Quem se divertiu com a embrulhada do forró, que teria vindo mas não veio de for all, como muita gente – inclusive gente professora – acredita e repete por aí, vai gostar dessa: chulé viria de shoeless (descalço). Um achado digno de rivalizar com o for all but dogs (para todos, menos cachorros) que um leitor pôs na roda para dar conta de forrobodó – palavra bem anterior à Segunda Guerra, do repertório de Chiquinha Gonzaga, o que liquida a tese da influência americana de for all: pode-se afirmar com segurança que forró é a forma reduzida de forrobodó, baile, furdunço.
A teoria shoeless já foi desmentida em três golpes firmes pelo bom professor Cláudio Moreno em sua coluna (vai nas minhas palavras): o termo “chulé” nomeia um fato universal e ancestral; existe em português desde quando a influência do inglês sobre nosso idioma era muito pequena; não tem a menor correspondência de sentido com shoeless, que em sua língua significa apenas descalço – nada a ver com o olfato.
O trabalho de demolição foi bem feito por Moreno, mas talvez tenha faltado dizer que, diante de for all, shoeless leva pelo menos uma vantagem: não há etimologia sólida a respeito do odor fétido dos pés, bromidrose em linguagem científica, que com o tempo veio a virar também adjetivo derrisório em julgamentos como “decoração chulé”, “emprego chulé” etc.
O Houaiss conta que Antenor Nascentes e o português José Pedro Machado defenderam a tese da importação de uma palavra do cigano, chulló (ou chullí), mas avisa que existem outras hipóteses, e Silveira Bueno não nos decepciona: informa que a origem cigana chulló, gordura de porco rançosa, foi combatida por Carlo Tagliavini – seja lá como for que um lingüista italiano tenha vindo parar aqui. A passagem de chulló a chulé (não se menciona o chulli), ou seja, do ó para o é, seria improvável demais. A opinião de Bueno: “A nosso ver, chulé é do mesmo grupo de ‘chulo’, ‘chula’, alterado na gíria do povo, sob a influência de ‘pé’, cuja terminação acentuada se fez sentir em chulé”.
Quando a briga dos doutores chega a esse ponto, é porque ninguém tem certeza de nada. Surpreende que não se fale ainda em alguma palavra do banto, algo como zulé, “peixe podre”. Numa hora dessas, por que shoeless não teria direito a tentar a sorte? Com suas fichas concentradas na plausível casa da americanofilia, que de um século para cá tem feito muito para moldar nossa língua, shoeless pode até arrebanhar seu séquito de conversos, por que não?
Uma parte fraca da tese que ninguém ainda mencionou é que pés shoeless, descalços, não criam chulé. Ficam sujos, imundos até, mas basicamente arejados. O que provoca o fedor é justamente o calçado, a química de bactérias e suor que ele fermenta.
E só no fim, ora veja, descubro que tudo já estava em Glauco Mattoso, o mais maldito dos poetas contemporâneos, autor de um – entre muitos – poema dedicado ao chulé que diz:
Qualquer que seja a gíria ou dialeto,
ninguém o termo tem para “chulé”.
“Shoeless” até tentaram ver se fé
ganhava como um étimo indireto.
Publicado no NoMínimo em 5/12/2005.
11 Comentários
Sérgio, você já escreveu sobre “dois de paus”? Se não escreveu, fica a sugestão. Procurei a origem da expressão, outro dia, mas a que encontrei não me convenceu muito… Bjs
Sérgio,
Ninguém entende melhor de chulé do que o Comatoso!
;o)
Não sei se concordo com a sua opinião sobre “shoeless”, afinal, quem disse que as vinculações são assim tão diretas e lógicas? Pé sujo, de um modo geral, tende a ser associado a odores desagradáveis, mesmo que pés descalços não sejam favoráveis à cultura de agentes responsáveis pelo chulé. De qualquer modo, prefiro a origem em “zulé”.
Papo nojento esse…
Venho dizer que não tive intenção nenhuma em acusar pessoa nenhuma. Nem o sexo eu acusei (rsrs), quanto mais pessoas. Minhas palavras foram referentes as palavras recebidas. Não as palavras em si, mas as intenções hostis quase que dizendo: “Fora! Aqui não é seu nicho”. E por ter lembrado das palavras de Jesus aproveitei a referência, afinal estamos todos a todo momento aprendendo, não? Eu gosto de aprender. Se alguém se sentiu acusado por mim, por favor, retiro este dedo acusador que é horrível. Não foi minha intenção. Não devemos nunca ir contra as pessoas, pois elas estão sempre mudando, mas podemos mostrar com clareza os conflitos que estamos vivendo. Isso nos ajuda a discernir certos momentos.
