O mundo é tão vasto, tão complicado, tão repleto de maravilhas e surpresas que a maioria das pessoas leva alguns anos para começar a perceber que é também irremediavelmente quebrado. A esse período de pesquisa chamamos “infância”.
Segue-se um programa de investigação reiterada, quase sempre involuntária, sobre a natureza e os efeitos de mortalidade, entropia, coração partido, violência, fracasso, covardia, hipocrisia, crueldade e sofrimento, cujas histórias e amargas lições o pesquisador aprende de cor. Ao longo do caminho, ele ou ela vai descobrindo que o mundo está quebrado até onde alcança a memória de qualquer um, e luta para conciliar tal fato com a pontada de nostalgia cósmica que, de tempos em tempos, agita-se em seu coração: uma sugestão de glória extinta, de inteireza perdida, uma memória do mundo antes de se quebrar. Ao momento em que essa pontada se manifesta pela primeira vez chamamos “adolescência”. O sentimento assombra as pessoas pelo resto da vida.
Todo mundo, cedo ou tarde, é submetido ao aprendizado da quebra. A questão passa a ser então: o que fazer com os pedaços? Há quem se abanque em sua pilha local de escombros e toque a vida assim mesmo, beduínos criando suas cabras à sombra de gigantes em ruínas. Outros se põem a quebrar o que resta do mundo em cacos cada vez menores e mais cortantes, chutando pilhas de destroços como crianças a correr entre montes de folhas secas. E algumas pessoas, passando entre os pedaços dispersos desse grande quebra-cabeça em desalinho, começam a colher uma peça aqui e outra ali, com uma ideia vaga, mas irresistível, de que algo talvez possa ser feito para colar aquilo de novo.
Esse plano apresenta de imediato duas dificuldades. Em primeiro lugar, jamais tivemos mais do que um vislumbre, através de pálpebras semicerradas, da gravura na tampa da caixa do quebra-cabeça. Além disso, por mais diligentes que sejamos na coleta de peças em nosso caminho, nunca juntaremos nem perto do suficiente para terminar o trabalho. O máximo que podemos ter esperança de lograr com nosso punhado de cacos resgatados – a safra agridoce da observação e da experiência – é construir um pequeno mundo só nosso. Uma maquete daquele misterioso original não quebrado que mal recordamos. É claro que os mundos que construímos com nosso estoque de fragmentos não têm como passar de aproximações parciais e imprecisas. Como representações da plenitude perdida que nos assombra, só podem ser fracassos previsíveis. Em seu próprio fracasso, porém, em suas falhas e imprecisões, talvez ainda sejam mapas fiéis, maquetes acuradas deste mundo belo e partido. A essas maquetes chamamos “obras de arte”.
Admiro Wes Anderson, um dos mais autorais diretores em atividade no cinema americano atual. O desprezo do Oscar pelo maravilhoso “Moonrise Kingdom” (uma indicação a melhor roteiro original e só) foi um dos fatores, entre muitos, que me levaram a desprezar a cerimônia deste ano. Mesmo assim, é difícil conter a impressão de que o ensaio (em inglês) que Michael Chabon escreveu como introdução para um livro ainda inédito sobre o cineasta – publicado em versão condensada por The New York Review of Books – é daquelas apreciações críticas amorosas que chegam a superar seu objeto.
Chabon, autor de romances como “As incríveis aventuras de Kavalier & Clay” e o recente Telegraph Avenue (este ainda inédito no Brasil), é um estilista do qual se pode dizer que escreve muito, muito bem. Isso às vezes é um problema: durante a leitura de seu último livro, eu me peguei pensando com frequência que Chabon anda escrevendo bem demais, ameaçando despencar na pirambeira do maneirismo – um maneirismo esperto, informado e irônico, mas maneirismo ainda assim.
Não é o caso aqui. As pontes sutis que o ensaio traça entre a obra de Anderson, a do artista plástico Joseph Cornell e a de Vladimir Nabokov, ídolo de Chabon, acabam por iluminar a própria arte romanesca do autor por meio da ideia-chave do artifício que se assume como tal. Os quatro parágrafos acima, em tradução caseira, abrem o ensaio e nem chegam a falar do cineasta. Não é preciso: bastam para construir uma maquete perfeita.
4 Comentários
Sérgio, eu nunca tinha ouvido falar do Chabon quando um dia topei com um romance dele numa livraria. E confesso que só comprei por causa do título curioso: ‘Associação Judaica de Polícia’. É como você disse: um estilista “que escreve muito, muito bem”.
Substantivo Plural » Blog Archive » Chabon sobre Wes Anderson: ‘A isso chamamos arte’
Muito bom esse autor, texto excelente, merci por apresentá-lo a mim. Eu vi Moonrise e achei diferentão, bem interessanet. abraço, clara
“Chabon, autor de romances como “As incríveis aventuras de Kavalier & Clay” e o recente Telegraph Avenue (este ainda inédito no Brasil), é um estilista do qual se pode dizer que escreve muito, muito bem. Isso às vezes é um problema: durante a leitura de seu último livro, eu me peguei pensando com frequência que Chabon anda escrevendo bem demais, ameaçando despencar na pirambeira do maneirismo – um maneirismo esperto, informado e irônico, mas maneirismo ainda assim.”
Mas isto seria maneirismo, ou seria simplesmente o leitor que depois de ler várias vezes o mesmo autor simplesmente detecta os modos do escritor?
Então deveria acontecer com todos os escritores que eu leio várias vezes, não? Não acontece. Abs.