Me chamem de Ismael. Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos – tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue. Sempre que me pego ficando amargo, mandíbula tensa; sempre que em minha alma se faz um novembro chuvoso e cinzento; sempre que me vejo detendo involuntariamente o passo diante de agências funerárias e seguindo a cauda de todo cortejo fúnebre que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria leva a melhor sobre mim de tal forma que só um forte princípio moral me impede de sair à rua e, deliberadamente e com método, aplicar murros na cara dos passantes – nesses momentos, sei que está na hora de me fazer ao mar o mais depressa possível.
Há uma única e melancólica razão para que o início de “Moby Dick”, de Herman Melville, o começo mais “inesquecível”, citado e parodiado da literatura americana, tenha demorado quase dois anos para vir parar nesta seção: a insistência com que os tradutores brasileiros que conheço vertem a famosíssima frase de abertura do livro, Call me Ishmael, nesta fórmula criminosa: “Chamai-me Ismael”. Ressonâncias bíblicas, alegais em vossa defesa, ó escribas? E desde quando isso é motivo para decepar logo na primeira linha o barato de gerações e gerações de brasileiros diante de um livro de aventuras empolgante e, de certa forma, simples feito água? Será que o pernóstico imperativo na segunda pessoa do plural, que nos soa pomposo ou ridículo há séculos, tem alguma afinidade com o humor moderno de Melville em geral e especialmente neste parágrafo, em que o narrador confessa o desejo gratuito de sair à rua e “aplicar murros na cara dos passantes” – ou melhor ainda, no original, knocking people’s hats off?
Para mim, a resposta sempre foi não, de jeito nenhum. E foi assim que “Moby Dick” se manteve ao largo do blog, rodeando-o, arisco e furioso feito um cachalote ferido, até me ocorrer agora há pouco a idéia óbvia de traduzir o trecho eu mesmo. E já que estava pondo mãos à obra, achei melhor dar logo vazão a um ardor modernista que, sei muito bem, incorre no pecado do anacronismo: “Me chamem de Ismael”, com o pronome pessoal átono abrindo a frase – e, escândalo dos escândalos, o livro! É claro que o Brasil, proclítico por natureza, só começaria a se encarar no espelho ali por volta de 1922, mais de meio século, portanto, após o nascimento da baleia branca de Melville. Até então, engolíamos vossas ênclises disciplinadamente, escribas, para não mencionar vossos pronomes pessoais em desuso, como bons macaquinhos amestrados. Mas deixai estar, deixai estar, que o que se perde no anacronismo é restituído com juros na adequação do tom.
Quem for menos dado a traquinagens de estilo pode optar por um discreto “Chamem-me Ismael” – curiosamente (ou não?), uma solução que parece ser mais comum entre tradutores portugueses do que entre brasileiros.
Publicado em 16/01/2008
22 Comentários
PARABÉNS. É GRAÇAS A ESSA FÚRIA DE ALGUNS TRADUTORES DE QUEREREM SER MAIS REALISTA QUE O REI. E O PREÇO É ALTO = QUANTAS PESSOAS JÁ SE AFASTARAM DE UM SHAKESPEARE POR TEREM O AZAR DE PEGAR AQUELA TRADUÇÃO ‘FIEL’ QUE SÓ UM FALANTE DE PORTUGUES DO SÉCULOS XVI [ ÉPOCA DO BARDO ] ENTENDERIA DE PRIMEIRA.
EU FUI VÍTIMA DISSO. E SÓ ME LIVREI DO MAL QUANDO LI HAMLET TRADUZIDO POR MILLOR – E SENTI TODA A GRANDEZA DE SHAKESPEARE. E RECENTEMENTE CONSEGUI CHEGAR ATÉ ÍTACA COM A TRADUÇÃO DO DONALD SCHUDLER [ NÃO ME LEMBRO COMO ESCREVE O NOME DELE CORRETAMENTE, ME DESCULPE ] E CURTI CADA CANTO DA ODISSÉIA.
Adorei a sua tradução. Eu também uso próclise no início da frase. porque esse é o jeito brasileiro de falar. Não importa o que diz a gramática.
Esse post foi um dos melhores de um blog que já tem um nível altíssimo.
Sérgio, não me parece de todo má a solução dos tradutores da Cosac Naify: “Trate-me por Ishmael”. Mas é interessante observar que a expressão inglesa que vc traduz como “aplicar murros na cara dos passantes” está lá como “arrancar os chapéus de todas as pessoas”. Péricles Eugênio da Silva Ramos, na tradução mais comum entre nós – em que prefere o bíblico “Chamai-me Ismael” – traz uma solução mais próxima da sua: “metodicamente surrar todas as pessoas”. Gostaria que vc falasse um pouco desse “knocking people’s hats off”… “Arrancar chapéus”, “surrar” ou “aplicar murros”?
Saiam às ruas tradutores!
I liked it!
Principlamente por ser tradutora (de textos comerciais), detesto traduções, um mal necessário. Também concordo que o texto traduzido deve tentar encarar e refletir os desafios de seu tempo e a linguagem efetivamente falada pelas pessoas. Entretanto, vi uma encenação de Macbeth em uma tradução que substitui o “tu” por “você” e achei detestável, saí no meio. Não sei no papel, mas nas falas ficou horrível. Talvez o fato de que os atores (globais famosos, não vou citar nomes) não tinham nem de longe estatura para os papéis não tenha ajudado muito. Portanto, acho que, como na vida, cada caso é um caso.