Os cristãos são muito ridicularizados o tempo todo. Por isso muitos deles se omitem e vivem nesta de “não misturar as coisas”. Com isso perdem a identidade nessa “coisificação” da má propaganda…o tempo todo. Ninguém parou ainda para refletir e estudar sobre isso, mas daria um bom material…
Só não falo “Larga do meu pé” para o Adalto, porque com certeza, ele jamais seguraria…
Pensando bem: http://bommemorias.blogspot.com/2009/11/porco-espinho.html
Gosto muito de saber de onde vem determinadas palavras principalmente aquelas que temos que explicar para estrangeiros o que significam já que eles não tem um sismilar em sua lingua. Tipo o chulé, banguela, escalafobético e outras que não me lembro. Esses dias fui tomar umas em um boteco em guaruhlos e decobri a origem do termo “marca barbante”, a explicação estava no cardápio do buteco que de fato é um tabloide. Abraços desse linguista marca barbante.
Por causa disso, voltarei a comentar:
Desembrulhemos o Forrobodó.!
Bem, não sou doutora e nem tenho certeza quanto a esse caso de chulé aqui.
Uma coisa sei, estou numa campanha no Brasil, a da Humildade de Jesus. E de vez em sempre me vejo num forrobodó, me embolo danço nos forró, me embolo nos bodó e acabo mesmo com o pés sujos.
Mas o mais lindo disso tudo é que Jesus nos ensinou a lavar os pés uns dos outros. O Senhor nos diz que já estamos limpos pela Palavra, e precisamos ter os pés lavados. se eu falar que venho lavar alguns pés aqui, como gesto de humildade, vou acabar num outro forrobodó, pois uma vez tentei fazer isso e a pessoa se sentiu ofendida dizendo que seus pés já estavam limpos.
Bem, se eu trouxe meus pés sujos para serem limpos vão me colocar em outro forrobodó? Tipo: Quem é você para que lavemos seus pés? Bem, isto são situações entre cristãos. Mas se muitos cristãos não se deixam lavar e muito menos lavam o do próximo, quanto mais os que não aprenderam ainda esta coisada da humildade de Jesus.
É isso, gente! Jesus é Lindo! Incomparável!
Paz!
Paz!
Paz!
Considerando que estamos falando do “mais maldito dos poetas contemporâneos”, êta poeminha mais infantil.
Até a minha cartilha Caminho Suave era mais ousada…
Caro Rafael, imagino que a pressa tenha traído seus juízos habitualmente ponderados, mas assim você fica parecendo o Bemveja, que gostava de criticar toda a literatura brasileira com base num parágrafo solto. Antes de chegar a uma conclusão sobre essa estrofe (não é um “poeminha”) de Glauco Mattoso, recomendo entender o que representa o chulé masculino, especialmente em sua modalidade japonesa, na estética gay (o cacófato é bem-vindo) do homem.
Sérgio,
Confesso que não sabia que a bromidrose era apreciada pelos gays de origem nipônica. A única excentricidade japonesa que conhecia era o tal do bukkake. Mas, como dizem por aí, a Humanidade sempre surpreende, e eis que descubro que, nas infinitas variações da imaginação libidinosa, se chegou ao fetiche pelo pé fedido enfiado no rabo. De gustibus non est disputandum, como não me canso de repetir.
Como a ignorância era minha, penitencio-me pelo juízo ligeiro sobre o Glauco Mattoso. É que, toda vez que ouço falar em poeta maldito, sempre espero algo que seja tão ousado quanto Bocage (ou algum anônimo do século XVIII muito hábil e engenhoso), de quem aliás o Glauco Mattoso organizou uma antologia. Segue um exemplo:
Dizem que o rei cruel do Averno imundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para meter do cu na aberta greta
A quem não foder bem cá neste mundo:
Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.
Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?
Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto já; que é curta a idade,
E as horas do prazer voam ligeiras!
Mais aqui: http://www.elsonfroes.com.br/bocage.htm
Zulé, proferido por algum argentino (sem ofensas implícitas, por favor) já soaria parecido com chulé.
Em Minas,temos uma teoria sobre a origem desta palavra. Aconteceu no sec. XIX, em Mariana. Havia uma companhia inglesa de extração de ouro em mina subterranea. Os ingleses eram extremamente metódicos, higiênicos e organizados. Os mineiros, quando iam ao escritório do chefe, saiam da mina com roupas sujas e botas encharcadas de água e barro, que havia no fundo da mina devido ao rebaixamento do lençol d’água. Como entravam nos escritórios com roupas e calçados sujos, sujando tudo por onde passavam, foi ordenado à eles que, pelo menos, retirassem os calçados antes de entrar no escritório. À porta, havia um aviso: “Enter only shoeless” (entre apenas descalço). Ali, onde se aglomeravam botinas sujas e fedorentas ficou o termo: aqui é o lugar do xulé!