Logo depois de seu primeiro aniversário (hoje está perto de completar dois anos e meio), o blog zerou uma dívida importante. Post publicado em 23/5/2007:
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Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames”. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O Todoprosa completou um ano no início deste mês e paga agora uma dívida que tem a mesma idade: foi nas férias, pensando na vida, que me ocorreu o absurdo (palavrinha apropriada) de ainda não ter publicado nesta seção o primeiro parágrafo de “O estrangeiro” (Record, tradução de Valerie Rumjanek), novela lançada em 1942 pelo escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Parece que todo esse atraso teve algo a ver com a determinação de fugir do óbvio ou coisa parecida. Desculpa porca. Mais do que proporcionar ao leitor um começo realmente inesquecível, o narrador Mersault, ao anunciar a morte de sua mãe em tom tão frio, está escrevendo a epígrafe de uma época que ainda é a nossa.
13 Comentários
Sempre retorna a este livro. Já o reli várias vezes… certos livros nos perseguem.
Sérgio, nos dias de hoje não enviariam mensagem alguma, ficariam um bom tempo recebendo a mensalidade e depois alegariam problemas com o e-mail, o servidor, a greve dos correios etc.
E o começo seria ” Não pude ir a exumação de mamãe pois passei o dia todo no Procon.”
Creio que “O Estrangeiro” foi publicado em 1942.
Certíssimo, Curiango. Obrigado pela correção.
Camus escreveu algumas das obras mais seminais da literatura, mas, infelizmente, fez um mal danado também.
O que tem de epígonos de seu estilo, o que copiam seus personagens…
Os descabeçados do João Gilberto Noll, por exemplo, são chupados do Mersault (aliás, Noll é um dos autores mais superestimados do Brasil). Mesmo caso os do Chico Buarque.
Aliás, na literatura brasileira atual, só dá esses personagens alheados, pascóvios, que não sabem quem são e onde estão, desligados. Virou um chavão..
Roland Barthes definiu “O estrangeiro” como “o primeiro romance clássico do pós-guerra”.
Sobre “O estrangeiro” foram publicados, em português, três ensaios fundamentais: “Explicação de O estrangeiro” de Sartre (incluído no volume “Situações I”, Cosac Naify), “reflexão sobre o estilo de O estrangeiro” e “O estrangeiro romance solar”, ambos de Roland Barthes (no volume “Inéditos vol. 2 – Crítica”, Martins Fontes).
Abraço,
Cléverson Faria Costa
Para mim, o começo imbatível é o do Kafka, na Metamorfose…
Nao sei, tenho uma implicancia danada com o enredo O Estrangeiro. Realmente, o clima deste comeco acompanha o livro todo athe o apice da prisao, da refutacao da extrema-uncao e do julgamento. Entretanto, o Mito de Sisifo, eh um livro que marca mais – me marcou muito mais. Principalmente se o leitor esta atento ao debate entre o Camus – um tipo meio recluso – e o Sartre – um homem que deixou a filosofia para virar amante da midia – sobre os rumos do comunismo.
Cezar, vc nao acha que o Noll e o Buarque sao dois estilos diferentes? Eu nao vejo muita semelhanca entre eles…?
Pô Patricia, “Metamorfose” é covardia! Mas “Estrangeiro” lançou um protagonista alheado (que perdura na literatura) porquê esse protagonista ainda está aí (e em nós). Não sei… vai levar tempo para o homem estupefacto diante do absurdo deixar de ser o nosso alter ego.
Bem… não sou um homem estupefacto diante do absurdo. Talvez porque tenha sido criado no interior, catando frutas no próprio pé. O “Estrangeiro” é, de fato, um excelente livro, mas nunca me identifiquei com seu protagonista. De Camus prefiro a “Peste”, que, entre nós, foi traduzida por Graciliano Ramos.
Recentemente, o presidente Bush declarou estar lendo “O Estrangeiro,” o que causou certa hilaridade. Mais, a sério: Camus foi muito influenciado pelo “hard-boiled novels” da literatura americana. Uma delas, que foi traduzida na década de 1930 na França com grande sucesso, é a “They Shoot Horses, Don’t They?”, de Horace McCoy, com a qual “O Estrangeiro”tem alguns pontos de contacto. Érico Veríssimo traduziu esta novela em português, “Mas não se Mata Cavalo?”, publicado pela Globo na década de 1940. Há também um filme, creio que intitulado “A Noite dos Desesperados.”
Novidades em literatura?Bíblia, está tudo ali.Se não ,em Shakespeare.
Dívida importante mesmo. Este é o mais inesquecível dos começos. (Ou seria o menos esquecível dos começos?)