Os leitores habituais deste blog sabem que raramente conto aqui histórias pessoais. Sei que desse modo contrario o que, a julgar pela evasão de privacidade cultivada por grande parte dos colegas, é uma vocação do meio. Prefiro ser fiel a uma vocação minha e dosar a primeira pessoa. Todo esse nariz de cera é para abrir uma baita exceção e contar que um dia tive uma namorada inglesa que odiou – ou talvez eu devesse carregar no verbo e escrever abominou, execrou – nossa grande Clarice Lispector. Foi um episódio marcante.
Eu tinha vinte e cinco anos e morava em Londres, como correspondente de um jornalão brasileiro. Ela tinha no trato afetivo um pragmatismo anglo-saxônico que eu, acostumado ao ronronar dos namoros brasileiros, via como distância emocional. Incomodado com a dissociação entre corpo quente e alma fria, julguei necessário corrigi-la. Como? Ah, mas é claro. Quem disse que a literatura não serve para nada?
Minha namorada inglesa (mas talvez ficante, palavra que eu não conhecia na época, caiba melhor) era uma ardorosa leitora. Tínhamos papos animados, eu mais ouvindo que falando, sobre escritoras que a faziam vibrar: Isak Dinesen, Jean Rhys, Angela Carter. Hmm, pensei, julgando-me perspicaz: todas mulheres. Achei sem dificuldade na Waterstone’s da Hampstead High Street uma tradução de Clarice que pareceu decente: The passion according to G.H. O presente, assim que o entreguei, fez sucesso.
Nada me preparou para o fracasso estrondoso que sobreviria. Poucos dias depois, quando reencontrei minha querida inglesinha (que vai ficar sem nome mesmo, a exceção ao recato é condicional), eu estava pronto para emendar com ela uns ronrons em torno dos meandros da alma clariciana, papo que gozava de belo histórico de sucesso com compatriotas. Quando perguntei pelo livro, porém, recebi de volta uma careta. Ela não tinha gostado. Na verdade, tinha abandonado após quinze páginas, não conseguia ler aquilo. Incrédulo, quis que explicasse por quê. Ela preferia não. Insisti.
“Todos os escritores brasileiros são assim?”, perguntou por fim. Recebi aquilo como uma agressão. “Assim como, intimistas? Não, claro que não, temos Guimarães Rosa e…” Mas a mulher não se referia ao intimismo. “Assim, indulgentes com a prosa. Pomposos, tentando ser poéticos. Eu odeio isso. Soa como uma adolescente trancada no quarto aprendendo a escrever.”
Na época, interpretei essas palavras como um atestado de filistinismo da dona. A partir desse episódio passei a aceitar bem, e na verdade a ampliar, a distância emocional entre nós. Alma fria e corpo quente é uma combinação que tem seus encantos, embora costume durar pouco. Qualquer coisinha, ela quebra. Uma discordância de gosto, por exemplo.
Com o tempo entendi melhor o fiasco daquela carícia literária. É claro que minha namorada não chegou a conhecer Clarice de verdade: em outro momento, talvez com outro título, acredito que a voz autorreferente, perturbadora, cruel da escritora brasileira pudesse fisgá-la. Não aconteceu, ela ficou na superfície do texto, uma superfície que também é Clarice. E o que viu contrariava tanto sua concepção de boa escrita que se sentiu repelida.
E que concepção seria essa? Para começar, a valorização de certa concretude, manifesta na preponderância de substantivos concretos sobre substantivos abstratos (Clarice é a goleada dos substantivos abstratos). Em seguida, a exigência de uma sensação clara de percurso, de ir de um ponto a outro, que traduz e se reflete numa visão da linguagem como instrumento para um fim – narrativo, descritivo, argumentativo – e jamais um fim em si (Clarice não é nada senão a trágica luta da linguagem contra si mesma). Terceiro, como coroamento dos dois traços anteriores, um faro hiperaguçado para as infinitas possibilidades de embromação que a linguagem propicia ao abrir mão da referencialidade e se enamorar de si mesma (nem Clarice, vamos combinar, está livre de momentos que cheiram a encheção de lingüiça ou filosofia de botequim).
