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Começos (ainda) inesquecíveis: Machado de Assis

24/08/2008

Para que 2008 fosse o ano do homem também por aqui, faltava republicar este post de 3/9/2006:

*

AO LEITOR

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

BRÁS CUBAS

Muita coisa começou com essas poucas linhas publicadas em março de 1880 na “Revista Brasileira”, e em livro no ano seguinte. A mais óbvia: começava o romance “Memórias póstumas de Brás Cubas” (Nova Aguilar, Obra completa, volume I, 1985), de Joaquim Maria Machado de Assis. Começava também, após uma longa doença e uma espécie de “crise dos 40” que o deixara nove meses afastado da imprensa, a segunda e genial fase da obra de Machado – uma ruptura espetacular com o romantismo de suas primeiras narrativas longas. Por fim tinha início, naquele mesmo momento, a tão ansiada maioridade da ficção brasileira, até então esforçada mas capenga, periférica, quase sempre oscilante entre a imitação de modelos importados e a tentativa de se impor como “nacional” pelo método de encher as páginas de índios, caboclos e jandaias. Três começos inesquecíveis em um: só mesmo um certo receio de, digamos, chover no molhado explica que Machado tenha demorado tanto a aparecer nesta seção. Cousas.

28 Comentários

  • Jonas 24/08/2008em10:49

    O primeiro parágrafo de Dom Casmurro, aliás, também é digníssimo da seção.

  • Eric Novello 25/08/2008em10:25

    desabafo: queria ver melhores adaptações de machado para o cinema.

  • Chico 25/08/2008em13:35

    Obrigado, Sergio. A gerencia agradece.
    A proposito, uma vez tentei ler o Life and Opinions of Tristam Shandy do Sterne – que dizem ter sido o livro do qual se ‘inspirou’ Cubas. Uma coisa pavorosa. Machado acertou a mao no Memorias. Grande livro, principalmente por que depois deste veio o Papeis Avulsos – com o Alienista e a Teoria do Medalhao, que nao eh um grande conto, mas que tem umas sacadas absolutamente geniais sobre a vida intelectual brasileira – enterrando de vez os Contos Fluminenses – que eu acho meio sacal.

  • Felipe 25/08/2008em13:42

    gênio, gênio, gênio.

  • Mr. WRITER 25/08/2008em14:39

    Sem comentários… e não é porque é Machado não, mas duca…

  • Rafael 25/08/2008em15:52

    Machado de Assis foi um escritor tão bom que nunca precisou fazer com que um homem entrasse em cena com um revólver.

  • Lucas Colombo 25/08/2008em16:04

    Machado, cada vez melhor.

  • Sérgio Rodrigues 25/08/2008em16:05

    É verdade, Rafael. Mas acho que o conselho era endereçado apenas a autores de narrativas policiais. Falando nisso, há uma boa cena em “Memorial de Buenos Aires” em que Antônio Fernando Borges segue a recomendação chandleriana à potência n e faz vários homens armados entrarem ao mesmo tempo pelas várias portas de um aposento.

  • André Luis Mansur 25/08/2008em20:45

    Fala, Sérgio, tudo bem? Gosto muito do site, que procuro ler sempre. Muito bom citar o início deste romance maravilhoso e importantíssimo da literatura brasileira. Só discordo do Rafael, aí embaixo, ao falar do revólver. No conto ´A cartomante´, um dos melhores do mestre, o revólver está lá, e é fundamental para o desfecho da trama.

    E o que achou você da descoberta do sobrado onde Machado morou na rua da Lapa?

    Abraços e parabéns pelo site.

  • Sérgio Rodrigues 25/08/2008em23:01

    Fala, André, bom vê-lo por aqui. Talvez o Rafael pudesse responder que n’A Cartomante quem entra pela porta é a vítima desarmada, não o homem do revólver, como queria Chandler. Mas a lembrança é muito boa. Obrigado e um abraço.

