No dia em que Clarice Lispector e José Carlos Oliveira quase saíram no tapa na mesa do Antônio’s, a grande escritora entrevistava o cronista para a “Fatos & Fotos: Gente”, revista que, como fizera com a “Manchete” de 1968 a 1969, ela alimentou de entrevistas com artistas, escritores e esportistas brasileiros de dezembro de 1976 a outubro de 1977, para defender uns trocados. No entanto, pouca gente no lendário restaurante boêmio do Leblon deve ter percebido o que acontecia naquela mesa: perguntas e respostas eram disparadas de um lado a outro em atarefado silêncio, rabiscadas numa folha de papel. Clarice estava gripada. Carlinhos ia jantar. Com sua agressividade cultivada e famosa, o cronista do “Jornal do Brasil” enchia suas respostas de palavrões, magoando Clarice, que anotaria mais tarde: “Acho que Carlinhos continuava a me desafiar escrevendo na folha de papel expressões que ele próprio não usa nas suas crônicas. Mas a mim tanto se me faz”. A certa altura, depois de afirmar que “fazer sucesso é chegar ao mais baixo do fracasso, é sem querer cortar a vida em dois e ver o sangue correr”, Clarice emenda, conciliadora: “Nós dois, Carlinhos, nos gostamos um do outro, mas falamos palavras diversas”. É quando tudo azeda de vez:
CARLINHOS: Falamos linguagem diversa, é verdade. Eu prefiro ser feliz na rua a “cortar a vida em dois”.
CLARICE: E eu prefiro tudo; entendeu? Não quero perder nada, não quero sequer a escolha. Mas me fale de seus planos, José Carlos.
CARLINHOS: Você prefere inclusive ser uma grande escritora. Mas eu renunciei há muito tempo a essa vaidade. Quero comer, beber, fazer amor e morrer. Não me considero responsável pela literatura.
CLARICE: Nem eu, meu caro. E estou vendo a hora em que começaremos, dentro de toda a amizade, a brigar. Também posso lhe dizer que se viver é beber no Antônio’s, isso é pouco para mim. Quero mais porque minha sede é maior que a sua.
CARLINHOS: Evidentemente.
CLARICE: Eu gosto muito de você, Carlinhos.
CARLINHOS: Mas aqui não estávamos falando de amizade, e sim mostrando que uma escritora como Clarice Lispector, em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver. É por isso que eu digo: devemos jogar uma bomba atômica na Academia Brasileira de Letras.
Gosto especialmente de “se viver é beber no Antônio’s, isso é pouco para mim”. Sabia bater para machucar, a Clarice. A cena traduz com uma nitidez de cortar o coração a atmosfera de um tempo, um ambiente, um clima da cultura brasileira que hoje parecem pré-históricos. Profundamente datada na licença que a ditadura dava aos “contestadores” para pavonear suas arestas e demais inconveniências no atacado, aquela época pré-marqueteira era também de um despojamento e de uma singeleza que permitiam a Clarice Lispector, já um monstro da literatura, se expor como repórter de uma precursora da “Caras” e conduzir as entrevistas mais anarquizantes de qualquer figurino jornalístico que já encontrei – aí incluídos os famosos bate-papos do “Pasquim”. Tudo isso torna imperdível o livro “Clarice Lispector – Entrevistas” (Rocco, 232 páginas, R$ 29), coletânea de 42 entrevistas, 19 delas inéditas em livro – 23 já tinham sido publicadas no volume “De corpo inteiro” (Rocco, 1999).
21 Comentários
Carlinhos de Oliveira era um chato de galochas.
Foi um dos principais personagens de um Rio que não existiu. Aquela cidade fantasia aonde se batia palmas para o sol nas praias, depois que uma nuvem…enfim vocês conhecem a história.
E também aquela outra que um sujeito entrou de roupa de mergulhador de aqualung e tudo em um bar e alguém gritou – Gente, não é possível, nós não estamos tão bebados assim, tem um cara de aqualung aqui!
