O caderno Prosa & Verso do “Globo” publicou uma polêmica reportagem de capa, sob o título “Olha a gente aqui outra vez” (todos os textos estão reproduzidos no blog do caderno), questionando o “alto índice de repetições” de autores nacionais no elenco da Flip este ano. O repórter Miguel Conde fez as contas e descobriu que “dos dez escritores brasileiros que participarão das mesas literárias até o encerramento no dia 8 de agosto, nove estiveram em edições anteriores do evento – a romancista Carola Saavedra é a única estreante do grupo”. Uma respeitável estreante, pelo menos isso, pode-se argumentar. Entrevistado pelo jornal, o diretor de programação da Flip, Flávio Moura, optou por outro caminho. Declarou que os brasileiros estreantes no evento concentram-se fora das áreas de ficção e poesia, pois a programação tem “um peso maior que de costume na parte de não-ficção, o que se deve à homenagem a Gilberto Freyre”. Como alguém que tem a deformação profissional de atribuir mais importância à ficção do que a qualquer outra forma de escrita, eu já vinha lamentando que a Flip 2010 não seja uma das mais cintilantes nesse aspecto, e não só no caso dos brasileiros. Menos ainda se tornou…
Se você está indo à Flip pela primeira vez, talvez não saiba que quando ela nasceu, em 2003, a graça era sentar no banco da praça ao lado do Julian Barnes e puxar um papo de papagaio. Eu não estava lá, o que até hoje lamento de modo amargo. Contam que a caipirinha de Maria Izabel jorrava em fontes, as pousadas estavam repletas de vagas e as plateias contavam-se em dezenas, todo mundo confortavelmente abrigado na intimidade de um auditório de província. Era grande a lista do que ainda não existia: megatendas, setecentos programas paralelos, restaurantes lotados, multidões serpenteando pelas vielas noite adentro atrás de uma mítica Festa Perfeita, gente à beça que nunca leu nem Paulo Coelho em busca de alguma forma de diversão. Parati era pacata como sempre tinha sido, aquelas pedras inacreditáveis tentando torcer seu tornozelo a cada dois passos, mas de repente você podia topar, sei lá, com um coroa americano tentando vender uma bola de beisebol usada e você olhar e o cara ser o Don DeLillo, mas ele estava pedindo alto demais pela bola de beisebol e você seguia em frente – gringo metido a esperto. Naquela primeira Flip, tão pré-historicamente romântica que até…
Pensando em como ajudar os leitores que quiserem participar do concurso de resenhas promovido aqui no vizinho “Veja Meus Livros” (saiba mais), lembro-me das cinco regras para uma boa crítica jornalística formuladas há décadas pelo escritor americano John Updike, que morreu ano passado. Uma resenha no fundo é um gênero fundamentalmente livre. Ressalvada a obrigação de trazer informações básicas sobre o livro em questão, vai ser tão boa quanto a leitura de quem a escreve. Isso quer dizer que não se trata de uma receita a ser seguida passo a passo, mas vale pelo menos refletir sobre os toques do autor do recém-relançado (pela Companhia de Bolso) “As bruxas de Eastwick”: 1. Tente entender o que o autor quis fazer, e não o culpe por não conseguir fazer aquilo que não tentou. 2. Transcreva trechos da prosa do livro em extensão suficiente – pelo menos uma passagem mais longa – para que o leitor da resenha possa formar sua própria impressão. 3. Confirme sua descrição do livro com uma citação do próprio, mesmo que só uma frase, em vez de fazer apenas um resumo vago. 4. Vá devagar com o resumo da trama, e não entregue o fim. 5. Se…
O post de hoje é um texto longo – longuíssimo, para os padrões da internet. Foi publicado em maio na revista “Veja Especial Mulher”, que retomou o fio de uma edição de 1967 – apreendida por ordem do Juizado de Menores – da extinta “Realidade” para investigar quatro décadas de mudanças na situação da mulher na sociedade brasileira. No caso das letras, a parte que me coube, a pauta acabou virando uma reflexão sobre o tratamento do sexo na literatura, tanto a feminina quanto a masculina. Assunto de Todoprosa, portanto. Então lá vai. * “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.” O grito de guerra de uma personagem de Lygia Fagundes Telles no romance “As meninas”, de 1973, ecoou em milhares de “quartos só delas” – aquilo que a escritora inglesa Virginia Woolf, em um célebre ensaio de 1929, declarou ser fundamental para que as mulheres pudessem escrever, isolando-se dos outros papéis sociais que a sociedade lhes impunha. Por trás de suas portas fechadas, enquanto soprava na janela a ventania do feminismo, as escritoras brasileiras lançaram-se nas últimas quatro décadas à tarefa de contrapor sua própria voz a…
O mais famoso ensaio do pensador alemão Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, pode ter algo a nos dizer sobre este momento em que o povo do livro se divide em tribos, todas em pé de guerra, diante do avanço do livro digital. Há os que acham que o livro de papel logo estará extinto – entre estes, uns festejam, outros choram – e há os que apostam a reputação em sua eternidade, dividindo-se, por sua vez, entre moderados que acreditam numa partilha do mercado e radicais que zombam dos e-books como fogo de palha ou frescura para poucos. Penso em Benjamin enquanto folheio – e desfolho, e desdobro, entre outros verbos que não me ocorrem agora – o recém-lançado “Pelé – Minha vida em imagens” (Cosac Naify, tradução de Bernardo Ajzenberg, R$ 140,00). E se à “aura” da obra de arte original, única, sobre a qual Benjamin teorizava no ensaio de 1936, corresponder em nossa era de reprodutibilidade digital uma aura, não mais de coisa original, mas de coisa-coisa, material, tangível? Nada a ver com a turma que suspira por aí pelo “cheiro do papel”. O apelo sensorial aqui vai muito além do…
Onde está o Grande Romance do Futebol Brasileiro? Por que nossos escritores perebas não conseguem fazer justiça a essa porção tão risonha e límpida da alma nacional? A questão vive rondando a fronteira entre a crítica literária e o departamento de vigilância da auto-estima brasileira. A cada Copa do Mundo, ressurge com ares de grande sabedoria para rechear cadernos literários, blogs e seminários. Convocados a explicar o fenômeno, os sábios de plantão costumam se dividir em dois times: o dos que consideram os escritores brasileiros elitistas demais para dar bola para o tema e o dos que consideram os escritores brasileiros competentes de menos diante da magnitude do tema. De uma forma ou de outra, culpados. Mas será que o Grande Romance do Futebol Brasileiro (daqui em diante GRFB, para facilitar) é essa grande lacuna porque, como diz o antropólogo Roberto DaMatta, os elitistas intelectuais brasileiros “detestam o futebol” – logo eles, com sua forte corrente populista encabeçada por ninguém menos que Jorge Amado? Ou seria porque, nas palavras do crítico Silviano Santiago, “o imaginário sobre futebol no Brasil é um espaço tão complexo, tão amplo e tão multifacetado” que provoca a falência dos projetos estéticos que dele se aproximam…