  • Roberto Black Meyerson 26/08/2008em00:49

    Há também o conto “Ofício de trevas”, no qual o personagem Antares entra de súbito na sala da casa de um casal seu amigo com um revólver em cada mão – parecendo um bandido de filme mexicano! O conto é menor, não tem nada de policial, mas ainda assim é um Machado com entrada de revólver, à la Chandler.

  • Américo Leal Viana 26/08/2008em08:45

    Nas “Memórias…” não há revólveres. Pode até haver “bandidos”, como o próprio Brás. Mas isso é de somenos. O que importa e vale aqui é a genialidade do mestre. Machado de Assis será sempre o nosso melhor escritor.

  • Cléverson Faria Costa 26/08/2008em08:58

    Prezado Sérgio.
    Machado preteriu a paisagem e se lançou de peito aberto, sem proteção, a falar do homem. Dissecou almas, e com prazer sensual detalhou os sentimentos humanos como ninguém jamais o fez. Soube dar força positiva ao mundo das paixões, de forma peculiar. Usando um mínimo de exterior ele consegui o máximo de interior.
    Machado não tem paralelo. É inconfundível; é um autêntico exemplo de genialidade literária. Gênio que não foi rebelde; cínico que não foi boêmio; sarcástico, que se apresentava como um cavalheiro de exterma delicadeza. E um grande humorista que quase nunca ria. Negá-lo como gênio é recusar-se a ver a luz do sol.

  • Rafael 26/08/2008em09:59

    Confesso que não conhecia o conto “Ofício das Trevas”; se é verdade que existe lá uma cena à Chandler, faço eu minha mea culpa.

    Quanto à “Cartomante”, que já li, nada tenho a acrescentar, pois o Sérgio mesmo deu a resposta.

  • André Luis Mansur 26/08/2008em10:50

    É verdade. Tenho de admitir que até o revólver, na obra de Machado, surge de forma sutil. Abraços.

  • Grifão Duarte 26/08/2008em13:46

    A Cartomante é um conto do Machado que tem um homem com uma arma na mão e dois assassinatos brutais. Ok, é o único, mas dizer que o Machado nunca precisou fazer com que um homem entrasse em cena com um revólver é bobagem…

  • Cássio 26/08/2008em14:04

    Com certeza eu já li o Memórias… pelo menos três vezes – uma antes de ser obrigado no colégio e outra depois. Conheço bem a história e o estilo, mas lendo agora o primeiro parágrafo parece que estou lendo tudo novamente, pela primeira vez. É quase uma surpresa em cada frase. Mesmo tendo algumas palavras que são datadas e marcam o texto como sendo de outras épocas, eu fico impressionado em ver que Machado envelhece muito bem.

  • Rafael 26/08/2008em14:38

    Pelo jeito, terei de ser didático.

    A sugestão do Raymond Chandler (convém ler o aforisma que encabeça a página, senão a brincadeira não fica sem sentido) lembra o artíficio do Deus ex machina, a que se socorriam muitos dos autores dramáticos da Antigüidade. A diferença é que, no Deus ex machina, o propósito é resolver o intrincado da trama, quando esta se mostrava insolúvel; ao passo que o homem armado chandleriano vem atender a um objetivo mais imediato: retesar o fio de tensão da história quando este ameaça afrouxar-se. Ambos são artifícios narrativos, artimanhas, ardis com que os narradores se safam nos momentos difíceis.

    Machado de Assis tornou-se senhor tão absoluto de sua arte que prescindiu completamente desse tipo de artíficio.

    No final d’A Cartomante, a cena em que Vilela vinga-se da traição sofrida é o clímax natural da história e não uma solução forçada, como seriam o Deus ex machina e o homem armado chandleriano.

  • Chico 26/08/2008em16:28

    Tampouco conhecia o Oficio das Trevas, Cleverson – ja esta na lista, apesar de eu desconfiar que este seja um daqueles da juventude. A proposito A Cartomante eh um dos bons contos do Machado, menos pelo desfecho em que Vilela se vinga da mulher. Mas o que eh mais interessante na trama eh o fato de que repousa no obvio o charlatanismo da vidente, com suas frases genericas, reticencias e sua falta de precisao ao asseverar o adulterio, e de como Vilela, uma figura de constituicao psicologica fraca e voluvel, deixa-se levar tal como um dos varios Otelos machadiano. Agora venham me dizer, se esse tipo de sacada havia nos contos da juventude de Machado! Dou um doce para quem os encontre. E dois 2 doces para quem me diga que o Machado da maturidade, pos-Bras Cubas – esse sim genial – era o mesmo daqueles contos chatos da juventude.