E outra, Brigitte Bardot entrando pela segunda vez no Antonio´s sob os comentários – Xiii, lá vem aquela chata de novo….
Finalizando – Manchete fazendo mesa redonda com ‘ intelectuais ” que diziam que o ” Rio é uma cidade que basta a si mesma, não precisa do resto do Brasil”
E, em outra reportagem, quando bacanas e
” artistas de hollywwod ” subiram o morro na Mangueira para participar da ” festa do povo ‘
que terminou em tragédia: uma briga entre o mítico povo, bem ao lado das mesas dos bacanas, produziu dois cadáveres.
O que fazer?
Manchete, representando a opinião desse Rio que nunca existiu, sapeca na primeira página- Pelo menos não matamos presidentes!
( kennedy tinha sido assassinado em Dallas, alguns meses antes )
Quem quiser entender o que estou falando basta ler sobre os maravilhosos e inexedíveis bailes de carnaval no Municipal- e assitir os filminhos da época que mostravam a realidade, bem mais pobre e triste.
Ou seja, era bom por que eram todos jovens.
abs mil,
ma
Sergio, como disse eu, no post anterior, você voltou de férias com a corda toda né mesmo? Esses primeiros post do seu retorno forma uma benção para quem esperou seu retorno… Valeu mais ainda por esse sobre a Clarice, vai para a minha humilde parte da estante dedicada para a obra dela, por quem sou fissurado…
Valeeeeeeeu…
A Clarice era fascinante – mas louca. E não o digo num tom pejorativo. Carlinhos de Oliveira, sorry, não sei quem foi (embora o nome não me seja estranho). Entre os dois, prefiro a Clarice. Todo mundo que conviveu com ela tem alguma história esquisita pra contar.
Era uma mulher muito forte, também. E é claro que esses cariocas da década de 60, machistas como eles só (mudou alguma coisa 50 anos depois?), tentaram mas não conseguiram lhe fazer frente. Por nada ela já dava rasteiras em todo mundo, imagine se sentindo provocada!
Carlinhos de Oliveira era um ótimo cronista (do JB), sujeito super boêmio, morreu com pancreatite crõnica, consequência do abuso alcóolico por décadas. Escreveu, inclusive sobre isso em algumas crônicas.
Não gostei do único livro que li dele, nem lembro o nome.
Antonio’s hoje é quiosque(!) no calçadão de Copacabana…
E Clarice, bem, todos conhecem e ninguém conhece essa maravilhosa escritora.
Mitos não costumam se dar bem. Exigem um espaço exclusivo.
Mas claro que a estatura do mito Clarice, hoje, sombreia muito o pequeno mito Carlinhos de Oliveira.
Carlinhos Oliveira é autor de um livro, de publicação e organização póstuma, Diário Selvagem, obsessivo e genial, terrivelmente devastador e impiedoso, ora entediante, repetitivo mas entranhado de revelações, como um filme de Glauber Rocha, por exemplo, A Idade da Terra.
E não conheço livro mais hilariante, libertário e ao mesmo tempo emparedado que Um Novo Animal na Floresta, um dos melhores perfis da geração ipanemense dos 60 e 70.
A Record lhe vem editando vários títulos com material inédito em livro. A Ediouro também publicou um de crônicas.
José Carlos Oliveira foi A Grande Promessa Não Cumprida, mas que agora de alguma forma se vem cumprindo, post-mortem.
Quem quiser saber mais, vá à biografia Órfão da Tempestade (Objetiva), do Jason Tércio, que também vem organizando esses volumes para a Record.
Achei os comentários desse tal de Carlinhos que nem conheço muito sarcático.para fazer um comentário desses ele devia ser uma pessoa pobre de cultura e de princípios. ao menos devia ter respeitado a grande escritora que estava a sua frente. pessoas como ele na minha humilde opinião não dever ser lembradas e muito menos conhecido como grande cronista.
