A associação de palavras é um jogo curioso. De repente, surfando a onda dos debates exasperados sobre “judiar” e “denegrir”, são muitos os leitores que me perguntam ao mesmo tempo sobre “coitado”. Não chego a entender bem por que isso acontece, o fato é que a palavra se impõe. Querem saber se é verdade que vem de coito, cópula, e significa em sua origem “submetido a coito, fodido”. Não, não é verdade. Não encontrei em autor algum essa ligação, que tudo indica ser mais uma das lendas etimológicas que vicejam por aí. Reconheça-se que é uma das mais tinhosas: parece fazer o maior sentido, mas só parece. Coito vem de uma forma nominal do verbo latino coire – ir com, engajar-se em sexo com – que encontra eco numa expressão ainda popular como “ela vai com qualquer um”. Coitado, por seu turno, é só o particípio do verbo coitar (fazer sofrer, atormentar), hoje em desuso, descendente do latim vulgar coctare e inteiramente desvinculado de coito. É o que juram os sábios. Às vezes me sinto meio estraga-prazeres. Publicado no “NoMínimo” em 28/11/2005.
Devo a uma repórter que teve recentemente a desfaçatez de me fazer uma pergunta batida – “Qual foi o primeiro livro inesquecível da sua vida?” – o retorno de uma memória poderosa que se encaixa bem na discussão que andou rolando na caixa de comentários do último post, sobre a importância da embalagem e dos apelos extraliterários na descoberta dos livros. Porque foi exatamente isso, uma descoberta, o que eu fiz quando, aos sete anos de idade, decidi subir numa cadeira para alcançar aquele portentoso volume de capa dura na estante de meus pais, chamado “A Divina Comédia”. Calma, não vou dizer aqui que li Dante aos sete anos. Imagino que tenha no máximo passado os olhos pelas palavras, sem nada entender. O que me fisgou – e me fez voltar repetidamente ao livro, anos a fio – foram as ilustrações do francês Gustave Doré (1832-1883), principalmente as do Inferno. O Inferno de Dante segundo a visão gótica e romântica de Doré revelou aos meus olhos um território estonteante de terror e sensualidade. Imagino que o impacto não seria o mesmo para as crianças de hoje, com seu acesso mais ou menos livre a imagens fortes, mas, naquele finalzinho dos…
Descubro no blog de livros do Guardian esta capa para uma nova edição de “O morro dos ventos uivantes”, de Emily Brontë, inspirada – para usar um termo gentil – na estouradíssima série de livros de vampiros para adolescentes de Stephenie Meyer, “Crepúsculo”. E para não deixar ninguém em dúvida, um aviso em letras brancas sobre um disco vermelho logo na capa explica que se trata do “livro preferido de Bella e Edward”, heróis da série. São os ventos uivantes do marketing, paciência. Por enquanto, não tem graça. Mas imagino que seja de rolar de rir daqui a uns tantos anos, quando (suponho ou torço?) os livros de Meyer estarão completamente esquecidos e o de Brontë, não.
