Domingo é dia de relembrar o inesquecível. Este post foi publicado pela primeira vez em 23/6/2006.
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O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro.
Disse para Effie Perine:
– O que é, meu bem?
O início de “O falcão maltês” (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo, 2001), obra-prima lançada em 1930 por Dashiell Hammett (1894-1961) e fortíssimo concorrente ao título de maior romance policial da história, marca o momento – não desprovido de choque – em que a descrição da literatura realista encontra o grafismo econômico dos gibis.
6 Comentários
Eu ainda não li O Falcão Maltês. E o duro é que, mesmo com essa descrição do Sam Spade, vai ser difícil acompanhar a história sem imaginar a cara do Humphrey Bogart em lugar desse “satã louro” em forma de V…
É verdade, Isabel. O Sam Spade virou o Bogart apesar da descrição. Repara que, segundo Hammett, ele deveria ter tido uma cara mais para Robert Mitchum – que, engraçado, acabou interpretando Philip Marlowe, o mais brilhante dos “filhos” de Spade.
Desculpem, mas essa descrição aí é do Fernando Pessoa. Mais V que Fernando Pessoa não existe. E eu quero muito ler esse livro.
Cá pra nós, hein: se metade desse povo que “ama escrever” (especialmente em blogs e sempre pedindo a sua opinião – the horror!) escrevesse pelo menos com esses “grafismos econômicos dos gibis” tava de bom tamanho, não tava?
Olha Sergio, voce ainda duvida que esse seja o melhor romance policial da historia? Eu nao. É agil, cheio de reviravolta, cínico, romantico, violento, cheio de suspense. E, o que é melhor, é muito muiiito bem escrito, não? O que se pode pedir mais de um bom livro de aventuras?
Uma coisa meio nada a ver com o assunto que eu gostaria de comentar contigo: li um ligeiro depoimento apaixonado do Almodovar a respeito do romance 2666 do Bolanõ, escrito no blog dele (pedroalmodovar.es), num post intitulado ficción. Bonito. Se ainda não leu dá uma espiadela só. Um abraço!
Ronnie, obrigado pela dica, vou lá ver.
Quanto à questão do superlativo, concordo com tudo o que você diz sobre “O falcão maltês”, mas sempre prefiro usar a fórmula “forte candidato a…”, “um dos…” ou coisa parecida. A razão não é vacilação crítica, pelo contrário. É que o melhor romance policial da história – ou o melhor qualquer coisa da história – não existe.
Esse começo pra mim é inesquecível:
“ Se estou louco, tudo bem, pensou Moisés Herzog.
Algumas pessoas acreditavam que estivesse maluco e por algum tempo ele mesmo duvidara que estivesse são. Mas agora, embora ainda agisse estranhamente, sentia-se confiante, alegre, lúcido e forte. Entrara numa fase mágica e estava escrevendo cartas para todas as pessoas do mundo. Andava tão excitado com aquelas cartas que, a partir do fim de junho, ia de um lugar para outro com uma pasta cheia de papéis. Tinha levado a pasta de Nova Iorque para Martha´s Vineyard, mas voltara de Vineyard imediatamente; dois dias mais tarde voara para Chicago e daí para uma vila no oeste de Massachusetts. Escondido no campo, escrevia sem parar, fanaticamente, para jornais, personalidades da vida pública, amigos, parentes, para os mortos, seus próprios mortos obscuros; e, finalmente, para os mortos famosos.”
(Herzog, de Saul Bellow)