Esse choque de concepções literárias básicas entre uma inglesa e um brasileiro no fim dos anos 80 do século passado tem me voltado à memória nos últimos tempos. Sinto a tentação de situá-lo no quadro mais amplo de duas matrizes das letras internacionais, anglófona x francófona. Sim, eu sei que isso é uma simplificação e que o mundo lá fora comporta infinitas nuances, mas talvez não seja descabido apostar na atualidade do esquema ao ler na imprensa de língua inglesa artigos que se veem obrigados a desfiar argumentos tortuosos para defender Derrida e Foucault da acusação generalizada de picaretagem intelectual.
Sei lá, talvez tenha sido aquele tempo em Londres. Ou quem sabe foi a firme presença de Hammett em minha fase de formação. Só sei que meu faro tem andado aguçado – a começar por esta mesa de trabalho – para as infinitas possibilidades de embromação que a linguagem propicia ao abrir mão da referencialidade e se enamorar de si mesma. Se me incomoda que um certo grau de firulismo ainda seja visto por tantos de nós como marca indispensável da alta literatura, reconheço que a coisa pode ter sua beleza, claro, quando o amor é sincero e o talento, maior. Mas a tal indulgência…
39 Comentários
Engraçado ela perguntar se todos os brasileiros escrevem assim. Me lembra uma tirinha do excelente XKCD, que é fácil de narrar aqui:
Primeiro quadro: Fulano escrevendo “2+2=5” num quadro, e alguém comentando “nossa, você é uma merda em matemática”.
Segundo quadro: Fulana escrevendo “2+2=5” num quadro, e alguém comentando “nossa, mulheres são uma merda em matemática.
Tudo que é estrangeiro/diferente/outro é agrupado em blocos uniformes. Se um “deles” é assim, todos são. Ainda mais se este “diferente” é tido como inferior…
Não rejeito a possibilidade do tradutor ter feito um serviço ruim, também. Autores brasileiros frequentemente sofrem de tradutores preguiçosos que prossivelmente prefeririam traduzir romances com mais mulatas e samba. É só lembrar que o “o que lembro, tenho” de Riobaldo virou “all that I have are my memories” nos Estados Unidos…
Ok, Sérgio. Agora explica o que é ‘filistinismo’.
Ô xará: se todas as exceções que você abrir em relação a este bom hábito de preservar sua privacidade resultarem em posts tão bons quanto este, sou inteiramente a favor de você abrir MAIS exceções! Abraços.
Acho bastante ilustrativo o exemplo citado por Breno. A primeira coisa que me passou pela cabeça foi o infeliz papel do tradutor… Em “Clarice,” , Benjamin Moser deixa clara a resistência da própria Clarice àqueles que se ocupavam de ‘traduzí-la’.
Ilustrativo indeed. Gostaria de ler mais do gênero.
Desculpe, mas tudo isso pra contar que era correspondente em London aos 25?
Rapaz, que bela oportunidade você perdeu de ficar calado, hein?
Sérgio, boa noite!
Não sei se Clarice seria essa “trágica luta da linguagem contra si mesma” se já não houvesse aí também uma espécie de fim como princípio!
Para uma linguagem desabitada do mundo só pode restar mesmo o sertão de seu próprio infortúnio. Mas penso também que seu auto-enamoramento pode ser uma das formas mais comprometidas de não abrir mão justamente da referencialidade, isto é, de experimentar simbolicamente (tragicamente?) a própria desmedida do mundo, e a partir de uma indizibilidade que, enfim, só se pode mostrar em seu próprio movimento. Aliás, a filosofia de botequim nesse caso é desconhecer o quanto nesse aspecto Derrida é tributário de Heidegger (assim como Foucault é de Nietzsche!); de qualquer forma, algo que nos levaria a uma outra “geografia” da questão… mas talvez a outras formas de indulgência também.