No ‘Para escrever’ de Luiz Antonio de Assis Brasil, a terceira regra básica é a seguinte: “Usar material de primeira qualidade: bom computador, bom papel de impressão, bons cadernos (sugiro o Moleskine), boas canetas, bons lápis”. Leia outra vez, por favor. Em outras palavras, preciso ter muito dinheiro para escrever, uma vez que tudo que foi listado aí custa caro (um Moleskine custa em torno de uns 50 reais). Não posso, por exemplo, escrever no meu caderno da extinta Papelaria União?! Ou na minha caderneta Tilibra?! * No ‘Para escrever’ de Marcelino Freire, a quinta regra básica é esta: “Ler e beber muito. E, no mais: viver”. Tudo bem quanto a ler muito. Mas e “beber muito”?! Beber água?! Coca-cola?! Chá?! Não. Acredito que “beber muito” se refira beber muita cerveja, vodka, tequila e etc. E “viver”?!. Até onde eu saiba nenhum morto é capaz de escrever. Viver é experimentar a vida?! Viver e “beber muito” estão, quase com certeza, relacionados a uma imagem de escritor junkie/beatnik/freak. A reportagem (só para assinantes) sobre a onda das oficinas literárias publicada pelo caderno Mais! da “Folha de S.Paulo”, domingo agora, provocou o comentário acima no blog Pesa-Nervos. De fato, as “regras básicas”…
Entre todas as histórias possíveis, certamente já terá acontecido alguma como esta. Um rapaz de dezessete anos, viciado em drogas (já chegou a roubar e prostituir-se para comprá-las) e com pretensões rimbaudianas a poeta maldito, tem um ciúme doentio da mãe divorciada, principalmente de um caso que ele desconfia que ela mantém com um homem muito mais jovem. Uma noite, a vê chegar em casa parecendo ligeiramente alegre de bebida, e com ares de quem veio de um encontro amoroso, usando uma blusa decotada e saia justa. Enquanto ela se despe em seu quarto, ele ali entra, abruptamente, vestido apenas com uma bermuda, e observa o sutiã vermelho e a calcinha preta que ela usa. – Isso é roupa de vagabunda. – Não fala assim da sua mãe. Ele puxa o corpo dela para si e o aperta: – Quem sabe você faz comigo também? E já que a seção entrou definitivamente na era do conto, aí vai o início do espantoso Um conto nefando?, um dos mais surpreendentes do excelente “O vôo da madrugada” (Companhia das Letras, 2003), de Sérgio Sant’Anna. Publicado em 7/11/2007.
Não é bacana essa edição pulp de um livro de Sherlock Holmes – “O vale do medo”, o último da série estrelada pelo detetive mais famoso da literatura – que será lançada em dezembro (em inglês, acesso gratuito) por uma editora popular americana? Para o comprador potencial não perceber que se trata de uma obra do “embolorado” Arthur Conan Doyle, que tem um certo ranço de clássico, o autor virou A.C. Doyle. A arte dispensa apresentações. Fiquei pensando se um truque parecido não poderia ser usado por aqui para vender, sei lá, “Grande sertão: veredas”, de J.G. Rosa, em bancas de jornal. Na capa, a fumaça dos clavinotes deixaria entrever, ao fundo, uma silhueta feminina tomando banho de rio. Sob o título, algo bem kitsch como: “O diabo lhe deu poder. Ela só queria lhe dar amor”. Ou coisa parecida. Sugestões são bem-vindas.
Está certo, você veio parar aqui por acidente. Estava atrás de Roberto Bolaños, um artista mexicano plural mais conhecido como Chaves, e ficou furioso ao saber que o tema era um tal de Roberto Bolaño, escritor chileno singular. Acontece – o armazém da internet tem prateleiras infinitas e nem sempre a sinalização ajuda. Conheço um sujeito que andava à procura de artigos sobre Francis Bacon, o filósofo, e vivia caindo em páginas sobre a Perdigão. A diferença é que ele nunca culpou a banha de porco por seus infortúnios. O assunto aqui é literatura, desculpe. Isso não quer dizer que o blogueiro e seus leitores não tenham outros prazeres na vida. Sei que parece difícil de acreditar, mas a grande maioria de nós trepa, vê séries de TV americanas, ouve música, vai ao cinema e até – sim, eu juro – tem paixão por algum time de futebol. Acontece que, como o fornecimento dessas mercadorias já é farto em outras bibocas da rede, há quem prefira investir neste nicho exótico. Não existem comunidades inteiras dedicadas à podolatria? À volta de D. Sebastião? À arte de cultivar maná-cubiu? Pois então. Esquisitices. Não fazemos por mal. Ninguém o julgará uma besta apenas…
Sabe os “Sobrescritos”, aquela sessão deste blog em que pequenos contos ou crônicas ou rabiscos de gênero indefinido têm sempre como tema central o ato de escrever e seus periféricos – como ler, publicar, criticar, embolachar o crítico, fazer pose, iludir-se, desiludir-se, cortar os pulsos etc.? Pois é: uma reunião dos 40 melhores “Sobrescritos” desses quase três anos e meio do Todoprosa vai ser lançada em breve naquele engenhoso formato vintage conhecido como livro, com projeto gráfico bacana, pela pequena – mas cada vez maior – Arquipélago Editorial, editora gaúcha comandada pelo Tito Montenegro. Aguardem mais notícias. (A propósito: a Arquipélago está lançando neste momento o aguardadíssimo “O pai dos burros”, dicionário de lugares-comuns do jornalista Humberto Werneck.)