Sergio, ainda bem que você está de volta. Senti falta de seus comentários e de suas dicas literárias. Um abraço
Laura
Sergio, ainda bem que você está de volta. Senti falta de seus comentários e de suas dicas literárias. Um abraço
Laura
Carlinhos de Oliveira era um bom cronista, mas um péssimo escritor. Ele sofria de ressentimento agudo e Clarice era seu oposto. Se afundar no álcool e na boemia foi seu escape. Uma espécie de suícidio.
Leiam “suicídio”, por favor.
Aprendo muito nessas caixas de comentários. Aprendi agora que o sarcasmo é para as pessoas pobres de cultura e de princípios…
“Suícidio” também é suicídio.
Só que na Suíça.
🙂
Entrevistas com entrevistadores que sabem conduzir um bom debate são muito divertidas.
Clarice Lispector foi singularíssima: bonita, um ar enigmático, talentosa desde A hora da estrela até para crônicas “mulherzinha”, escritas também para ganhar uns trocados (publicadas em Correio feminino). O Museu da Língua Portuguesa em SP tem uma exposição em sua homenagem com curadoria do Ferreira Gullar (que escreveu uma crônica linda a seu respeito recentemente), que infelizmente não deve vir ao RJ. É nesse ano que completam-se 30 anos da sua morte?
Bem vindo de volta, Sérgio.
Queria ver a Clarice entrevistando a Fernanda Young. Esta ia querer espancar aquela…
Clarice era uma escritora na acepção da palavra, além de ser dona de uma beleza exótica. Também era meio doida, o que lhe aumentava o charme. Escreveu livros ótimos, como “A hora da estrela”, e também fez umas coisinhas meia-sola, que ainda hoje são superstimadas.
Mas era uma escritora profissional mesmo.
Carlinhos escrevia também profissionalmente (vivia do jornalismo), até com certa graça, principalmente nas crônicas.
Mas seu talento era limitado, literariamente falando.
Esse entrevero ai com a Lispector, de certa forma, traiu a inveja e o ressentimento de quem sabia ter menos talento que sua entrevistadora.
Fernanda Young é tão, mas tão ruim, escrevendo “””literatura””” (“literatura” com muitas, muitíssimas aspas, por favor) (reconheço que escrevendo siticoms ela até que não faz feio) que duvido muito que a Clarice se interessasse por ouvir qualquer coisa que ela tivesse a dizer, fora “socorro, tomei chumbinho enganada”. A Clarice era uma mulher de nível, por favor. Até seus inimigos eram escolhidos a dedo.
Obs.: um programa chamado “Irritando Clarice Lispector” eu até entendo, entendo sua raison d’être. Agora, façam-me um favor: o que é esse tal de “Irritando Fernanda Young”? Quem é essa desorientada para se sentir irritada por algo? Sugeriria que ela mudasse o nome do programa para “Fernanda Young nos irritando”. Tem mais a ver.
Sem contar que o programa de FY é um plágio descarado de um programa do Channel Four, Room 101…
O Carlinhos Oliveira é um ótimo, excepcional escritor. Não é do tamanho da Clarice, mas nunca quis ser deste tamanho. E a graça das entrevistas dela era justamente esse estranhamento dela com o entrevistado. Bobagem, e da grossa, querer comparar os dois.
E “Um novo aminal na floresta” é o livro mais negligenciado dos últimos anos: é inteligentíssimo e joga o tempo todo com o personagem/escritor. Leiam antes de bostejar, por favor.
O Carlinhos Oliveira é um ótimo, excepcional escritor. Não é do tamanho da Clarice, mas nunca quis ser deste tamanho. E a graça das entrevistas dela era justamente esse estranhamento dela com o entrevistado. Bobagem, e da grossa, querer comparar os dois.
E “Um novo aminal na floresta” é o livro mais negligenciado dos últimos anos: é inteligentíssimo e joga o tempo todo com o personagem/escritor. Leiam antes de bostejar, por favor.