Ouvi um escritor dizer que sabia se o livro era bom ou ruim lendo as primeiras frases. E o início de “Moby Dick” é muito instigante. Ainda não o li. É um pecado imperdoável. Está na minha lista de leitura,é um dos livros que preciso ler antes de morrer. E quanto à tradução, Sérgio, fico com a sua: “Me chamem de Ismael.”
Acho que já tinha lido um post sobre isso por aqui. E quando fui ler a última versão da Cosac fiquei com essa pulga atrás da orelha. Para mim, acho que o melhor, o mais coloquial, seria: “Podem me chamar de Ismael”.
PS: o post que eu já tinha lido, muito provavelmente, era este mesmo 🙁
O registro coloquial não está congruente com a construção clássica do inglês de Herman Melville. De outro lado, a segunda do plural também não encaixa porque não existe no inglês. “Chamem-me” é de fato a melhor solução.
Sérgio, concordo que a tradução do Moby Dyck não é boa e que “Chamai-me Ismael” é forçação de barra. Mas “Me chamem de Ismael” tambérm não existe. Ninguém fala isso, reconheça. Mas também não sei qual seria a melhor tradução. Provavelmente nenhuma. Call me Ishamel.
Salvo algum engano é assim como o Sérgio traduziu que o mesmo personagem se apresenta na HQ de Alan More, A Liga Extraordinária.
O Tomás, acima, parece-me deu a melhor solução: “Podem me chamar de Ismael”. É coloquial e fluida como no original, e dá a nota do pouco caso do protagonista com o próprio nome, fugindo de qualquer afetação ou explicação mais longa sobre si. Ah, e ainda mantém a nossa tão adorada próclise.
Mas não nos percamos em miudezas: qualquer que seja a tradução da frase inicial, a monumentalidade da obra – que não é simples romance de aventuras, Camus que o diga – é que deve pôr o leitor a pensar, ao invés das meras “questões vernáculas”, como diria o Napoleão Mendes de Almeida.
Os ecos bíblicos da trama e dos personagens, a cosmogonia, o drama, a tragédia, o inominável da força representada pela baleia – tudo isso vale muito mais do que as escolhas pessoais dos tradutores.
E não me parece que, qualquer que seja a frase inicial, o romance mude de rumo. Não percai de vista a substância, ó formalistas!
Sérgio, ótimo post. Eu (que às vezes traduzo, sem muita pretensão) frequentemente fico impactada com a mudança no tom da tradução, em que textos coloquiais viram (pseudo)sofisticados sem nenhum motivo aparente, subvertendo totalmente a intenção do autor. Um dos piores exemplos pra mim é a tradução do “Pequeno Príncipe” feita por Dom Marcos Barbosa, que, de um original extremamente coloquial e informal, passa a uma pomposidade na segunda pessoa que afasta o texto do leitor, estragando o livro e dando margem a toda sorte de injustificados preconceitos contra o pobre, para afinal ser encostado como “livro de miss”… triste sina…
(ainda sobre “O Pequeno Príncipe”, última, prometo…) outra coisa esquisita é a tradução do termo “grande personne”, termo coloquial através do qual as crianças se referem aos adultos em francês, pelo jamais usado “pessoa grande”, que fica parecendo um termo criado pelo narrador…
Ótima tradução Sergio, parabéns. Sempre que me deparei com a famosa frase deste começo inesquecível eu ficava indignado e mesmo com a badalada tradução da Cosac, que diga-se é decepcionante; nunca encontrei uma tradução decente, nem a do meu estimado professor Péricles Eugênio da Silva Ramos.
Me chamAm Ismael.
Que post legal, Sérgio! Divertido e instigante. Gostei da sua solução, embora o “Podem me chamar de Ismael” também me pareça bem atraente…
Sei lá, achei estranho essa tradução. Não seria das melhores, nem a mais correta. Seria apenas mais uma.
Tradução é SEMPRE sux
Moby Dick « Desbravando Fronteiras
O senhor comete um erro imperdoável, pra não dizer um delito. Omite o nome do tradutor.
Seu enfático puxão de orelhas seria merecido, Sueli, se eu tivesse omitido o nome do tradutor. Mas você não leu direito. O tradutor sou eu mesmo, como está dito no texto.
Eu gosto de “Chame-me Ishmael”. O livro sempre pareceu pra mim escrito pra outra pessoa só, mais como uma carta do que uma palestra (com a qual o “chamem” deixa parecendo) ou um grande declamar entre um grupo de pessoas. Também não entendo o por que da retirada do agá do nome do cara, afinal a história pelo menos começa nos Estados Unidos e o personagem é estadunidense e eu duvido seriamente que um aportuguesamento seja necessário para um livro como Moby Dick, que com certeza não vai ser lido por crianças ou outras pessoas pouco experienciadas com literatura estrangeira. Se bem que seria engraçado ler sobre a fúria monomaníaca do capitão Arrabe. (Assinado, Pessoa Realmente Irritada com a ausência de uma letra em Ishmael)
Quanto ao estilo de que época tomar na tradução – arcaicista ou modernoide – eu opto por um equilíbrio dos dois, lembrando que Moby Dick no inglês original soa como um cara positivamente de outra época (um cara velho) falando, todavia não a ponto de ser normalmente incompatível com um leitor moderno (por exemplo, Ishmael utiliza uma estrutura de fala rebuscada demais para ter sido escrita hoje em dia mas sem sombra de dúvida *não* fala em tus e voses – os únicos personagens na história que falam assim são os quakers old-school Bildad, Peleg e nosso querido Ahab). Lembrando também que Melville era um fã tremendo de Shakespeare, e como este adorava uma grandiloquência bem-posta.