O vidro martelado da porta tem um letreiro em tinta preta trincada: “Philip Marlowe…. Investigações”. É uma porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente, num edificio do tipo que era novo ali pelo ano em que o banheiro com azulejo até o teto se tornou a base da civilização. A porta fica trancada, mas ao lado dela há uma outra, com letreiro igual, que não fica. Pode entrar – não há ninguém aqui além de mim e de uma enorme mosca varejeira. Mas não se você for de Manhattan, Kansas.
O início de “A irmãzinha” (The little sister, The Library of America, tradução caseira), de Raymond Chandler, o grande estilista da literatura policial americana hard boiled, já devia ser inesquecível quando foi publicado pela primeira vez, em 1949. Ainda mais inesquecível se tornou, porém, depois que milhares de escritores mundo afora fizeram questão de lembrá-lo, lembrá-lo e lembrá-lo de novo, numa avalanche de imitações, sátiras, pastiches, glosas e homenagens que encheriam bibliotecas. Um processo de lugar-comunização tão avassalador que, a esta altura, estará desculpado quem preferir esquecer o inesquecível. É estranho pensar que nunca mais será possível ler esse parágrafo sem ouvir os ecos de suas palavras ricocheteando entre as estantes infinitas.
Publicado em 2/5/2008.
11 Comentários
Muito bom. Sérgio, já assistiu a algo do seriado House M.D.? Percebo nele ecos fortíssimos da acuidade investigativa e da piedade disfarçada de humor cínico do grande Philip Marlowe. Uma influência, com certeza.
Nossa!!! Desconhecia este romance de Raymond Chandeler e claro este começo inesquecível. É interessante para quem esta lendo, que o narrador parece estar na terceira pessoa, quando na verdade ele está na primeira pessoa e nos convida a entrar na história pela porta razoavelmente decadente no fim de um corredor razoavelmente decadente.
Um Abraço e parabéns pela tradução.
gOSTEI DA ENTREVISTA COM O gRANDE mAURÍCIO
E que imitem muito mais, porque o estilão é delicioso de se ler.
Abss!
Não sei se o bombardeamento do cinema em matéria de filmes policiais turba o meu juízo, mas esse início de livro me parece quase uma caricatura de si mesmo, um maneirismo policial em um tom forçado de quadrinhos, com finalidade cômica. Tento, mas não consigo, levar a sério esse tipo de entretenimento. Talvez não por culpa do autor, mas da banalização do gênero (o autor me parece tosco e pretensioso mesmo).
Procurei por Otto Maria Carpeaux aqui no blog, e não encontrei um post sobre A História da Literatura Ocidental, 4 volumes editados agora. Gostaria de ouvir suas palavras sobre
esta obra, que começo a ler.
O Chandler, tosco e pretensioso? Bom, pretensioso ele até pode ter sido, mas certamente tinha um talento à altura da pretensão. Chato (como o autor do comentário aí em cima) é que ele não era, pelo menos como autor.
Ôps, enquanto escrevia o meu comentário anterior deu tempo de aparecer o do RUY, com a boa notícia da reedição da História da Literatura Ocidental do velho Carpeaux. Só pra deixar claro que o chato é o auto-intitulado chato, e não o RUY.
Sérgio:
Como você participou da FLIP, poderia dizer algo sobre a celeuma Edna O’Brien e Chico Buarque?
Como disse na 1a vez que saiu esta nota: o meu problema é que li o Ed Mort primeiro, e isto tirou todo o possível “impacto” que a literatura do Chandler pudesse produzir.
Não que a leitura dos livros não fosse prazeirosa, mas era quase como se eu pudesse ouvir uma voz falando “meu nome é mort, ed mort” aou fundo…
Me lembro de quando foi postado este começo, e a impressão é a mesma de Harpia.