Qual a melhor maneira de se começar um romance? Pergunta eterna, para a qual naturalmente não há resposta. Para um iniciante, o desafio é considerável: o original mandado pelo correio deve imperativamente chamar a atenção de um editor, desde as primeiras linhas, sob risco de terminar no grande cemitérios dos textos recusados. E, mesmo quando publicado, um primeiro romance não tem chance de ser notado por críticos literários, livreiros e leitores se não conseguir de cara seduzi-los ou intrigá-los.
Esta rentrée do outono conta com 102 romances (contra 97 em 2006). Inútil procurar neles uma voga estilística, uma maneira comum de começar: são 102 tentativas individuais de arrancar o leitor do real para introduzi-lo no universo do autor. Entre o ataque sorrateiro e a partida brusca, entre o toque de clarim e a música vulgar, a palheta é vasta.
Le Monde publica matéria de Robert Solé sobre os começos dos romances de estréia que estão entre os 102 lançados recentemente na França, pós-férias de verão – na rentrée, como eles chamam. Como não havia tempo para ler tantos livros, fechar o foco em seus pontos de partida talvez não seja uma má idéia jornalística. Dos inícios citados, porém, quase todos me parecem bem esquecíveis, embora seja evidente em muitos deles a ânsia de causar impacto:
“Ponto final. Amém. Gilles está morto. A missa está dita.” Murielle Magellan, Le Lendemain, Gabrielle.
Ou a busca de profundidade:
“A deselegância é a vaidade da idade madura, como a elegância o é da mocidade.” Julien Capron, Amende honorable.
Me fisgou mais este curioso caso de in media res – expressão latina que um horaciano heterodoxo traduziria como “bonde andando”:
“O leite manchou a lama. Limpei a boca, o úbere da vaca ainda tremia.” Didier Séraffin, Un enfant volé.
Achei simpática também a seguinte tentativa de impressionar pela abolição sumária de todo elemento impressionante:
“Meu nome é Suzanne. Tenho cinqüenta e dois anos. Faz uns bons trinta e cinco anos que trabalho.” Christina Mirjol, Suzanne ou ou le récit de la honte.
Mas é claro que julgar um livro pelas primeiras frases é como julgar uma partida de futebol pelo pontapé inicial. O artigo reconhece isso:
Não convém entretanto atribuir importância excessiva à primeira frase. O essencial é que ela dê vontade de ler a segunda… O famoso “Durante muito tempo, fui para cama cedo”, que abre Em busca do tempo perdido, não impressionou os leitores: Proust penou para ser publicado. Foi somente depois de sua consagração que a frase se celebrizou.
O melhor do texto para mim, que não li “O quarteto de Alexandria”, foi a descoberta do seguinte trecho citado por Solé (embora, conferindo em seguida o livro de Durrell, eu tenha constatado que ele só aparece no sexto parágrafo, ou seja, não é bem, ao contrário do que diz o artigo, um Começo Inesquecível):
Nas duas primeiras frases de Justine, Lawrence Durrell resumiu todo o seu quarteto de Alexandria: “Cinco raças, cinco línguas, uma dúzia de religiões; cinco ondas crescendo nas águas sujas do porto. Mas existem mais de cinco sexos, e apenas o grego demótico, a língua popular, parece querer distingui-los.”
(Toda a tradução do francês contida nesta nota é de André Telles, a quem devo também a indicação do artigo. André acaba de traduzir “As Benevolentes”, nada menos, e está trabalhando numa tradução integral de “O conde de Monte Cristo” a quatro mãos com Rodrigo Lacerda – que já emplacou um Começo Inesquecível, o que, se formos reparar, fecha o circuito.)
É bom estar de volta.
13 Comentários
A primeira frase de um livro tem tanto a ver com o resto quanto meu pescoço tem a ver com os anéis de Saturno.
Que bom que voltastes! Tava fazendo muita falta.
Welcome back, Sergio (ué, a casa nem é minha). Sobre literatura francesa, sejam os começos , os meios ou os fins, tento acompanhar o que anda sendo publicado e parece haver uma crise histórica na prosa do Hexágono. Dizem alguns que isso começou com o hermetismo experimental do nouveau roman. Será? Depois disso tivemos Tournier com alguns livros excelentes, o que a meu ver refuta em parte este argumento. Penso que o sucesso de As benevolentes, de um autor cuja língua mater é o inglês, seja um reflexo do estado das coisas. Haveria por acaso um “envelhecimento” de uma língua, a partir do momento que ela se mostra impermeável? Como se a partir de agora, começássemos a viver uma era em que os idiomas só sobreviberão através de transmutações e fusões. Ou a língua é acessória ao momento cultural e não há de fato nada de novo na terra dos queijos e dos vinhos? Agora vou pegar uma onda. Welcome back to you too, Saint.
Lembranças da praia.
Oi Areias! Obrigado pelo “Welcome back”! Dá uma lida nisso aqui:
“As for the decline in literature in general, one can at once point to the waning of canonic writers and works, established and mainstream scholars, conventional genres, and national literary history. White male masters first began to be replaced by female writers. Nearly at the same time, minority writers-male and female-emerged as a new dominant, but female minority writers took center stage. Over the last decade, fiction as a whole has lost its allure for the general public – except perhaps for pulp romances – and interest in foreign cultures, especially European literatures and languages, has begun to disappear.”
(Masao Miyoshi, Universidade da California, em Turn to the planet)
Rsrsrsrs.
Que bom que voltou…
E que voltou falando de livros, escritos, auores e essas coisas todas que gostamos
Opa, eu gosto, o restante do pessoal eu não sei…
Falo por mim…
Estou lendo “As Benevolentes”. Ainda não sei o que dizer dele. Mas é bom.
Faulkner não estaria sendo “modesto” nesse “um pouco de uísque” da epígrafe? Afinal, consta que o sujeito entornava com rara competência.
Interessante o artigo, Sérgio. Principalmente porque, no fundo no fundo, nada que é é como deve ser: verdades que só existem para ser contestadas. Você fez a maior falta.
Cássio,deixa ver se eu entendi:você não sabe o que dizer ainda sobre o livro…mas diz que o mesmo é bom.É isso mesmo ou eu perdi alguma coisa?
Abraços.
Walter.
bom tê-lo de volta.
de durrel só li o labirinto negro. e por caminhos tortos. tinha adorado um livro do irmão sobre a família em corfu. e vi na banca, uai, a personagem era mesmo um escritor. gostei.
Que coincidencia. Quanta-feira passada um chapa me dizia que esse foi um dos temas de um um curso que o Amos Oz deu na Hebrew University anos atras. Passou um semestre inteiro levando varias aberturas de romances para perguntar aos alunos quais os motivos que levaram o autor a iniciar por aquele ponto especifico da trama.
Tem começo melhor do que de “Lolita”? Páreo duro com “A metamorfose”, talvez.