– Ele está fotografando há três anos, dá só uma olhada no trabalho – disse Maurice. – Aqui, esse cara. Repara na pose, na expressão. Quem ele te lembra? – Parece um pilantra – disse a mulher. – Ele é um pilantra, o cara é um cafetão. Mas não é disso que eu estou falando. Aqui, essa. Dançarina de cabaré nos bastidores. Te lembra alguém? – A garota? – Dá um tempo, Evelyn: a foto. A sensação que o cara captura. A garota tentando parecer adorável, exibindo a mercadoria, que aliás não é nada má. Mas repara no camarim, nas tralhas brilhosas todas, essa pobreza de papel laminado. – Você quer que eu diga Diane Arbus? – Eu quero que você diga Diane Arbus, isso seria bem legal. Eu quero que você diga Duane Michaels, Danny Lyon. Eu quero que você diga Winogrand, Lee Friedlander. Quer voltar alguns anos no tempo? Eu gostaria muito que você dissesse Walker Evans também. – Seu velho chapa. – Muito, muito tempo atrás. Antes até do seu tempo. Não sei por que o diálogo que abre “LaBrava”, de Elmore Leonard, que li há uns vinte anos, nunca me saiu da cabeça – nem todo…
E por falar em inutilidade (do tipo divertido, é claro): andam provocando comoção os rumores de que a voz que narra em off o vídeo promocional do novo livro de Thomas Pynchon, Inherent Vice, é do próprio reclusíssimo autor. A editora Penguin e a produtora do vídeo não negam nem confirmam. Hmmm, quem sabe? Mas que parece o João Ubaldo, parece.
Não sei se os leitores habituais do blog terão percebido, mas o acaso produziu um efeito interessante por aqui no fim da semana passada. O post de sexta-feira, a propósito de um episódio de Twilight Zone, falava de uma certa atmosfera pesada de antiintelectualismo que sobrevive no Brasil. E os comentários deixados por vários leitores no post de sábado – que não pretendia ter nada a ver com o peixe, limitando-se a examinar certas curiosidades vadias sobre a origem do adjetivo “crasso” – trataram de ilustrar o anterior. A ira despertada em alguns leitores – em geral desavisados que caem aqui atraídos por uma chamada na capa do portal – pelas questões de língua e linguagem abordadas na seção “A palavra é…” é uma velha conhecida. “Inútil” costuma ser o qualificativo mais brando que esse tipo de texto lhes desperta. O que é compreensível, talvez: utilidade prática não é mesmo o forte da casa. Restaria esclarecer por que, a julgar pela virulência da reação, a croniqueta lingüística lhes parece mais “inútil” do que uma notícia sobre o pum que Miley Cyrus deu no táxi ou outras dessas informações que compõem 90% do show internético – mas deixa pra lá. A…
(…) é evidente que ainda não se ressaltaram, conveniente e convincentemente, as qualidades que converteram a obra de Leonardo Sciascia em uma das mais importantes precursoras da profunda renovação da literatura policial ou romance negro que se produziu nas últimas décadas do século passado e que sobrevive até hoje. Às vezes, aliás, nem se recorda que, ao lado de autores como o brasileiro Rubem Fonseca e o americano Donald Westlake (em seu momento literariamente distantes entre si, mas conectados pelas exigências da época e o esgotamento de um certo tipo de escritura), Sciascia foi um dos encarregados de estabelecer, na década de 1960, os pressupostos estéticos e sociais do que seria a revolução conceitual que acabaria por conferir um caráter literário e social indiscutível à narrativa policial. Foi uma surpresa agradável ver que, fazendo no “Babelia” do último sábado uma defesa do excelente Leonardo Sciascia, seu xará Padura – um autor cubano de quem li apenas o bom “Adeus Hemingway”, daquela coleção Literatura ou Morte da Companhia – acaba por trazer de cambulhada em sua vindicação um velho conhecido nosso.
Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? – logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. E já que mencionei a sisudez da literatura contemporânea, aí vai o supra-sumo do contrário: o primeiro parágrafo do romance “A lua vem da Ásia”, lançado pelo grande Campos de Carvalho (1916-1998) em 1956 (José Olympio, Obra reunida, 2a. edição, 1995). Publicado em 10/2/2007.
