Cada qual cuide de sua memória. Post publicado em 1/4/2007:
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Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranqüila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo).
E já que andamos falando por aqui de novela, que a preferência do mercado editorial por romances anda transformando numa espécie de “formato que não ousa dizer seu nome”, eis o começo da pequena obra-prima “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”, novelinha lançada em 1958 por Jorge Amado (Record, 41a edição, 1977) e um de seus textos que se sai melhor na luta contra o tempo. A famosa frase atribuída a Quincas – talvez derradeira, quem sabe póstuma, isso se não for só uma balela – é algo parecido com o seguinte, embora cada testemunha tenha sua versão: “Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há”.
8 Comentários
Grande Sérgio,
Isso é que é post para um domingo ensolarado como esse. Jorge Amado, pelo menos para mim, é um dos grandes; o escritor que soube sintetizar aspectos essenciais da nossa brasilidade. Foi um dos autores marcantes na minha formação como leitor e como escritor, e “A morte e a morte de Quincas Berro D’água” é, indiscutivelmente, uma obra-prima inesquecível. Sempre fico feliz quando elogiam Jorge Amado e reconhecem o seu valor.
Abração!
Certamente, esse post acerca de “A morte e a morte de Quincas Berro D’água”, é realmente uma brisa pra esse domingo ensolarado, como disse muito bem Luis Eduardo. Foram Jorge Amado e Gabriel Garcia Márquez que me motivaram a escrever historias. Ah, e o cinema também. Valeu sérgio!
sensaboria pouca é bobagem…
Jorge Amado e feriado longo. Bom para ler. Capitães de Areia serve bem para uma Revisão (palavra importante) para cinema ou série (as boas séries) da Globo.
…
(Desculpe entrar na sala de visitas, mas acordei hoje lembrando o chato do Thomas Mann em A Morte em Veneza… )
Grande, grande…
E um brinde ao Fausto Wolff e ao seu “À mão esquerda”.
Sérgio, fiquei leitor do seu todoprosa desde que vi uma entrevista sua no site da Globonews e passei a me interessar de forma geral por seu trabalho. Agora, vejo que o “homem que matou o escritor” também nãos esquece de Quincas, com suas duas (ou três) mortes. Fico feliz. Estudo a obra de Amado aqui na Bahia, e tento fazê-lo ressaltando aspectos de construção do romance, o que às vezes me dá a sensação de falar para as paredes. Coisas como esse “começo inesquecível” foram, a meu ver, longamente urdidas no discurso literário de Amado que, ao contrário do que se diz (e do que ele próprio às vezes reforçava), caminhou no sentido da escrita, não do da oralidade, inclusive pela tematização da oralidade: veja o “desacordo” entre as “versões da morte”, por exemplo. Esses e outros recursos estão em outras obras, aqui e ali, com maior ou menor importância no conjunto, conforme o senso de medida deste – para muitos – “mero contador de histórias”, que, a despeito disso, teve, reconheço, suas baixas, suas mortes. Abraço
Caro Wladimir, obrigado pelo comentário. Sem ser um grande admirador da obra de Jorge Amado como um todo, já há algum tempo me incomoda que seja considerado tão chique tratá-lo com desprezo. Há pouquíssimo tempo, uma grande amiga minha, tentando explicar a um estrangeiro o papel de JA na literatura brasileira, disse: “Ele é o Paulo Coelho daquela época”. E não se referia ao desempenho comercial, mas à relevância estética mesmo – eu sei, porque fiz questão de conferir. Achei aquilo muito triste. No mais, concordo com você sobre o exagero que existe na imagem de JA como escritor da oralidade – e a isso se juntam freqüentemente as conotações de instintivo, tosco, quase naïf. Entendo que ele tenha feito por onde, mas o apuro formal que atingiu no fim da vida (talvez para compensar um certo esvaziamento temático?) sempre me pareceu invejável. Um abraço.
Sérgio, é isso mesmo: ainda é chique falar mal da obra de Amado, inclusive com associações completamente despropositadas como essa, com Paulo Coelho, que eu também já ouvi fazerem. E, ainda que discordemos sobre as motivações do “apuro formal no fim da vida”, é gratificante ver que você o dá por certo, porque isso, que me parece evidente – e que vejo poucos defenderem, como, e neste site, o Vinícius Jatobá – tem passado despercebido, e não há nada a esse respeito, por exemplo, no material de apoio do relançamento pela Cia. das Letras. Mas ele (Jorge) sempre reforçou essa imagem “antiintelectual”, e é portanto um fantasma que depõe contra sua própria memória… Enfim, “cada qual cuide de seu enterro”, e uns poucos das exumações.