Forte abraço,
Pablo
Quiçá possamos ler aqui ainda muito mais textos envolventes como este.
“Assim, indulgentes com a prosa. Pomposos, tentando ser poéticos. Eu odeio isso”.
Sua amiga inglesa que se cuide: há um círculo do inferno no qual as almas passam a eternidade sendo forçadas a ler Thomas Mann no original.
Muito fácil para alguém de fora ver, e tão difícil para alguém daqui admitir.
Brasileiro gosta sim de poetizar a prosa. Acha que escrever bem, escrever bonito é escrever de um jeito cheio de firulas, enchendo linguiça em sentenças enormes, com nenhuma objetividade.
Na poesia, tudo bem esta falta de direção. Na prosa, isso foge ao objetivo original. Foge ao que seria a finalidade do texto em casos absurdos como nos livros didáticos, inclusive em livros da minha área (medicina). Essa mesma raiva que ela sentiu eu também sinto, ao ver que o tradutor (um médico, o que já exclui a causa de má tradução por falta de conhecimento sobre o assunto) de um livro destinado a transmissão de conhecimento resolve ‘embelezar’ o texto e acaba excluindo completamente a objetividade e o sentido das frases. E depois ler a versão original (não traduzida) e ver que aquele ‘monstro’ complicadíssimo era alguma coisa bem simples, que o tradutor resolveu ‘melhorar’.
E se alguém aponta esse fato, ainda é visto sob olhares de pretensa superioridade, como se estivessem dizendo: “Ah, mas você não entendeu?”. Dá vontade de responder “li este livro para aprender patologia, não para ser informado que além de médico você é aspirante a péssimo poeta”.
Muitos têm essa falsa noção de que escrever bem é escrever complicado, sem clareza. Que é tarefa do leitor depurar o sentido em meio a frases mal arquitetadas. Muitos textos são como um projeto arquitetônico que parece lindo não papel, mas que nunca poderiam ser construídos, pois não se manteriam de pé. Infelizmente é muito comum no brasileiro, achar que está falando bonito, quando na verdade não está falando nada. E infelizmente este é o jeito ensinado em nossas escolas, é o jeito que escrevem os autores admirados por aqui, que se preocupam e admiram tanto a forma que não percebem que o que escrevem é pobre em conteúdo.
Pô, Sérgio, que texto legal você escreveu! Clarice bem que merece, esses e muito mais. Um abraço
Adorei o trecho: “as infinitas possibilidades de embromação que a linguagem propicia ao abrir mão da referencialidade e se enamorar de si mesma”. A prosa que ignora a clareza, brevidade e referencialidade como virtudes cansa o leitor que busca propósito na linguagem. Há lugar para todos sob o sol da literatura, mas quem diria que não há beleza e poesia em “Vidas Secas”?
Obrigado pelo excelente texto. Tive, anos atrás, uma experiência semelhante e, por estranha coincidência, com o mesmo livro de Clarice Lispector. E não se trata apenas de problemas de tradução ou de sexo. A um amigo estrangeiro, grande admirador de alguns livros brasileiros que tinha lido [Machado, Lima Barreto, Graciliano], e que me pedia o nome de uma AUTORA, sugeri “A Paixão Segundo G.H.” No dia seguinte, tive a mesma reação: não conseguiu ir além de 10 páginas, aquilo era escrita eivada de pseudo-intelectualismo, coisa primária e absolutamente ilegível. E, como discordássemos, pediu outro livro de Clarice. Recomendei “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres .” A reação foi ainda pior.
