O ensaio do crítico americano Lee Siegel no décimo número da revista “serrote”, chamado John Updike ou A desimportância de ser sério, tem duas partes instigantes que, no entanto, não se encaixam muito bem. Ambas – e sua (des)conexão – vão comentadas abaixo.
Na primeira parte Siegel defende John Updike (foto, 1932-2009) do que considera uma campanha sórdida – nem tão nova, mas acelerada à medida que sua vida se aproximava do fim – para desmoralizar um dos grandes escritores americanos da segunda metade do século 20. Os maiores inimigos de Updike seriam, pela ordem, o crítico James Wood e o escritor David Foster Wallace, mas o complô acabaria envolvendo Harold Bloom e a própria revista “New Yorker” em que Updike se consagrou – e que mesmo involuntariamente, nothing personal, teria aplicado no criador de Coelho Angstrom um golpe duro ao contratar Wood.
O ensaísta é galhardo e até valente em sua defesa crítica de um escritor de inegáveis méritos, prolífico e generoso, que de alguma forma tornou-se uncool e anda necessitado de defesa em seu país. Deixa a sensação de que poderia ter feito um trabalho melhor em demonstrar por que Updike é importante, como eu acredito que seja mesmo. No entanto, tem o mérito pouco comum de tentar falar em tempo real desses movimentos mais ou menos surdos de construção e demolição de reputações que movimentam a máquina das letras através dos séculos – movimentos que obedecem a fatores não apenas literários e que, como se sabe, são sujeitos a ciclos, abalos sísmicos, reviravoltas. A meu ver, faltou falar também do provável preço que Updike pagou por ter se dedicado décadas a fio à tarefa de, como resenhista profissional, avaliar a produção dos colegas. Mas a disposição de defender o cara é simpática, justa e dialeticamente necessária.
A segunda parte do ensaio de Lee Siegel liga-se frouxamente à primeira por uma adversativa formalista: Updike pode recuperar seu prestígio um dia, mas a própria literatura não terá a mesma sorte. Trata-se de um ataque ao estatuto da ficção literária no quadro da cultura ocidental (leia-se americana) contemporânea. Aqui estamos próximos do clichê “o romance está morto”, que Siegel apregoou com alarde há quase dois anos – motivo pelo qual foi zoado na época aqui no blog, num Sobrescrito que lhe dediquei. Desta vez, porém, sem lançar mão do slogan desgastado, o crítico desenha de forma ampla e razoavelmente convincente o cenário em que, segundo acredita, a literatura de ficção artisticamente ambiciosa vai perdendo substância, profissionalizada, autocentrada, cada vez mais marginalizada pelo Zeitgeist – algo, de resto, não muito fácil de negar. É interessante o uso com sinal trocado que Siegel faz do caso do elogiadérrimo “Liberdade”, de Jonathan Franzen:
O romance de Franzen foi esquecido em umas duas semanas. No entanto, as pessoas ainda estão falando sobre filmes como “Avatar”, “Guerra ao terror” e “A lula e a baleia”. A arrebatada atenção crítica que o romance de Franzen recebeu foi quase heroica. Uma tentativa autocriada e autossustentada de tornar de novo o romance algo tão culturalmente relevante quanto um filme. Teve o triste efeito de provar o definhamento de sua relevância.
Aqui, mais uma vez, o ensaísta deixa na cabeça do leitor perguntas que não responde. Principalmente esta: o fato de que “as pessoas ainda estão falando” de “Avatar”, mesmo que seja verdadeiro, basta para tornar o filme de James Cameron “mais relevante” que o livro de Franzen? Que critério é esse que obrigaria o crítico a declarar, por exemplo, a viúva Porcina um personagem mais relevante que Diadorim?
E para finalizar – sim, é verdade que Siegel tenta amarrar as duas metades com uma tese exposta de saída, na primeira frase do ensaio: “Quando a seriedade se torna um estilo autoconsciente, formulado como uma receita… está aberta a temporada de caça à coisa autêntica”. A coisa autêntica seria Updike, claro, e a seriedade literária como receita é um juízo desfavorável sobre o ambiente das letras atuais. Não cola muito. Uma coisa é defender o ficcionista americano, outra é tentar fazer dele o grande mártir da batalha em que a literatura foi expulsa do paraíso. Com um pouquinho de má vontade (não muita), a segunda parte do ensaio pode até ser lida como um boicote à primeira.
Um comentário
Sérgio,
vai aí uma pergunta que a molecada de hoje chamaria de “nada a ver”, pelo menos em relação ao seu texto acima: acabo de ler no Livros Etc., da Josélia Aguiar, referência a seu encontro com o Veríssimo, para falar sobre o outro Veríssimo, e pergunto se você não vai nos dar a honra de vê-la, ou lê-la. Guilherme
Caro Guilherme, o vídeo está no site do IMS. Dei o link aqui na época, aí vai de novo: http://blogdoims.uol.com.br/ims/bate-papo-erico-verissimo-e-incidente-em-antares/ Um abraço.