A retrospectiva desta seção está aqui todo domingo. Este post foi publicado pela primeira vez em 17/9/2006.
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Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.
Um dia a dúvida tinha que aparecer nesta seção: será que o começo de “Pedro Páramo” (Record, 2004, tradução de Eric Nepomuceno), romance publicado em 1955 pelo mexicano Juan Rulfo (1917-1986), só é inesquecível porque o livro todo é? Ou existirá alguma coisa na primeira linha dessa obra-prima da literatura latino-americana que a faria reverberar mesmo sozinha, no ar seco de um México mítico, sustentada entre o tema ancestral da busca do pai e a sonoridade estranha de nomes como Comala e Páramo?
20 Comentários
Sérgio:
Tempos atrás li um artigo, na revista “Fiction,” no qual o autor (inglês) propunha que a primeira frase de um romance já inclui todo o significado da obra. Talvez isto seja verdade. Mas creio que estas linhas iniciais são importantes, e reverberam por todo lado nas várias alusões que às vezes criam, porque os livros a que pertencem se tornaram fundamentais. É como a linha inicial de um hino nacional que todo mundo sabe mas que, muitas vezes, se examinada fora de contexto poderia ser apenas um texto medíocre. Somos re-leitores de textos canônicos, quer literalmente quer pela alfabetização cultural a que fomos submetidos. Ao ler, mesmo pela primeira vez uma frase como esta de Rulfo, na maioria dos casos já sabemos algo de Pedro Páramo, ou seja, dificilmente haverá virgindade absoluta de leitura. Daí a sensação que a frase cria – é o encontro de algo já conhecido, uma pessoa, um lugar.
Curiango: de acordo, mas com grandes ressalvas. O que você diz faz sentido e me lembra aquela tirada do Borges sobre clássicos serem livros que nós decidimos ler como se cada frase e cada palavra estivessem no único lugar em que poderiam estar. O que, naturalmente, é uma ilusão, uma forma de dotá-los de uma aura que contamina qualquer leitura. Mesmo assim, acho que existem, sim, primeiras frases ou primeiros parágrafos antológicos em si, pela maestria com que condensam (e anunciam, claro) tom, tema, ritmo do livro. Não faria esta seção se não acreditasse nisso. Acho que a maior prova de que pelo menos tento evitar que grandes reputações interfiram demais na brincadeira é minha determinação de não buscar Começos Inesquecíveis apenas em “clássicos”. Nesse sentido, a primeira frase de “Pedro Páramo” pode valer tanto quanto a de um romance brasileiro recém-lançado. Se fosse apenas para aplaudir aqui os mitos de sempre, não teria a menor graça. Um abraço.
Algum escritor já escreveu que o início de um romance (ou livro, em termos gerais) é a última parte a ser escrita. Afinal, é o momento chave de “segurar” a atenção do leitor. Faz sentido, não acham?
Mas afinal, como começar um livro ? Alguma vez alguém já me disse que Ulbado começa sempre “do começo”, ou seja, colocando os agradecimentos e tudo. Escreve linearmente, sem ter definido antes a história que queria contar. Pode ser mentira tanto desse alguém que me contou a anedota, quanto do anedotário Ubaldo. De ” Cem anos,” García Marquéz diz que saiu-lhe antes de tudo o famoso período ” Muchos años despues, delante del pelotón…” E que depois foi saindo a história toda. Muita gente, como Clarice, Érico, Caio Fernando Abreu, já disse que não tinha nenhum controle sobre o romance que estava escrevendo, que era o livro e os personagens quem comandava. Mas afinal, como se começa um livro ? Claro que faço uma pergunta retórica. Cada livro de cada autor tem seus métodos próprios, mas me divirto imaginando Dostoiewski coçandoa cabeça e em seguida falando para sua copista:
– Escreve aí: “No começo de julho, por um tempo extremamente quente…”
Ou então, Cervantes ” Num lugar da Mancha do qual não ouso dizer o nome, vivia… ”
Mas segue a dúvida… Como começar um livro ?
Pedro e demais colegas do TP: o meu comentário anterior refere-se apenas ao início “formal” de um livro, ou ao corte inicial, através do qual, penetramos (se tais existirem mesmo) as “brumas da ficção”.
A minha experiência ao escrever o SD8 (ou Santos Dumont Número 8) foi justamente questionar essa “ilusão” de que um livro tenha um começo e um fim estabelecidos (voltei ao tema no conto “Om”, antecipado no Cronópios, e que estará em “El Libro de los juegos”).
Para o início do romance, escolhi (depois de pelo menos 3 outras opções) um símbolo: a palavra lemniscata.
O mesmo “símbolo” (como desenho) havia sido escolhido por JGR (com o mesmo propósito creio) para terminar o GS:V.
Para um dos supostos finais do SD8, o do primeiro “cubo” (o de Rubik; ainda existe pelo menos uma outra forma de se ler o livro, a qual chamei de o “cubo de Necker”), eu preferi usar a frase “uma lemniscata de si mesma, assim é a história”, o que, convenhamos, significa o mesmo que não ter final algum.
Pedro, os bons romances se impõe. Os maus são impostos. Quando quem decide é o autor, nem sempre sai coisa boa.