Diz o comentarista Frank [14/4 – 13:54]: “Brasileiro gosta sim de poetizar a prosa.[…] Na poesia, tudo bem esta falta de direção.” Discordo absolutamente. Na poesia, que é produto do uso da palavra altamente controlada, esta “poetização” é ainda mais nefasta – que o digam João Cabral do Melo Neto, Mário Faustino, os concretistas e Ferreira Gullar. Aliás, esta “poetização” sentimentalizada, própria de letras de música popular, é que tem levado a poesia brasileira atual a uns de seus períodos de maior mediocridade. Nossos poetas de hoje parece não terem lido a declaração de Valéry que dizia não poder nunca produzir um romance porque teria vergonha de escrever algo como “a marquesa saiu às cinco horas.”
E porque será que muita gente considera Clarice como “poetisa?” [Provavelmente Maria Betânia a incluirá no seu blog… (-: ]
EM TEMPO : Continuo discordando de meu amigo citado acima: “A Paixão Segundo G.H.” é um ótimo livro.
Não acho que o caso deva ser levado tão a sério. É fato que a escrita em inglês é mais objetiva, mais concreta. Possui sentenças em sua maioria na voz ativa, mais palavras anglo-saxônicas, e, quando palavras latinas são utilizadas – dando ideias geralmente mais abstratas -, exemplificação geralmente é cabível. Em contraste, o português destoa da maioria das características citadas, é mais floreado – ou “pomposo” -, faz maior uso de voz passiva… e o mesmo acontece com Árabe, Espanhol…
Um artigo interessantíssimo sobre o tema é o seguinte: http://www.theamericanscholar.org/writing-english-as-a-second-language/
Guilherme, gosto muito do William Zinsser e procuro aplicar a maioria dos conselhos dele ao escrever português, exceção feita, por exemplo, a evitar palavras latinas, que substituo por evitar jargão, expressões em latim sem explicação etc. Já notei, inclusive no trabalho, que a prosa mais leve e amarradinha consegue o inimaginável: as pessoas lêem o que você escreve.
sinceramente, ficam mesmo intelectualizando essas coisas sobre um texto que é fundamentalmente ser apenas sentido? leitura com regras de alta etiqueta intelectual…
Sérgio,
Ando um pouco sumido, mas esse post merece a quebra do jejum. Nada contra a Clarice Lispector, uma escritora que muito apreciei nos meus tempos de juventude. Apesar de não ter nada contra a Clarice, como disse, sinto-me compelido a aplaudir sua amiga inglesa porque ela, sem saber que estava cometendo um ato de profanação, uma blasfêmia contra uma autora já canonizada pela crítica nacional, soube exprimir a mesma reserva que eu sentia sobre o estilo dela, só que de uma maneira admiravelmente sucinta e direta.
Vale
Li Paixão Segundo GH em 1974. Eu já havia passado da adolescência, mas queria saber quem era GH. Ficava matutando aquele GH e sua paixão. Até que “fiquei sabendo” que GH era as formas de CL “Clarice Lispector” e de todas as direções. Nâo me lembro onde li isso, mas que achei genial, achei.As coisas geniais geralmente são bobas no primeiro momento. O livro???? Nâo me lembro de nada.
ou GH “eram” as formas?
Taí, acho que o exemplo confessional deu credibilidade ao texto, distanciando-o da mera retórica, apesar de não ter nenhuma crença na “vocação” do jornalismo em ser a má consciência de uma sociedade. Referencialidade num texto jornalístico sempre me parece embromação persuasiva travestida de objetividade e informação. Mas achei que no texto rolou algum afeto (e foi cruel consigo mesmo, clariceanamente).
Apesar de ser brasileira, também não gosto da literatura de Clarice Lispector. Acho-a cansativa e repetitiva. Como sou formada em Letras, li quase todos seus livros e todos tem seu mérito e muita coisa boa, mas a inglesa “quase” que tem razão, pois no início quase todos são como uma tentativa de escrever algo aproveitável. Após alguns capítulos a prosa melhora, mas para que tem paciência de chegar lá.