Revi dia desses, graças ao Torrent, depois de um quarto de século, um dos episódios que mais tinham me marcado na velha e brilhante série americana de TV Twilight Zone (“Além da Imaginação”) – uma paixão que compartilho com Molina, protagonista de meu último livro. O filmete de meia hora se intitula Time enough at last e conta a história de um caixa de banco chamado Henry Bemis, uma caricatura de rato de livraria com seus óculos fundo-de-garrafa e seu jeito de perfeito bundão. Bemis não quer nada desta vida além de ler, ler, ler, mas habita um mundo de antiintelectualismo exponencial, filisteu até a raiz e violentamente hostil ao seu prazer – basta dizer que sua mulher, que o trata como o maior dos fracassados, o proíbe de ler em casa. Para encurtar a história, o episódio acaba com Bemis sobrevivendo sozinho ao holocausto nuclear e se vendo, enfim, com tempo e calma para devorar todas as letrinhas do mundo. Pena que, antes de abrir o primeiro volume, seus megaóculos se espatifem no chão, deixando-o para sempre cegueta entre as infinitas pilhas de livros. Bom, o reencontro com a história deu naquilo que costuma ocorrer nesses casos: enxerguei defeitos…
Para quem ainda não sabe: semana passada foi divulgada a lista dos concorrentes à terceira edição da Copa de Literatura Brasileira, um divertido – e ambicioso na medida inversa de sua pompa – prêmio literário em formato de torneio esportivo mata-mata que sempre mereceu a torcida deste blog. Este ano vai ser diferente: pela primeira vez não tenho envolvimento algum na Copa. Depois de estar entre os concorrentes do primeiro ano (meu romance “As sementes de Flowerville” chegou à semifinal) e entre os jurados na temporada seguinte (minha resenha levou “O dia Mastroianni” à final contra “O filho eterno”, que acabou campeão), agora estou na posição de simples torcedor. Uma boa posição. De fora é mais fácil parabenizar o organizador da CLB, Lucas Murtinho, por ter desistido de levar em conta o “voto popular”, que ano passado transformou alguns escritores em candidatos a vereador e chegou perto de estragar a brincadeira. É também mais tranqüilo elogiar a lista de concorrentes, um interessante recorte no universo de romances brasileiros publicados em 2008: “Acenos e afagos”, de João Gilberto Noll. “Areia nos dentes”, de Antonio Xerxenesky. “A arte de provocar efeito sem causa”, de Lourenço Mutarelli. “O conto do amor”, de Contardo…
Talvez o Kindle nem precisasse caprichar tanto na arte de atirar no próprio pé, afinal: o leitor eletrônico da Apple – sonho ou pesadelo de muita gente, dependendo de sua posição nesse mercado ainda bebê – está finalmente com lançamento marcado para o primeiro trimestre do ano que vem, segundo o site AppleInsider. Seria um tablete multifuncional com cara de iPod Touch gigante, na proporção da ilustração (não oficial) ao lado. Se a notícia for tão quente quanto sugere sua fonte e vier por aí mais um produto do nível do iPod ou do iPhone, muda tudo no mundo dos livros virtuais. Fica uma dúvida fundamental: caso a tela seja mesmo tão luminosa quanto sugere a ilustração – e não de e-ink, como a do Kindle, que parece papel e é mais propícia a leituras longas – a chance da Amazon crescerá muito.
Publicado em 28/8/2007: Hoje o futebol está morto, e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12 de fevereiro de 1989. “O segundo tempo”, de Michel Laub (Companhia das Letras, 2006), um dos bons livros brasileiros do [então] ano passado, tem uma frase inicial ainda melhor. Digna de antologia ou manual para escritores, ela consegue condensar em pouquíssimas palavras, com a falsa simplicidade que a ocasião exige, uma apresentação clássica de tom, tema e marcos temporais (de passado e presente) entre os quais se estenderá a corda da narrativa. Não falta ainda uma sutil estranheza – como assim, o futebol está morto? – que fica zumbindo ao fundo enquanto nos damos conta de que o defunto pode ser outro.