O Nabokov costumava afirmar que o melhor e mais pessoal exercício de crítica literária é sentir vontade de reescrever alguma coisa em um clássico que adoramos. Nada grande, pode ser trocar um adjetivo, um verbo, cortar um artigo. Isso não diminui a obra, na visão dele, que dizia que, mesmo adorando Madame Bovary, tinha vontade de mudar uma ou outra coisa no livro. Por isso, é preciso louvar ainda mais os começos e (e recheios e finais) em que não há absolutamente nada que mudaríamos.
Sérgio, esqueceu de acrescentar a frase seguinte: “Minha mãe que me disse”. O começo inteiro é assim: “Vim a comala porque me dissera que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Paramo. Minha mãe que me disse”. Assim mesmo, com uma imprecisão estranha quanto ao suposto autor da informação – quem disse que Pedro Paramo vivia em Comala – e o final da primeira frase “um tal de Pedro Paramo” que sugere algum desprezo do autor da informação pelo personagem, seria a mãe? Na minha opinião, um dos começos inesquecíveis mais obscuro da literatura contemporânea.
Uma duvida sobre os comecos inesqueciveis. Alguem aqui ja leu o Oil do Upton Sinclair? Pois, ontem assisti There will be blood. Me impressionou o comeco do filme. 20 primeiros minutos dialogo inexistente.
Érico, eu poderia dizer que você se esqueceu de acrescentar “E eu prometi que viria vê-lo assim que ela morresse”. Mas entendo que você preferiu dar o corte na segunda frase. Como eu preferi dar o corte na primeira, que vem a ser também o primeiro parágrafo completo.
O ideal, claro, é ler todas as frases, até “Deu uma batida seca contra a terra e foi se desmoronando como se fosse um montão de pedras”. Acredito que a capacidade de se manter enigmático até o fim seja um dos “segredos ” deste livro.
Tibor: que romance se impõe? o que o autor escreveu ou o que o leitor leu?
Jonas: E talvez, como Nabokov percebeu, não haja outra opção. Escreve-se porque, no fundo, deseja-se reescrever. VN, por exemplo, tentou reescrever Chekhov.
Sérgio, com certeza. Outra boa discussão: por que Rulfo escolheu escrever “Vim a Comala”, pretérito perfeito
do verbo vir, em vez de “Fui a Comala”, mesmo tempo verbal, só que do verbo ir, uso provavelmente mais comum, mesmo em literatura?
E fico com tua segunda reflexão, há coisas demais nessa primeira linha.
Sérgio, vc tb não tem a impressão de que livros são enigmático por natureza? Qual não o foi? Mesmo para o seu autor? Escreva seu livro. Depois de um tempo, o releia e se surpreenda. É perfeita, creio, a definição de Francisco Cândido Xavier para livros: “são objetos entre mundos”, sejam quais forem os de sua crença ou predileção…
Pouco importa o primeiro ataque do cinzel. É a obra pronta que tem importância ou não, e então, se boa, trará uma importância retrospectiva à primeira coinzelada.
Só pra completar: o dedo do David de Miquelângelo não tem grande valor se dissociado do resto da estátua. Ou seja, primeiras frases, ou começos de livros, só ganham valor por empréstim do valor geral da obra.
C.S.,
O que eu quis dizer (e não disse) é que o bom romance pode começar em qualquer lugar, seja meio ou fim. É ele que, apesar disso, ditará o próprio sucesso, e não o autor. O bom romance se impõe. Quando o autor quer fazer isso, não raro mete os pés pelas mãos.
Tibor, vamos filosofar: o autor não pode ser desresponsabilizado do sucesso ou fracasso (obviamente, não restrito à venda ou exaltação pela crítica) de um romance.
Existem diferentes aspectos a respeito deste: por exemplo, o próprio Foster (de Aspectos de um Romance) desistiu de uma história no meio pois achou que não estava conseguindo dar o tom que queria. Outros autores, ao constatar seu “fracasso” chegam a execrar sua obra (outros até tentar convencer os outros que não escreveram o que assinaram, vai entender…)
A forma como um romance é escrito, se chega ou não à sua conclusão, me interessa menos do que o processo de captura de uma idéia, como se dá o desejo de escrever um romance. Isso sim me intriga. Tudo poderia ficar como está.
Entretanto, de repente, surge, não se sabe bem de onde, uma idéia ou uma vontade ou inspiração e aí se dá o conflito. A partir daí pisamos um terreno escorregadio, incerto e, por isso mesmo, beiramos o fracasso, flertamos com a própria morte.
Como já disse no SD8: “escrevendo um livro, esvazio-me desses personagens”. Vcs, os que já escrevem, não se sentem um pouco assim?
O bom romance é, com o autor, o mesmo que a mulher inteligente com o marido: deixa-o pensar que está no comando.
O resto é blá-blá-blá… rs.
Putz… Como eu queria ter gostado desse livro! Li na maior expectativa, e não gostei. Segui adiante nos contos de Chão em chamas, e o primeiro me derrubou o queixo: o genial E nos deram a terra. E assim fiquei, com a imagem do Rulfo contista gigante…
Pô, meu bom Felipe, o Pedro Páramo é inquestionavelmente um dos maiores romances de todos os tempos, em qualquer idioma (e não sou eu quem o diz, mas escritores de Borges pra cima).
Para se chegar a esse juízo, basta se pôr no lugar do escritor – já que estamos discutindo começos – e imaginar “como começar a narrar uma história tão complexa, em tão poucas linhas, e em tão ousada estrutura?” A resposta só a pena de gênios como Juan Rulfo têm.