Talves se você a tivesse apresentado a nossos outros expoentes, temos muitos e excelentes, ela tivesse apreciado nossa literatura.
Nem todos tem a capacidade intectual de “entender” as divagações Clarice, como parece ser meu caso.
Coincidência ou não; não li os dois últimos parágrafos dessa breve biografia, pois me pareceu um jovem insono trancafiado em seu fúnebre quarto enquanto vomitava sua frustração clariciana.
Perdeu a melhor parte, Fonseca. De qualquer forma, obrigado pelo “jovem” insono (sic).
Na impossibilidade de achar uma palavra adequada ao que pensava, inventei. Aliás, quem entende “sobre palavras”(sic) aqui não sou eu, embora tenha as estudado com mais paixão depois que passei a entende-las melhor, ou melhor, passei a entender suas inúmeras possibilidades.
Inclusive andei inventando umas para adequar melhor ao conteúdo.
O que há de errado com “insone”?
Sou brasileira e classifico assim Clarice Lispector: o protótipo da blogueira mal-amada.
Ufa! Que alívio! Sou brasileira, adoro ler desde criança, mas nunca consegui terminar um livro de Clarice Lispector. Pelos comentários do seu post vejo que sua inglesinha não está sozinha. Bom pra Clarice. Se toda unanimidade é burra, como dizia o velho Nelson, ainda bem que ela não é uma unanimidade.
Abs
Cris
Não gosto de Clarice Lispector, acho uma leitura cansativa e enjoada. Mas gosto é gosto né…
Ultimamente ela tem feito muito sucesso, e a maioria das pessoas que dizem gostar dela não entendem nem uma linha de algum texto dela, acho que a midia impõe o que é bom e o que não é e as pessoas vão pelo oque a midia impõe, seilá, até hoje não li nenhum texto dela que seja interessante.
hoje,começarei a ler o primeiro livro de Clarice Lispector,e como dar para entender,não posso fazer nenhum comentário sobre os livros dela,mas em breve estarei aqui expressando minha opinião.E só lembrando,gostei da publicação,expressa sua opinião e causa um certo debate entre as pessoas.
gostei muito do texto, mas os comentários me surpreenderam muito mais. tem muita gente que não gosta da clarice e isso eu acho que é resultado do dia-a-dia, da rotina. as pessoas querem algo pronto e clarice é toda pela metade; ela não tem começo nem meio nem fim. acho que clarice é para os poucos que ainda não se entregaram à praticidade da vida.
Tenho pena daqueles que ficam só na “superfície” quando o assunto é Clarice. Sem demagogia, posso afirmar que ela escrevia com uma destreza invejável. Sabia ser irônica e fútil ao mesmo tempo e viajava entre a realidade e a ilusão sem perder o fio das narrativas. (leiam o conto “amor” para entender a relação.) Achei o artigo bem escrito mas de mal gosto, dizer que ela “Soa como uma adolescente trancada no quarto aprendendo a escrever” é uma ofensa absurda e infundada, afinal, a namorada/ficante nem se deu ao trabalho de ler outras obras de Clarice.
Claro que naquela época – e ainda hoje – muitas pessoas não estão preparadas para entender aquilo que ela deixou em suas obras, preferem mergulhar nos temas fúteis que enchem os livros e roteiros de novelas e filmes (como vampiros que leem pensamentos/cinquenta tons disso e daquilo… enfim.)
Acredito plenamente que não existe um livro ruim, existe um livro que não se encaixa com sua forma de ver a vida ou com sua ideologia. E que o simples ato de transmitir em palavras os sentimentos e ideias já é algo que merece compreensão.
