Publicado pela primeira vez em 7/9/2006:
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Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso. Isso era Deus. Ainda assim tentava agarrar-se àquele nada, deslizava geladas cambalhotas até encontrar o cordame grosso da âncora e descia em direção àquele riso. Tocou-se. Estava vivo sim. Quando menino perguntou à mãe: e o cachorro? A mãe: o cachorro morreu. Então atirou-se à terra coalhada de abóboras, colou-se a uma toda torta, cilindro e cabeça ocre, e esgoelou: como morreu? como morreu? O pai: mulher, esse menino é idiota, tira ele de cima dessa abóbora. Morreu. Fodeu-se disse o pai, assim ó, fechou os dedos da mão esquerda sobre a palma espalmada da direita, repetiu: fodeu-se. Assim é que soube da morte.
Começa assim “Com os meus olhos de cão” (Editora Globo, 2001), novela lançada em 1986 pela escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004). Ou assim começa sua parte em prosa: tomei a liberdade de excluir os doze versos curtos que a antecedem para ir direto a esse monumental, enigmático Deus “ancorado no riso”. Observa Alcir Pécora, organizador das obras reunidas de Hilda, que “o obsceno é nome do cordame grosso com que se desce a este fundo”. Acrescentar alguma coisa? Eu não. Ancorado no silêncio, leio.
19 Comentários
e faz muito bem de ler, gostei demais.
Hilda sempre foi mal comportada. E ela adoraria ouvir isso, claro.
Não sei se ela foi sempre mal comportada; mas que era para poucos, era.
Como de costume viceral.
Incrivel.
Simplesmente fantástico!!
Hilda sempre foi assim. De uma autenticidade fantástica e cruel! Maravilhosa Hilda!
eu amo Hilda, mas não gosto desta mistureba de prosa com poesia para um contexto só. Me soa como poeta tentando escrever outra coisa. Adorei você pulando as estrofes iniciais do Com os meus olhos de cão.
Mas tem sua função: só depois de ler Estar sendo. ter sido é que eu consegui agarrar Jane Austen e entender que dá pra ser seráfico mesmo sem usar metáforas.
Ah, Hilda… Que saudade de ler sua coluna no jornal Correio Popular. Confesso que, na época, foram os artigos da Hilda que me motivaram a assinar o jornal. Sublime, como sempre.
O blog está sendo útil para eu conhecer alguns autores que foram antipatizados por estigmas ou idiosincrasias da junventude.
Nunca gostei da Hilda, pareceia apenas uma rancorosa velha pornográfica.
Agora você me mostrou esse outo lado – a pureza raivosa de sua arte.
Ela só não soube ser como Machado, ardilosamente insubmisso, e, por isso mesmo, lambido pela burguesia.
Um menino que foi doado a um coronel não poderia ser um sujeito inteiramente “integrado”.
O rancor de Hilda foi com a beleza perdida; o de Machado, da inocência perdida.
Diferença de um mesmo ódio.
Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso.
Mais uma taça de vinho, mais alguém pra delirar. Perfeito. Às vezes o mundo é perfeito. Ou pode ser.
Deus do céu…
Dispensa comentários… Ah, o prazer de ler… sem comentários…
Vim pela curiosidade de ler um pouco mais da Hilda, mas o seu blog hein…….muito bom, parabéns, foi uma grata surpresa e só espero ter mais tempo pra de vez em qdo fazer umas visitas. Um abraço, Paula
Para os textos de Hilda, melhor fazer apenas silêncio, mesmo. Ler e reverenciar. Grande.
Hilda precisaria ter tido um pouco mais de reconhecimento em vida, pena já ter ido…
Não gosto muito da Hilda. Acho a história dela mais interessante que sua literatura. Mas esse começo ai é do caralho!, se é…
Um começo realmente inesquecível.
Se a Paula gosta eu também gosto.