  • Grifão Duarte 26/08/2008em22:40

    Pode não ser uma solução forçada, mas é um final chocante em se tratando de Machado de Assis. E qualquer pessoa que já leu bastante Machado sabe disso. Inclusive, este é um conto (A Cartomante) que atormenta muito a crítica por causa desse final abrupto e violento.

  • Chico 27/08/2008em11:29

    Olha ai, eu comprando a ideia da Helen Caldwell – ao comparar mais um dos personagens de Machado a Otelo – sem nem saber que a ideia ja era dela (Estadao de hoje, Caderno 2 pagina 11). O Schwarz baixa o sarrafo nessa ideia do “Machado Universal”. Interessante, que ou no Vencedor as Batatas ou no Mestre na Periferia do Capitalismo – nao me lembro agora – ele toma de emprestimo a ideia de nacoes perifericas do marquessismo para expressar com certo ressentimento o porque de Machano nao ter sido considerado universal.

  • sonho bom 27/08/2008em13:36

    Assunto inesgotável, caro SR.
    Mesmo PQ. existem pessoas, como o PROF. DR.Jardel Dias Cavalcanti, que acham Machado incompreendido.

    Aqui:
    “[…]Por isso, salvemos o Machado de Assis destes rasteiros pensadores que só conseguem ver na obra de um gênio o reflexo banal de uma realidade que se parece mais com seus próprios cérebros do que com outra coisa.[…]”

  • Sérgio Rodrigues 27/08/2008em14:27

    Sonho bom, esse artigo que você cita parece ter como alvo principal o Roberto Schwarz, analista brilhante de Machado, que de “rasteiro pensador” não tem nada, a meu ver. Chamar sua análise de historicista chega a ser engraçado. Numa coisa você tem razão, o assunto é realmente inesgotável. Ainda bem, não? Um abraço.

  • Rogério de Moraes 28/08/2008em21:15

    Longe de querer pautar este ótimo blog, vai aqui uma queixa, quiçá, infundada. Ainda que o blog se chame todoprosa, é um blog literário, no qual cabe, certamente, a poesia. Sendo assim, ou me ofusca a memória, ou passei ao largo, mas não me recordo de um começo inesquecível de poesia. Reitero, longe de querer pautar este blog, mas, confesso: nunca guardei rebanhos, mas é como se os guardasse… Creio que um pouco de verso no todo prosa não cai mal. Abraços.

  • Sérgio Rodrigues 28/08/2008em21:32

    Rogério, o Todoprosa, como o nome sugere, só trata de prosa. Há quem comente por aí que eu odeio poesia, como se isso fosse possível. Ocorre que a literatura é vasta, a blogosfera também. Questão de foco. Um abraço.

  • Fabiano 29/08/2008em20:14

    Sérgio, esse começo me faz lembrar da dedicatória do livro, que também é inesquecível. Fica aqui a sugestão: que tal fazer uma seção de “Dedicatórias inesquecíveis”?

    Já de cara, dá pra pensar em Memórias Póstumas, em García Márquez (“para Mercedes, é claro”) e vários outros… Conheço inclusive uma em um livro técnico que é sensacional; se você gostar da sugestão, eu conto como é.

    Abraço

  • Rogério de Moraes 30/08/2008em09:16

    Perfeitamente compreendido Sérgio. Abraços e obrigado pela explicação.

  • Cogitamundo Blog 25/11/2008em16:36

    Prezado sérgio,
    Hoje colocamos no nosso blog um texto para ajudar a fazer justiça ao nosso maior escritor.
    Visite-nos em cogitamundo.wordpress.com.