Penso que não dá para começar a ler Clarice pela A Paixão Segundo G.H. Nem mesmo para uma londrina que supomos ter uma educação literária (se é que isso exista). Talvez se ela tivesse lido A hora da estrela, ou os contos. Mais duas coisas: a própria Clarice avisa que aquele não é um livro para quem não tenha uma alma preparada. E ainda para complicar ela faz aquela introdução que é uma barreira a todo leitor;e, segundo, uma pessoa não pode dizer aquilo por ter lido umas dez páginas do livro de uma autora como Lispector. Um abraço, josé marins
Fui obrigado a ler Clarisse L. na sexta-série e até hoje tenho agonia, repulsa extrema à autora. Me identifiquei com sua inglesinha.
Sinceramente, não creio que haja superlativos – positivos, evidentemente – suficientes para definir a grandeza de Clarice Lispector. “Magistral”, para mim, é o que mais se aproxima. “Perturbadora” também lhe cai bem. Penso que quem não descobriu Clarice pode, ainda assim, usufruir uma vida lierária rica, satisfatória… mas realmente não sabe , nem desconfia do que está perdendo.
Achei bastante interessante, esse episódio. Nunca diria que Clarice é uma empulhação, pois a li sempre com encantamento e ela influenciou muito o que escrevi, durante certos tempos. Mas não me atrevo a relê-la, para talvez não ficar frustrado, porque hoje em dia acho mesmo que o excesso de linguagem, de rebuscamento, de auto-referência (e indulgência) na prosa brasileira é coisa de acabar com a paciência. Quase não há livro novo, elogiado pela crítica, em que essa pompa sem conteúdo e sem direção compareça. Evidente, transformar em arte questões ontológicas não é para qualquer um e Clarice foi superior a todo mundo nisso, mas seus imitadores, e imitadoras (há uma legião) são um saco. Essa questão tem dois aspectos importantes: se os cultores exclusivos da linguagem pomposa e dos livros ininteligíveis para serem “profundos” são insuportáveis, também é insuportável a linguagem leve, clara, fácil de devorar (e de esquecer), dos best-sellers, crônicas ligeiramente literárias etc. – essa que todo mundo prefere, pois é tão nada, tão mastigada, que só faz refletir ideias prontas automaticamente. Um escritor de fato se situa em outra praia, mais sofrida, se bem que não precise ser um monstrengo inacessível aquilo que produz.
A linguagem enamorada de si mesma é válida, miss. Eu, que existo por palavras, não passo sem ela…
Hoje sua ex deve sentir-se constrangida perante o reconhecimento mundial de Clarice. Mas vamos dar-lhe um voto de confiança – talvez a tradução não fosse um primor – é muito difícil traduzir Clarice. Tenho um livro de Harold Bloom, que traz traduções sofríveis e destruidoras de grandes poetas ingleses.
Tenho uma sugestão – envie-lhe o conto Os Desastres de Sofia. Ela não ousará discordar da grandeza de Clarice.
Com certeza ela não entendeu nada por causa da tradução. Como diz o ditado: o tradutor é um traidor. Clarice é inigualável e perfeita!
À Clarice Lispector, acrescento Caio Fernando Abreu (com sua pseudo-ficção-científica em O ovo apunhalado) e Raduan Nassar (com seus irritantes fluxos de consciência verborrágicos no romance e na novela).
É por isso que a cada dia que passa gosto mais dos estrangeiros. A suposta genialidade do prolixo não diverge em muito do mau gosto da cultura de massa. Embora a história devesse supostamente ser a essência, a forma é o que a faz apaixonante; e achar que um texto não deve ser compreendido, mas sentido, não tem nexo para mim: para sentir não é preciso tentar ao menos sugerir o que se sente?
Sou suspeita para falar, pois simplesmente sou fascinada por Clarice e sua obra. Li ”A hora da estrela” aos dezesseis anos e mergulhei na linguagem deliciosa do texto. Como todo grande autor, Clarice tem a capacidade de elevar o particular para o universal. Clarice não é uma contadora de histórias. É uma artista da linguagem. E assim será enquanto existir literatura.