafo de “A mecânica das águas”, do escritor americano E.L. Doctorow (Companhia das Letras, 1995, tradução de Paulo Henriques Britto), é um ótimo exemplo de como pode ser poderoso esse negócio de uma-palavra-depois-da-outra. Publicado em 1/5/2007.